Escrevo um romance com o mesmo estranhamento dos personagens que invento. Trata-se de uma ficção sobre exílios, e sou eu mesma atualmente uma escritora estrangeira em Paris, deslocada na geografia, partida entre culturas. São culturas complementares, a brasileira e a francesa: o que uma tem em excesso, na outra falta. E ser estrangeiro significa exatamente esse estar-no-mundo-entre-mundos. Um equilíbrio fino que poderia desestabilizar,não fosse a frase do poeta Fernando Pessoa a garantir: “A minhapátria é a língua portuguesa.” Porque foi ele quem disse, isso me estabiliza.
Passo o tempo escrevendo um livro em português numpaís que fala francês. Circulo num mundo globalizado com fronteiras cada vez mais fluidas. E nessa fluidez eu sei: a minha pátria é a minha língua, não importa quantos oceanos atravesse, por onde quer que eu ande, ou migre. Não por acaso o título do meu romance é Rio-Paris-Rio. Nele cabem cidades, idiomas, migrações.
A figura do exilado sempre me atraiu, sobretudo em seu primeiro sentido: expulso da pátria. Mas descubro, com Pessoa, que pátriacontém uma amplitude de significados, podendo ser um país, uma língua, até o amor, quem sabe. Afinal,sãotantos os exílios.
Decido então contar a história de um grupo de brasileiros autoexilados em Paris durante a ditadura civil-militar que castigou o Brasil nos anos 1960-70. Os personagens principais, Maria e Arthur, não foram propriamente expulsos, mas seu mal-estar diante da violência do governo militar, da censura, os empurra a buscar outro lugar no mundo.
Maria é neta de um dos generais implicados diretamente no golpe militar de 1964, enquanto Arthur é filho de um intelectual comunista. Encontram-se em Paris às vésperas da revolução estudantil de Maio de 1968 e se exilam na paixão (um pelo outro), na liberdade, nessa grande pátria que é a juventude, como se fosse possível enterrar heranças malditas num cemitério de famílias. Até que a situação política do Brasil se agrava e complica esse exílio no afeto.
Inquilinos de outra cultura, a europeia, Maria e Arthur aos poucos se identificam com o que nela há de positivo. Sabem, no entanto, que são estrangeiros. Mais do que isso: forasteiros. Sabem que não são os donos dessa grande festa que é Paris (Hemingway que o diga), apenas convidados. Ou melhor: penetras. E só aos poucos encontram um lugar intermediário entre o português e o francês, o tropical e o temperado, a barbárie e a civilização.
O exercício da escrita tem muito do exercício do estrangeiro. Afinal, todo imigrante é um espião do outro. Observa as pessoas ao redor, seus hábitos e trejeitos. Tenta aprender a língua oficial, os códigos sociais, as expressões corriqueiras. Quanto mais rápido se adaptar ao novo país, mais integrado estará, o que de imediato significará: menos solidão. E aí vem o mimetismo, dia a dia, a mudança gradual das roupas que veste, das cores, até que se mistura, sentindo-se menos estranho ao outro. Pode não perder totalmente a identidade, mas ela vai se corrompendo.
Quem opta pela vida estrangeira é gente que gosta dessa sensação de estranhamento diário em relação à cultura, àpaisagem, àlíngua. Talvez liguem menos para o que é familiar, para os marcos do dia a dia (como comprar pão na mesma padaria ou cumprimentar o dono da banca de jornal toda manhã). Criam raízes em outros solos, desapegados das próprias raízes. Migratórios, curtem deslocamentos, perdendo as referências do que em geral se pensa como estabilidade.
E é essa instabilidade que importa nesse ir-e-vir. Pois o processo de criação é em sitambém instável, movediço. E escrever um romance sobre exílios, estando eu mesma no país dos personagens, deslocada, migrante, é uma experiência paradoxalmente fundadora. Crio melhor diante do que me soa estranho. Se persistir sempre no familiar, no que é seguro, e temer o estranho que surge (às vezes realmente atemorizante), ficarei no clichê e dificilmente escreverei algo novo.
Em geral o escritor tenta extrair do banal o extraordinário. Issonão quer dizer que sempreconsegue, mas faz um esforço. Por isso o ato de escrever-rescrever é tão importante, obsessivo, sendo em alguns casos até meio doentio. Por exemplo, quando escrevo a primeira versão do texto, é a explosão: o instintivo, o selvagem, o incontrolável. No dia seguinte, ao rescrever o mesmo trecho, aí sim essa rescrita se dá de maneira mais civilizada, racional, 10, 20, 100 vezes, a cada releitura. Escrever, em última análise, é rescrever. E somente quando altero o texto, passo a vê-lode fora, com distanciamento, ou seja, com um olhar, digamos, estrangeiro.
Não à toa o escritor muitas vezes se sente um estrangeiro em sua própria obra. Escolhe uma palavra e desconfia dela. Escreve uma frase e duvida dela. Completa uma página e a deleta. O ato de rescrever é a negação doato primeiro, o de escrever. Sucessivas vezes apaga-se o que se tinha escrito de início. E isso quer dizer que, até tornarpública a sua obra, oescritor já se negou mil vezes.
Estranho ofício esse. Tem dias em que acordo sem a menor ideia de onde estou na ficção, se sou eu que a arrasto, ou ela que me arranca. Não faço qualquer tipo de esboço antes de começar um romance, não determino uma espécie de estrutura, nãotenho noção dos personagens que me visitam. Narrativas vão surgindo, seja a partir de uma ideia frágil, fugidia, que se consolida no momento exato da escrita, ou de uma única palavra que eu não ouvia há muito tempo, por exemplo, e que de repente soa diferente, nova, tornando-se guia.
Toda essa movimentação de ideias e frases acontece tanto diante do computador quanto na rua. Em geral trabalho no livro e saio para caminhar. Flanar faz parte do processo criativo, é quando ponho as palavras para circular, pouco importando a cidade onde esteja. Continuo a escrever enquanto ando. As palavras (sempre elas) vêm e vão, encadeadas, en marche.
Aproveito então para observar as pessoas na rua, contextualizadas nos grandes cenários que as acolhem. É que as cidades sãodeterminantes nos meus romances, a ponto de constarem no próprio título. Atualmente a Paris e o Rio de Janeiro dasdécadas de 1960/70 têm me conduzido, porém, olhando em retrospectiva, noto que já fiz isso antes. Quando escrevia O passeador(meu romance anterior), caí na tentação de revisitar ruas por onde o personagem Afonso passearia, no centro do Rio. Cheguei a traçar alguns percursos in loco, antecipando os passos do protagonista na ficção. Embora o livro se passe no início do século 20, muitas ruas permanecem, inclusive com os mesmos nomes. E por ser eu mesma uma passeadora, vejo hoje o quanto contracenei, ao lado de Afonso, com o Rio da Belle Époque, dividida entre a cidade concreta e a cidade imaginária.
Repito essa experiência agora em Paris, dedicada a percorrer trajetos por onde Maria e Arthur caminham, ou a escolher, por exemplo,o prédio onde moram. Sempre que passopela esquina do Boulevard Saint-Michel com a Rua Cujas, no Quartier Latin, ver o edifício que escolhi para os personagens me dá certa segurança: é algo sólido, está ali, então eles também estão. E quase posso vê-los, no último andar, fumando, angustiados, apaixonados, intensos, na arrogância de sua juventude — uma juventude que revolucionou tudo o que até então se pensava como juventude.
Escrever em Paris uma ficção passada em Paris é um privilégio em tantos sentidos que ultrapassam a mera geografia. A pesquisa é ampla, fuço arquivos de jornais da época, busco livros sobre o explosivo Maio de 1968, escrevo trechos a partir de toda essa leitura e da minha própria flanêriepela cidade. E há aindaoutro exercício diário fundamental nesse processo: a língua francesa. Quando falo uma língua estrangeira e volto à minha língua, o português, vejo essa última com mais distanciamento. Isso torna mais criativa a minha poética. É como voltar para casa depois de uma viagem a outro país. Passamos a ver a nossa própria cultura, a nossa cidade, com outros olhos, mais distanciados, por isso mais críticos e criativos.
Uma última curiosidade: quando aprendi a palavra étranger, demorei a entender seu duplo sentido. O termo em francêssignifica estrangeiro, mas também estranho. E só então me dei conta disso. Sim, o estrangeiro é antes de tudo um estranho, um intruso. E com o tempo assumo esse lugar meio de fora, o tal olhar de viés que se tem diante da cultura do outro. Sendo que em Paris sou eu a outra. Vou então me infiltrando, espiono, estranho e sou a estranha. Porque é disso também, e principalmente, que se trata a escrita. Sem sentir profundamente toda essa estranheza — e até apreciá-la — nãoescreveria essa ficção.