contra out 15

 

Ela passou a escrever ficção quando foi estudar jornalismo, e a falar da província quando se mudou para a capital. Trânsitos aparentemente contraditórios que revelam muito sobre a obra de Selva Almada, jovem escritora argentina cujo nome mais parece pseudônimo e que, tanto em seu país quanto no Brasil — onde chegou há dois meses pela Cosac Naify —, veio para oxigenar a paisagem literária como um vento arrasador, que perturba e desestabiliza.

Este pequeno ensaio nasce da minha desistência de resenhar O vento que arrasa (depois de tudo que já foi dito, seria um despropósito), mas tem a pretensão de refletir sobre as marcas e inquietudes que atravessam a obra de Selva como um todo, da primeira ficção, Niños (2005), à primeira não-ficção, Chicas muertas (2014).

A ideia de trânsito citada logo acima evoca uma imagem central em Selva: a beira da estrada. Nascida em Villa Elisa, na província de Entre Ríos, a autora traz no imaginário a figura das cidadezinhas de interior cortadas por este rio de asfalto em que as pessoas vêm e vão. Vias de escape da violência doméstica e do tédio, do preconceito e da hipocrisia, mas que são também um caminho de regresso à infância, esse quintal permanente da memória familiar. Mais do que a estrada, interessa o que fica à margem dela, os pueblos, cenário de todas as suas histórias. E é curioso pensar que, dentro do panorama da literatura argentina, sua obra também se situa à margem, num território distante da urbanidade portenha e dos grandes eixos temáticos da produção nacional — onde ainda ecoam a ditadura cívico-militar e a guerra das Malvinas, para citar os principais.

Assim como nos filmes de sua conterrânea Lucrecia Martel, a dramaturgia de Selva parece criar a falsa ideia de que nada acontece, quando na verdade o mais importante está acontecendo silenciosa e sub-repticiamente: mulheres são violentadas, famílias estão desmoronando, filhos são abandonados e mentiras corroem mais do que ferrugem. A vida é plácida e se arrasta sob o sol modorrento, até que o mormaço vira brisa, a brisa se transforma em vento, então ouvimos os trovões e aquilo que estava oculto irrompe numa catártica tempestade. Mas tudo já estava latente desde o princípio, numa ideia de iminência.

Não é à toa que cito Lucrecia Martel para falar de Selva Almada. Ambas narram a partir da província, de ecossistemas marcados pelo calor e pela umidade (rios, piscinas), numa atmosfera ricamente sensorial de desolação e morte, onde são constantes os embates entre homem, natureza e fé, mas sobretudo dentro de casa. A família é o núcleo narrativo, mas ela é invariavelmente fragmentada e disfuncional. As relações são ambíguas e incestuosas, os parentes são numerosos e há assuntos sobre os quais ninguém fala. Para evitá-los, recorre-se à religião e às lendas populares sinistras, como as contadas pelo avô Jorge em Una chica de provincia — livro de contos com forte carga autobiográfica que será reeditado este ano pela Random House da Argentina sob o título El desapego es nuestra manera de querernos, que batiza um dos relatos. A obra está dividida em três partes: Niños, centrada na amizade siamesa entre duas crianças ligadas por uma “carnosidade intangível”, Chicas lindas, sobre as tensões do mundo feminino pré-adolescente e En familia, que narra o suicídio do tio paterno e suas implicações em cada membro da família.

E lá está ela de novo, a família. Em Ladrilleros (2013) a trama gira em torno de dois clãs, os Tamai e os Miranda, e de como o rancor entre os adultos é transferido para as crianças até culminar na iminente tragédia. Diferente de O vento que arrasa, que estava mais para novela (poucos personagens, poucas locações e tempo condensado em um dia), Ladrilleros é um romance que abarca duas gerações ao longo de mais de uma década. As obras também se diferem formalmente: se na primeira os personagens pedem contenção, no segundo tudo é mais visceral e explícito, da raiva ao sexo. Um drama shakespeariano homossexual situado no Chaco argentino onde só há Romeus, sem Julietas.

Há, nas narrativas de Selva, uma estrutura que parece remeter à linguagem audiovisual. Áudio, porque trabalha a oralidade e o registro provinciano sem ser transcritiva ou hiper-realista, mas que emula uma musicalidade própria do interior. Visual, pela força imagética que emana do texto, menos adjetivado e muito descritivo, próximo de um roteiro e beirando a decupagem fotográfica. A cena do Reverendo Pearson sobre o púlpito, pregando aos fiéis — “o cocoruto calvo porejando de suor” — é um dos infinitos exemplos. Sem falar no mecanismo de montagem cinematográfica, com hábeis cortes e flashbacks. Não surpreende que ambos romances tenham tido seus direitos vendidos para o cinema.

É inevitável e tentador voltar à analogia Martel. A cineasta conta ter desenvolvido seu sistema de diálogos filmando conversas familiares na cozinha de casa, em Salta. Durante anos, Selva viajou de carona entre Villa Elisa e Paraná, onde fazia faculdade — ela conta o episódio em Chicas muertas —, e é possível que, enquanto tomava mate e ouvia os caminhoneiros da região, com sua pronúncia e vocabulário tão particulares, construía internamente uma voz literária original.

Dentre todas as obras desta grande ficcionista, foi justamente esta não-ficção, Chicas muertas, a que mais me tocou. Depois de escrever sobre protagonistas masculinos inseridos em mundos violentos, é simbólico que este livro tenha protagonistas mulheres, só que mortas. Em tom de crônica jornalística, Selva narra em primeira pessoa três casos de feminicídio ocorridos nos anos 1980 e até hoje não solucionados. Para isso, viaja até os pueblos onde os crimes ocorreram, entrevista familiares das vítimas e remonta aos dias prévios e posteriores às mortes.

Paralelamente, relembra passagens de sua própria infância e adolescência nas quais a violência de gênero esteve presente, ainda que velada. E chega à terrível conclusão: num país onde uma mulher é assassinada a cada meia hora, estar viva é questão de sorte.

Seja transitando pelo mundo real ou o imaginado, desde sua experiência ou de uma construção ficcional, Selva Almada vem desenvolvendo uma obra de enorme valor estético que reafirma uma tendência: a de que a província e a periferia, hoje, parecem produzir histórias bem mais empolgantes do que nossas esvaziadas e massificadas metrópoles. Estar no centro, mas escrever à margem, me parece um ato tão urgente quanto revolucionário.