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A defesa da liberdade de expressão e de imprensa encerra um paradoxo: no Brasil, as empresas jornalísticas estão sempre na linha de frente dessa luta, mas não aplicam esses princípios aos seus subordinados nem às vozes que destoam de sua pauta dominante. As reações de associações patronais à Lei do Direito de Resposta, aprovada em novembro do ano passado, ofereceram mais uma oportunidade para expor essa contradição. As contestações, como de hábito, basearam-se no discurso recorrente sobre o que seria uma ameaça às liberdades – e, no limite, a imposição da censura – diante de iniciativas que regulem o trabalho jornalístico. Deveria ser suficiente apelar ao exemplo do que ocorre nos países democráticos para expor o ridículo do argumento. Mas não basta: seria preciso, ainda, ressaltar o comportamento leviano de quem se arroga o direito de publicar acusações sem fundamento, informações falsas ou distorcidas, tantas vezes decorrentes de vazamentos seletivos, ao mesmo tempo em que alardeia seu compromisso com os princípios clássicos do jornalismo, de respeito à verdade e ao interesse público.

Da mesma forma, seria impossível ignorar o cinismo dos que afirmam defender a liberdade mas impõem, velada ou ostensivamente, o silêncio a seus empregados. É uma situação comum aos trabalhadores de forma geral, e que se tornou mais flagrante com a internet, esse ambiente em que todos, supostamente, poderiam se manifestar. Não podem, por motivos que deveriam ser óbvios: afinal, a internet reflete as relações concretas de poder e, por isso, reproduz as hierarquias e constrangimentos do mundo do trabalho.

São conhecidas as recomendações, especialmente em períodos de eleição, para o comportamento dos jornalistas nas mídias sociais: sob o argumento de que representam a empresa – e, mesmo entre os mal remunerados, há quem vista essa camisa –, não devem expor suas preferências ou convicções. Assim, a concepção do jornalista integralmente dedicado ao seu ideal, que não distingue os tempos de trabalho e lazer, é apropriada pela empresa, como se o empregado lhe devesse lealdade mesmo nos momentos de folga. É uma tentativa de exercer o controle total sobre a vida do profissional, e que, no caso, conduz a um contrassenso: pois, embora deva defender os direitos de cidadania – entre os quais, naturalmente, o direito à livre expressão de ideias –, o jornalista acaba excluído deles.

Como os mecanismos de vigilância se multiplicaram no mundo virtual, são raros os que se manifestam criticamente em relação a algum tema que envolva a empresa onde trabalham. Sobretudo nos tempos atuais, em que a sucessão de demissões e a incerteza quanto ao futuro mantêm os profissionais em permanente estado de tensão e desencorajam qualquer atitude que possa ser vista como rebeldia.

Jornalistas sempre tiveram dificuldade em se assumir como trabalhadores. Mas, em outros tempos, tinham alguma clareza sobre as relações de hierarquia enganosamente disfarçadas por meio da aparente informalidade no convívio profissional. Afinal, não são todos jornalistas?

Sim, são todos jornalistas, e isto é o que geralmente escapa quando se critica a “grande mídia”: não se trata de uma estrutura à parte, mas de uma engrenagem movida por jornalistas, que submetem outros jornalistas.

“Nós fazemos o jornal do fulano de tal e ele quer essa matéria na primeira página todo dia”, disse certa vez um chefe de reportagem a um perplexo repórter – e o tal do fulano nem era o dono do jornal, mas um simples chefe de redação, talvez mais realista que o rei. Tratava-se de uma pauta artificialmente sustentada para servir de arma durante a então campanha eleitoral para governador do Rio de Janeiro, em benefício do candidato da “casa”, afinal vitorioso. Foi em 1986, mas poderia ter sido hoje: por mais que a prática do jornalismo venha se transformando radicalmente nos últimos anos, as relações de poder permanecem intactas. E, vez por outra, afloram com essa clareza sem cerimônia nem subterfúgios, absolutamente reveladora da maneira pela qual as coisas funcionam num jornal.

Que a nossa imprensa atua como partido político de oposição, já sabemos, e não por qualquer simplificação conspiratória, mas pela boca da então presidente da Associação Nacional de Jornais, numa famosa declaração publicada em março de 2010. Falta perceber melhor como essa imprensa age para silenciar seus jornalistas e, em consequência, as fontes, os fatos e as interpretações que deveriam aflorar para o debate público.

Entramos agora em mais um período eleitoral, na esteira da turbulência provocada pela autorização de abertura de processo de impeachment contra a presidente da República, uma causa que as grandes empresas jornalísticas assumiram sem trégua, ao longo de todo o ano que passou. Por mais importantes que sejam as alternativas de informação jornalística surgidas na internet, ainda são essas empresas que dão as cartas. Por isso, aliás, a necessidade da luta pela democratização dos meios, uma urgência sempre adiada e contestada por aqueles que concentram esse poder.