resenhas 23 cosac A

O último livro que comprei da Cosac Naify foi há uns quatro meses, uma antologia poética da escritora portuguesa Adília Lopes. Nem em Portugal é fácil encontrar Adília: seus títulos voam das livrarias e os poucos restantes acabam sendo caríssimos. Dar de cara com a literatura de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira (seu nome “verdadeiro”) é sempre um momento raro, que merece ficar marcado em algum tipo de calendário (mas não aqueles que marcam os dias com exatidão; e sim os que assinalam os instantes internos, que aparecem diante de nossos olhos como flashes). A vida nunca foi simples para Adília, com a sua obra não seria diferente.

Vejam só o tamanho da confusão: Um dia Maria José, estudante de Física, percebeu que o mundo era complexo demais, que as coisas às vezes existiam à sua revelia e se colavam de maneira estranha, tão estranha que não suportou tantas ideias e teve um passamento. Foi internada. Ficou deprimida. Passou a tomar remédios que colocaram de cabeça para baixo seu corpo. Engordou muito, sentiu que isso a afastava dos namorados e decidiu virar personagem de ficção. Virou Adília Lopes, aquela que escreve para se casar, como retrata um dos seus versos mais famosos. Adília Lopes, a obra de ficção, chegou ao Brasil a partir da coleção Ás de Colete, parceria da Cosac Naify com a resistente Editora 7 Letras.

O projeto Ás de Colete foi de importância fundamental para a divulgação da poesia contemporânea. Foi com ele que conheci/que conhecemos, por exemplo, Ricardo Domeneck, Angélica Freitas e tantos outros, que consegui/conseguimos a poesia reunida de nomes como Francisco Alvim e Cacaso. E, claro, Adília Lopes, talvez um dos maiores fetiches da minha biblioteca. Em coleções tão bem arquitetadas como a da Ás de Colete é possível estabelecer uma espécie de relação de confiança, de parceria e de um reconhecimento, sei lá, amoroso. A unidade gráfica do projeto e a certeza de uma boa curadoria de autores me mantinha/nos mantinha na expectativa em relação ao próximo da série.

Esses meus depoimentos em relação a Adília Lopes e à Ás de Colete tentam explicar a sensação de frustração quando do anúncio do fim da Cosac Naify, ocorrido mês passado. Como disse um amigo, em comentário de rede social, a Cosac foi importante não apenas pelo seu catálogo de qualidade, mas por ter sido uma editora de “intervenção”. Por ter criado um projeto editorial que pensava num conceito, que propunha um repensar nos critérios de qualidade e por manter a certeza de que é preciso, nos dias de hoje, não apenas erguer um acervo, também criar significado. Não é apenas lançar uma antologia de Adília Lopes, também é agrupá-la dentro de um universo, criar diálogos, formatá- -la num universo visual característico (por exemplo: eu não consigo dissociar a leitura de Enrique Vila-Matas do projeto gráfico criado pelos designers da Cosac, com o uso de quadrados interferindo nas capas, deixando assim sempre algo de fora).

Vivemos numa época em que não é mais possível dizer que “um livro é um livro é um livro”. Um livro não é mais só um livro; é um agrupamento de sentidos, que, inclusive, pode ter o formato livro. É mais ou menos como a tal da Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira um dia nos ensinou: teve uma hora que a coisa complicou tanto que ela era Maria José e uma outra coisa também. Por isso teimou em criar Adília. Sua própria personagem de ficção. E a Cosac acabou sendo isso: sua própria grande personagem de ficção.

(A série Ás de Colete ainda terá um último volume, promovido em parceria com a Cepe Editora: a obra reunida de Sebastião Uchoa Leite).