A contagem regressiva já começou. Podem ficar tranquilos. Não vai demorar nada. Logo nos primeiros dias de Olimpíadas, alguém fazendo pose de grande intelectualidade irá disparar: “o brasileiro tem um problema sério emocional que pesa muito na hora de decidir e precisa ser resolvido”. Ao ouvir isso, mais uma vez me lembrarei da frase com a qual Gerardo Caetano, historiador uruguaio dos bons, costuma definir algumas situações: “quem fala algo assim, ou não sabe de nada ou sabe muito”.
E me lembrarei mais uma vez de 2008, do outro lado do mundo. Corriam os jogos de Pequim. Lá pela terceira final que algum brasileiro perdeu, escutei um diretor do lugar onde eu trabalhava chegar perto das pessoas que iriam entrar no ar e soprar, como se estivesse propondo grande reflexão: “é preciso levantar o debate da fragilidade emocional dos brasileiros. Sempre falhamos na hora de decisão”. Por coincidência, no dia seguinte, numa roda de imprensa, Carlos Arthur Nuzman, todo-poderoso cartola, deixava escapar, quase como quem fala em off e deixa o mais desavisado repórter naquela excitação, com o sentimento de que arrancou algo fora da pauta. “É preciso levantar o debate da fragilidade emocional dos brasileiros. Sempre falhamos na hora de decisão”, ou algo bem próximo. E seguiu falando na necessidade de trabalhar esse psicológico. Detalhe: aquela sincronia de discursos cartola/diretor não era ocasional. Eram muito próximos. Unha e cutícula.
Já tinha visto isso antes. Em Sydney, 2000, a cada insucesso vinha o discurso. O americano Karch Kiraly, considerado o maior jogador de vôlei de todos os tempos, foi muito mais preciso em seu diagnóstico na ocasião. “Tudo é uma questão da base do sistema esportivo. Nossa base é maior, tiramos um atleta para o alto nível de um grupo de milhares. É normal para todos os seres humanos sentir aqui e ali. Acontece com todo mundo. Se a base é mais ampla, obviamente teremos mais possibilidades de gente em cima e isso relativiza eventual questão emocional de um ou outro”. Bingo. Em meia dúzia de palavras, disse o óbvio.
A cada ciclo olímpico, o Brasil seguia, como seguiu de fato, aumentando a soma de dinheiro investida na preparação de atletas. Dinheiro público saído de estatais e do governo para o COB e confederações. Dinheiro que muitas vezes teve dificuldade no caminho entre Brasília e a sede da entidade e deu uma diminuída no trajeto, como vimos em alguns casos. Mas o sistema esportivo, o trabalho de base, o trabalho nas escolas, isso que realmente importa, nunca mudou.
Se sobre a época da mineração no Brasil, Eduardo Galeano concebeu a espetacular frase "o ouro deixou buracos no Brasil, templos em Portugal e fábricas na Inglaterra", podemos chegar perto disso no esporte. O acréscimo de verba no esporte brasileiro deixou ouro para alguns cartolas, contusões para alguns atletas e zero de legado para o sistema esportivo, a base escolar.
E tome de falar que o brasileiro é medroso, que sente na decisão. Um argumento covarde, sórdido, mentiroso, racista, eugênico. Sem base científica alguma. Mais do que isso, sem base histórica alguma. Mesmo na história do esporte. Ou será que era medo daqueles europeus enormes que aquele moleque de 17 sentiu quando deu um balão no gringo e botou pras redes, naquele distante 1958?
E como a história se repete como farsa, essa então se repete como a farsa das farsas. Propagadas ou por inocentes úteis ou por gente muito consciente do que está fazendo. Gente que empresta a voz a soldo, como naquela velha canção do Chico, do dono da voz e da voz do dono. Em um jornalismo cada dia mais de cócoras, onde o cinismo e o saber o lado do dono da voz para emitir a opinião imperam cada vez mais, prepare-se: faltam poucos dias para ouvir a velha cantilena.
Quem já se esqueceu de 2014? Faz tão pouco tempo… a Granja Comary parecia uma festa. Em meio a preparação de uma seleção, desciam helicópteros dos céus. Apresentadores de TV, caldeirões, porta da esperança, amigos do rei, patrocinadores. Sem falar nos anos de desmando de um futebol cuja cartolagem sequer pode pisar fora do país para não pegar xilindró. Por roubo. Foi nessa toada que os anos foram nos defasando, desbotando. E aí, quando vimos, era tarde… era 7 x 1. Os de sempre começaram a falar no tal emocional. Foi tão batido que triunfou naquele momento. Como a história não tem pressa, e mentiras tem tempo de validade, perdeu-se no tempo. Dois anos depois, ninguém mais acredita em algo assim. Até para o mais arrivista dos arrivistas a tese caiu de maduro. Temos problemas graves em nossa estrutura de futebol. Ponto. Os mesmos que diziam ser frágeis por aqui, cansam de vencer lá fora. Caiu de podre a tese.
Mas já se esqueceram disso tudo. Vai irritar a ingenuidade de alguns e a desonestidade de outros quando o debate sobre “a fragilidade emocional dos brasileiros” começar, poucos dias depois da pira olímpica ser acesa.
No fundo, é um processo e uma construção que conhecemos ao longo de nossa história. Se o esporte é metáfora da vida, como se gosta de dizer e tem lá um tanto de verdade nisso, não são diferentes as construções que se propõe para analisar um e outro.
Em nossa história, o que tivemos foi um projeto original (ou a ausência dele) que estava previsto desde sempre para o povo brasileiro: ser mão de obra desqualificada, ser escravo, ser trabalhador braçal sem direitos. Parte fundamental (e a mais cruel) desse projeto era fazer com que dominados tivessem a ideologia e cabeça dos dominantes. Por aqui se estabeleceu uma classe dominante mais perversa do que em qualquer outro lugar. Darcy, Capistrano e tantos outros falaram tão bem disso… acreditar que eram incapazes, frágeis, instáveis. Se boa parte desse projeto vem dando certo até aqui e parece de vento em popa nos últimos tempos, nem por isso se pode omitir toda a valentia, coragem, luta e sangue de nossa história. Adoram falar que por aqui se luta pouco mas, de novo por ingenuidade ou desonestidade, só alguém em um desses dois casos pode omitir que apenas um povo muito valente foi de tanta luta.
Serão frágeis emocionalmente os que foram pra rua na Confederação dos Cariris, Revolta da Cachaça, do Sal, Mascates, os confederados do Equador, a revolução Pernambucana. As Conjurações. Mineira, Carioca, a Conspiração dos Suassunas, Praieira, Mascates. Diferentes razões, muitas vezes diferentes camadas sociais, mas, na maior parte delas, o sentimento de ser senhor da própria história. Foram dezenas de revoltas indígenas. Outras tantas escravas e negras. O Maranhão com seus Balaios, a Bahia de tantas e inúmeras revoltas lutas pela independência, da Conjuração, dos Malês, da Sabinada, dos Guanais e da Guerra do Conselheiro, Belém e seus Cabanos, o Rio de João Cândido contra a Chibata e da Vacina e tantas outras que adoro o nome, como "Mata-Galegos", o sul da Farroupilha, do Contestado, as revoltas paulistas. A Revolta do Vintém, no Rio do fim do século XIX. As mulheres brasileiras, muito a frente do seu tempo, viveram em Natal sua revolta. Tem tanta coisa, tanta história de revolta em nossas páginas... É do mesmo povo frágil emocionalmente que estamos falando? E que vai se falar em programas e debates?
Tudo isso mesmo sendo um povo brutalmente reprimido ao longo dos séculos, massacrado como é até hoje nas favelas como era nas senzalas. Por uma polícia que nasce no Rio, sempre ao lado da Corte. Depois, nos anos 1930 do século XIX, vem as demais, com o intuito inicial e preponderante de reprimir as revoltas populares, que gritavam nas ruas contra a legitimidade do monarca que chegava. Nasce com o DNA e a função preponderante de bater em pobre, preto e povo.
Não surpreende que mais uma vez botem a culpa de eventuais fracassos não no dinheiro que some em contas de cartolas, não na falta de estrutura na base. E sim em uma “fragilidade emocional de um povo”. Sem qualquer respaldo científico. Não surpreende que o 01 dos cartolas olímpicos do Brasil tenha dito um dia que o modelo do atleta deveria ser Robert Scheidt, que, pela formação, seria exemplo de fortaleza emocional. O iatista merece toda reverência. Mas era difícil mesmo imaginar o cartola falando o mesmo do destemido Escadinha, o indomável líbero do vôlei brasileiro, capaz de suportar duas horas de pressão do adversário toda em cima dele. Criado numa favela de Pirituba, certamente não seria um bom exemplo de força emocional como um “alemão”.
Já vai começar. Do meu lugar, sabendo um pouquinho como funciona a engrenagem, estarei rindo tanto dos ingênuos quanto dos desonestos quando começarem a falar na “fragilidade emocional dos brasileiros”. E no fundo, com um tanto de dó, de pena e de compaixão. Porque no fundo, nada é mais triste do que a fragilidade emocional de alguém que empresta sua voz ao dono dela para algo tão desonesto. Compaixão por alguém que, no fundo, assim como na canção do Chico, entrega a voz a um dono e “vai perdendo a luz”.