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O historiador e epistemólogo François Dosse

Por Igor Gomes

 

Michel de Certeau (1925-1986) foi um intelectual francês de caráter múltiplo: jesuíta, historiador, antropólogo, sociólogo e cofundador da escola freudiana de Paris (vertente lacaniana). Todas essas facetas se revelaram em seus livros, dos quais os mais conhecidos são A Invenção do Cotidiano e A Escrita da História. Além disso, tinha uma relação muito intensa com o Brasil e particularmente com o Nordeste - chegou a pedir à Igreja para saber se seria possível ser missionário no Brasil. Neste ano se completam três décadas de seu falecimento, motivo pelo qual sua obra vem sendo rediscutida.

Entrevistamos o historiador e epistemólogo François Dosse, especialista em Certeau, sobre algumas reflexões possíveis acerca dessa obra rica, mas ofuscada pela notoriedade de outros intelectuais franceses (entre eles, Foucault). Em suas respostas, Dosse apresentou um pouco das ideias de Certeau - suas preocupações em resgatar alguma coisa do protagonismo do indivíduo ante as opressoras estruturas sociais, a importância de um projeto social coletivo que honre o passado sem ser por ele habitado; e a ideia da "cidade vivida", que nos lembra que a História ocorre "ao nível do solo". 

Dosse estará no Recife nos dias 18 e 19 participando de colóquio na UFPE, em que analisará as ideias de Certeau para a compreensão de práticas culturais e da "invenção do cotidiano".  

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Quando Michel de Certeau fala em “invenção do cotidiano”, mostra como se estruturam os limites sociais do homem. Diz ele que “o cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia, nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão no presente [...] é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior”. E que esses limites, aparentemente invisíveis, podem ser estudados e expostos por meio da análise das manifestações concretas desse cotidiano: a alimentação, a dinâmica das ruas (uma influência de Pierre Bourdieu, penso). Mas, como um todo, a obra dele se dedica mais a olhar as criatividades das pessoas para contestar ou se desvencilhar nesse cotidiano e isso me parece claro pela ideia de “antidisciplina”. Gostaria que o senhor começasse comentando essas ideias.

François Dosse - Não podemos dizer que Certeau considera o cotidiano como um lugar de escravização, pelo contrario, ele convida as ciências sociais que, nos anos 60 tendem mais a desprezar o cotidiano (a alimentação, a moradia, o modo de viver individual, os transportes), a ter um interesse por aquilo, porque é o lugar da criatividade humana, da singularização. É o oposto de Bourdieu, que definiu uma sociologia da reprodução privilegiando o jogo de estruturas, de determinações fortes. Certeau, ao mesmo tempo que leva em conta as condições objetivas, desloca o seu olhar para os atores, os indivíduos que evidenciam as práticas de desviamento, de apropriação. Assim, ele é um dos pioneiros da virada pragmática atual que leva em consideração os atores e questiona o que “agir” significa.

No Brasil, páginas no Facebook ou campanhas usando hashtags (#) na mesma rede social vêm trazendo à tona debates importantes. Dois exemplos são os sobre misoginia e feminismo (como a campanha #MeuPrimeiroAssédio, na qual mulheres relatavam abusos e assédios que sofreram nas mãos de homens) e sobre o lugar da empregada doméstica na nossa sociedade (Página Eu Empregada Doméstica, na qual domésticas relatam os abusos e preconceitos sofridos em seus locais de trabalho). A maioria dessas narrativas são em primeira pessoa.

François Dosse - Você menciona um mundo, o nosso, que Certeau, morto em 1986, não chegou a conhecer muito; um mundo de deslocamento para o virtual, da Internet e da multiplicação das redes sociais. Ao mesmo tempo, podemos dizer que a obra dele ajuda a pensar essas novas práticas porque ele as antecipou. Na sua concepção da cultura, Certeau sublinha essa parte da individualização que faz com que o leitor dum livro possa se livrar de regras e que um consumidor em geral consiga reintroduzir a sua subjetividade nos modos peculiares de apropriação, de afastamento do que a indústria cultura espera dele. Também, a preocupação constante de Certeau é de deixar surgir por baixo da escrita, a fala; por baixo da dominação, a resistência. Tem aí um eco fundamental entre os trabalhos sociológicos dele sobre a nossa contemporaneidade e os trabalhos que ele tem como especialista do século 17, da mística, uma refração de dentro das instituições religiosas.

Michel de Certeau dedica um livro a pensar a história moderna da escrita (A Escrita da História) e analisa os trabalhos de Freud e a história religiosa do século XVI: situações distantes no tempo. É possível pensar em um olhar de De Certeau para uma profusão de narrativas pessoais como as de #MeuPrimeiroAssédio e “Eu Empregada Doméstica”? Esses relatos podem ser inseridos em uma historiografia? Como se aproximar para estudar essas práticas narrativas por meio da História no presente?

François Dosse - A contribuição de Certeau em termo historiográfico é muito importante. É ele que definiu a “operação historiográfica”, expressão que será usada mais tarde por Paul Ricoeur no livro “A memoria, a história, o esquecimento” (2004 no Brasil). Para Certeau, o discurso do historiador depende de uma epistemologia mista, que, assim como a psicanalise, acontece entre ciência e ficção. Em nenhum momento, ele representa a encarnação de um julgamento divino e neste sentido Certeau prega a modéstia do historiador que não se expressa a partir de um posicionamento de pedestal. Ele afirma que “a historia nunca é algo seguro”, o seu sentido sempre está aberto para as próximas gerações. A operação historiográfica fica no cruzamento de três operações segundo Certeau: o produto dum lugar, o produto de uma prática incorporada no social e o produto de uma escrita.

Certeau entendia o escritor como “o moribundo que procura falar”, sempre relacionando o ato de escrever com a morte. Pelo que entendi, ele parte da visão de que, com o Renascimento, Deus “retirou-se do mundo” e a escritura sagrada não é mais a intérprete do sentido verdadeiro da Palavra. E isso fez com que o ato de escrever – antes associado ao sagrado – passasse a ser “profano”, o que empoderou o escritor. A partir de então, quem escreve quer se perpetuar e, ao mesmo tempo, escrever é manifestar o desejo de sobreviver na atenção do leitor, bem como de modificar essa atenção.

Na sua opinião, como isso pode ser pensado em um mundo permeado pela ubiquidade das mídias e pelas possibilidades ofertadas pela internet e redes sociais, que reconfiguraram também as dinâmicas do meio literário?

François Dosse - Cuidado para não dar uma imagem de Michel Certeau que seria mórbida, a imagem de um especialista da deploração, da perda. Ele é totalmente o contrário. Apesar de encontrar um pensamento dele que define a prática do historiador como “um túmulo para a morte”, apesar dele afirmar que a escrita surge de uma perda, é importante entender que é justamente para ceder o lugar ao futuro, para honrar o passado, para criar um lugar para ele com objetivo de construir um projeto individual e coletivo e que não seja habitado pela passado. Neste sentido, Certeau é muito freudiano e tenta evitar a compulsão da repetição, que é mortal. Na nossa sociedade que se satisfaz numa febre de comemorações, ele é mais uma vez uma fonte essencial para definir um novo horizonte de espera.

No Brasil, vivemos um momento de questionamento sobre a ocupação do espaço urbano. Ocupe Estelita, Ocupe Santa Teresa, Ocupa Golfe e muitos outros movimentos surgiram ou foram fortalecidos pelas ideias e ações do Occupy Wall Street (2011). Por isso, achei interessante a ideia de Certeau de que a cidade é uma “guerra de histórias” produzidas por todos os enunciadores: são as narrativas que tornam a cidade crível. Mas, como ele mesmo pontua, as “grandes histórias” podem esmagar as “pequenas histórias” – um alerta para o perigo de nos fiarmos por um “enunciador universal” e ignorarmos os diversos enunciadores em jogo.

São esses diversos enunciadores que procuram se tornar visíveis novamente, tanto pela ação material quanto pela publicação de narrativas próprias na internet ou em meios “marginais” (panfletos etc). É possível falar em antidisciplina, neste caso? Pelo que entendo, me parece que o conceito se relaciona com a ideia de consumo de bens materiais (como comida e afins), mas nesse caso talvez possamos passar à ideia de “consumo de narrativas” (via livros ou mídia).

François Dosse - Você aborda um ensinamento fundamental de Certeau quando ele mostra a importância, por baixo dos planos arquitetônicos, da cidade vivida, da diferença entre espaço urbano e lugar urbano. Ele se interessa mais uma vez às práticas dos atores, aos “praticantes” do espaço urbano a partir do que ele chama “os enunciados das caminhadas” ou “as retóricas ambulatórias”, que são formas diversas de apropriações do espaço urbano pelos habitantes da cidade. Ele escreve no livro “A invenção do cotidiano” : “A historia começa ao nível do solo, com passos”. Não poderíamos dizer melhor.