Venho falando sobre jornalismo, o futuro do jornalismo, a crise do jornalismo, saídas para o jornalismo, há alguns anos. De certa maneira, minha presença em eventos que discutem o tema é convocada como uma espécie de case que sugere: há uma possibilidade de recuperação (isso por conta das tantas reportagens que realizei nos últimos anos). Sim, há. Acredito que há. Mas hoje estaria sendo pouco sincera com vocês se não dissesse que essa luz azul no fim do corredor está bastante esmaecida. Não é falta de fé no jornalista nem no jornalismo, mas uma absoluta paralisação e mesmo algum horror frente ao comportamento que o modelo tradicional (inclui internet) vem demonstrando no Brasil nos últimos anos e, especialmente, nos últimos meses.
O que mais me surpreende é a falta de carinho com a inteligência dos leitores e uma subserviência ao mais puro lugar comum. A pouca abertura para opiniões que colidem e que, por isso, são tão importantes para aquele papel que um dia o jornalismo prometeu dar conta: o esclarecimento (como bem lembrou a pesquisadora Sylvia Moretzshon). Ao entronizar-se nesse senso comum, os jornais e TVs e sites noticiosos só sublinham que não são mais necessários, pois, ao contrário do velho contrato entre leitor e meio, não há novidade ou análise, que gere um ganho informacional, uma sinapse não sonolenta, uma razão para que eu e você continuemos a dar nossa atenção àquele determinado veículo.
Um exemplo recente foram as capas dos jornais brasileiros durante o mais recente festival de Cannes: grande parte simplesmente ignorou o protesto realizado pela equipe de Aquarius no tapete vermelho. Esse evento, que gerou enorme atenção internacional, é antes de tudo, jornalístico. Em termos de teoria, é hard news, é explosão, é acontecimento. E quais uma das funções do jornalismo? Noticiar essas ações que rompem com uma ideia de normalidade. Publicar essa imagem não faz de um veículo azul ou amarelo ou verde ou vermelho: publicar essa imagem é antes de tudo manter o contrato sobre o qual falei antes. Ao mesmo tempo, como diria Nelson Rodrigues, toda ausência é atrevida, e foi justamente essa ausência (não observada em jornais como Guardian e El País, que publicaram imagens do protesto) que gritou em tantos locais, a exemplo do blog de Mario Magalhães, no portal UOL. Segundo ele, o Brasil é agora uma “terra em transe” e que, se historiadores tentarem entender a história do Brasil através das capas dos jornais brasileiros neste momento, terão toda uma narrativa específica sobre o que conosco acontece.
É claro que não é fácil dar conta dessa incerteza e da falta de investimentos que vem há anos cortando vagas e minguando redações. É claro que falamos de empresas que querem ter lucro – não há nenhum problema em ter lucro, pelo contrário. A questão é que, em nome de uma sobrevida, a imprensa vem se comportando justamente ao contrário: não investe em leitores que não vão, definitivamente, aderir ao impresso e, pelo contrário, os espanta. Como essa operação acontece? Quando essa imprensa acredita que, hoje, os leitores consomem suas notícias como fontes únicas. Quando essa imprensa que tanto fala em modernização simplesmente ignora a enorme caixa de pandora polifônica que é a internet, especificamente as redes sociais.
A luz azulzinha, esmaecida, mas acesa, se deve ao fato de saber que, no final, estamos aqui, e de olhos abertos. Não se trata de um manifesto, de uma afirmação que tenta afagar a mim mesma: o fato é que queremos fazer. Queremos escrever e queremos continuar a promover fissuras onde elas forem necessárias. Nestes dias, quando o mais tradicional prêmio de Jornalismo do País, o Esso, informou simbolicamente que vai “dar uma pausa”, é fácil inferir que o jornalismo “tradicional” hoje pouco representa, por opção própria, a ebulição que acontece lá fora.
Essa ebulição e esses olhos abertos promovem pequenas e grandes sacudidas. Aqui, algumas delas, todas vistas nos jornalões:
- A Aurora, revista do Diário de Pernambuco, que Daniela Lacerda, Andre Duarte, Phelipe Rodrigues, Lenne Ferreira, Fellipe Fernandes, Luiz Fernando, Guilherme Carréra e tantos outros fizeram com enorme garra e primor. Sim, a revista acabou. Mas antes de mais nada por uma falta de percepção empresarial. Virou uma referencia nas conversas sobre produtos de qualidade que circularam no formato papel aqui no Estado.
- Campanha do Estadão com aplicativo Shazam que identifica musicas misóginas e convida seus leitores a refletir sobre a temática.
- Guardian: “Entre 1995 e 2015, a tiragem do jornal impresso caiu pela metade. Em compensação, o “Guardian” on¬line foi às alturas. Hoje, o site soma 120 milhões de visitantes únicos por mês, mais que o “New York Times”, e suas receitas publicitárias se mantêm em crescimento. O jornal não ficou imune à crise do setor. O quadro de jornalistas e editores encolheu, mas a independência jornalística e a reportagem investigativa não saíram da pauta. Exemplos: produção de centenas de matérias sobre corrupção governamental e empresarial no Reino Unido e as famosas coberturas do Wikileaks de Julian Assange, dos grampos telefônicos dos tabloides sensacionalistas britânicos e do vazamento de informações de espionagem pelo governo americano. Foram dezenas de prêmios conquistados, entre eles o Pulitzer, em 2014, pela cobertura do caso Edward Snowden.”
- Galileu. A revista tem, desde 2015, apostado em uma linha editorial conectada com o debate que as próprias redes sociais invocam. Para citar temas de suas últimas capas: cultura da pedofilia, o perigo da fé que substitui a medicina, trabalho escravo na indústria da moda, a sociedade brasileira do linchamento e um especial sobre gênero.
Os quatro exemplos, de diferentes lugares e tons, nos mostram que, ao contrário do que o jornalismo cor de sabonete nos quer fazer entender, o engajamento e a reflexão real sobre o mundo que nos cerca é uma moeda jornalística de alto valor. De enorme necessidade. O pior da crise do jornalismo é a preguiça de encarar o dissonante.