Em maio de 1908, Katherine Mansfield anotava em seu diário: “Acabo de terminar a leitura de um livro de Elizabeth Robins, Come and find me. Realmente um livro brilhante, esplêndido; cria em mim uma tal sensação de poder! Sinto que agora posso realmente imaginar do que as mulheres serão capazes no futuro”.
Em aparente contraste com a sensação de poder de que fala o trecho, a ficção de Mansfield está cheia de situações reveladoras dos temores e frustrações de suas personagens, em queda brusca no real. A pequena governanta se abre com um “Ah, como seria melhor se não tivesse de ser à noite!”. Ela teria preferido viajar de dia, mas é obrigada a pegar o barco noturno, em que felizmente há uma cabine “só para senhoras”. Os conselhos que recebe são: não saia do carro, não passeie pelos corredores do barco e verifique bem se fechou a porta do banheiro, quando for usá-lo. Em contos, dissemina e controla diversos sinais de alumbramento que são também sinais de mau agouro e, por fim, de traumático engano.
O fascínio por essa literatura advém também do fato de que Mansfield conduz suas personagens numa cadência deliciosamente perversa, espécie de espetáculo em grande angular da ascensão e queda de uma ilusão de felicidade, em que as sensações contrastam e contradizem a realidade que as produziu. O olhar se abre, a sensação se degrada, ou como disse Ana Cristina Cesar - leitora aguda e tradutora de Mansfield - o bliss é moeda falsa. Toda uma poética de desmascaramento do real, e fundamentalmente do real das mulheres.
Mansfield morreu aos 34 anos. Quando a tuberculose avançou sobre seu corpo, foi nas visões da natureza que encontrou novas “sensações de poder”. Fauna e flora tornam-se um antídoto, e do mais precioso. Não apenas paixão pelo detalhe, mas identificação com outras formas de vida: “quero ser um crocodilo”, “quando passo por uma banca de maçãs, paro e fico olhando até sentir que como se eu própria estivesse me tornando uma delas”. Em outros momentos, se sente tomada por uma alegria pueril, vontade de dar pulinhos sozinha no quarto. Não muito diferente de Bertha, a protagonista do célebre conto Bliss que, numa explosão de afetos, deseja correr em vez de caminhar ou rir à toa.
Sobre Mansfield, Virginia Woolf certa vez declarou: “A única escrita que invejei”. Esdras Nascimento conta que após a leitura de Bliss, Woolf tomou um porre e ficou gritando coisas do tipo “eu morro de inveja dessa mulher”. Mansfield escreveu resenhas de livros de Woolf, e sua admiração pela autora inglesa não era tampouco livre de tensões e sentimentos contraditórios. Interessa então voltar ao trecho do diário de Mansfield em que uma outra política da leitura, e da leitura de mulheres por mulheres, parece querer se esboçar.
Quem é a autora do livro que faz Mansfield vislumbrar o empoderamento das mulheres como um tipo de experiência coletiva e irrecusável, muito antes da existência do termo? Elizabeth Robins, autora de Come and find me foi uma sufragista, produtora teatral, escritora e importante atriz norte-americana, a primeira a levar aos palcos britânicos as controversas peças de Ibsen. Interpretou Hedda em Hedda Gabler, Nora em Casa de Bonecas e Hilda em Construtor Solness. No final do séc. XIX, Robins já havia percebido o tipo de exploração a que os agentes teatrais submetiam as atrizes e criou a sociedade New Century Theater através da qual viria a produzir montagens de Ibsen de maneira independente e fora do circuito comercial. O romance The Magnetic North, de 1904 e Come and find me de 1908 resultam da viagem realizada por Robins ao Alaska em 1900, em busca de seu irmão, Raymond Robins, de quem ficou sem notícias durante muito tempo. Não creio que sejam grandes romances, mas não são meras traduções de ideais, são relatos de um processo, o da experiência de quem procura refundar a liberdade na prática.
Hoje, o termo empoderamento remete tanto ao plano da reivindicação da justiça social quanto ao da invenção de novas formas de pensar e de sentir que determinam novos modos de agir, dizer e intervir. Também podemos encará-lo como substituto e reconfiguração da desalienação ou da consciência critica, presentes desde Kant, mas cuja referência mais importante está nos escritos de Marx sobre critica ideológica. Tanto no empoderamento quanto na desalienação subjaz a ideia de uma vivência que transforma o sujeito de forma irreversível - muito além de uma opinião ou de uma visada crítica tradicional, na qual há manutenção da distância entre o sujeito e o objeto de reflexão - uma experiência que só se confirma a partir de um desengano, atingindo um nível mais alto de aprendizagem.
Diferente da consciência crítica, o empoderamento seria a capacidade de criar uma dimensão existencial que reconfigura e altera a subjetividade ao assumir as consequências possíveis da sua própria ação. Portanto, pensá-lo no campo da experiência literária permitiria talvez reconsiderar o papel da identificação com as ações ficcionais. O escândalo do final da peça Casa de Bonecas de Ibsen, em que vemos a protagonista no limiar da saída de casa, deixando para trás marido e filhos, reside na ausência de um juízo sobre a personagem embutido na peça. Bernard Shaw chamou esse tipo de desfecho sem desfecho de “discussão”, uma vez que projeta o dilema para o público. A radicalidade dessa técnica fez com que vários encenadores, ao remontarem a peça, tenham alterado o seu fim, para evitar esse desamparo interpretativo. A ficção deixa de ser o lugar da encarnação de uma verdade construída para ser o lugar em que algo se desarma, trazendo à tona o engodo das relações sociais azeitado pela cultura.
Se o feminismo hoje produz uma nova partilha das vozes, dos saberes e dos poderes, a literatura tocada por ele desencadeará novos arranjos entre escrita e leitura, entre leitor e texto. Na base desse novo pacto de leitura, talvez exista para nós a possibilidade de articular a crueldade de Mansfield à sensação de poder que esta experimentou nas leituras de Elizabeth Robins. Nem a nostalgia, nem os modelos vazios, nem a solidariedade emotiva, nem a pretensão lacradora da inversão irônica, nem a literatura como escola, nem a visita-guiada ao drama do mundo... Não é seguro nem certo que os novos arranjos tenham de se dar no campo da ficção, não sabemos mais escrever essa literatura, e é certamente um desafio pensar qual literatura – em um sentido amplo – é capaz de sustentar e aprofundar a nossa crise.
Tudo que Katherine Mansfield toca
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- Categoria: Artigos
- Escrito por Laura Erber