Lima Barreto1 Site

 

Talvez nunca tenha se falado tanto em Lima Barreto (1881-1922), autor de livros cujo teor ainda impressiona pela atualidade. O fim do ano passado marcou os 100 anos da primeira edição de Triste Fim de Policarpo Quaresma, sua obra mais conhecida e que nos traz reflexões sobre nacionalismo, identidade, política, o lugar social da mulher e outros temas.

Neste mês, uma grata novidade: a Penguin-Companhia lançou o livro Sátiras e outras subversões, uma reunião de 164 textos de Lima Barreto, todos publicados por ele em revistas satíricas com pseudônimos. Neles, Lima usou o humor para tratar de questões da época de forma acessível e se aproximar do público leitor.

LEIA TAMBÉM: Cegueira em verde e amarelo - os 100 anos de Triste Fim de Policarpo Quaresma

LEIA TAMBÉM: 12 romances que explicam o Brasil

O trabalho de levantar esses textos é parte do doutorado do pesquisador Felipe Botelho Corrêa (Universidade de Oxford, Inglaterra), que se valeu dos trabalhos de Francisco de Assis Barbosa (o primeiro pesquisador de Lima Barreto) e de pistas deixadas por Carlos Drummond de Andrade – o poeta fez referência a alguns dos pseudônimos usados por Lima em um trabalho jamais publicado. A partir disso, Corrêa foi atrás de provas da autoria dos textos.

Entrevistamos Felipe Botelho Corrêa sobre o lugar de Lima Barreto em nossa literatura, a importância de textos novos dele aparecerem no atual contexto político e sobre a visão de literatura desse autor. Mais do que nunca, Lima Barreto é um autor que precisa ser lido e entendido, como forma de compreender que a “crise” - independentemente da “cara” que ela tenha – é uma construção atual de raízes profundas e antigas.

Uma biografia de Lima Barreto, assinada pela historiadora e antropóloga Lilia M. Schwarcz, está em fase de preparação pela Companhia das Letras. A previsão de lançamento é para 2017.

***

Lima Barreto foi um autor conhecido tanto por sua veia urbanística (lê-lo é conhecer os subúrbios cariocas, nesse sentido ele tem um tom documental). Mas também há questões políticas e sociais fortemente imbricadas em sua obra. Sabendo disso e olhando para o momento em que vivemos, como o senhor entende a importância de um livro com inéditos de Lima chegar ao mercado?

Felipe Botelho Corrêa: O livro com os inéditos é um farto cardápio de questões políticas e sociais que perpassaram a Primeira República e que ainda persistem no momento em que vivemos atualmente não só no Brasil, como no mundo. As mais de 500 notas explicativas e as oito seções temáticas em que o livro foi dividido ajudam o leitor a perceber que estamos diante de um escritor dotado de um vasto repertório intelectual e extremamente consciente e crítico de seu tempo. Os textos são deliberadamente curtos e acessíveis, mas não deixam de ser breves estudos sobre o contexto político em que viveu. Esse tema é precisamente o eixo principal de uma das seções do livro, em que ele estuda com “curiosidade de bacteriologista” as práticas eleitorais e políticas da Primeira República. Em vários textos enfatiza o caráter paternal “num país fantástico como o nosso”, chamando a atenção dos leitores para as contradições entre os princípios republicanos baseados nas leis e as maneiras como esses princípios vão sendo desrespeitados regular e seletivamente. Enfatiza ainda, em diversas ocasiões, a total falta de conhecimento e de ideais políticos por parte dos dirigentes da cidade e do país em relação àquilo que representam. Atos de corrupção, como a compra de votos de deputados através de “rodolfinhos” e “reservados”, espécies de mensalão da época, são expostos numa estratégia que usa o humor como forma de denúncia.

No âmbito internacional, Lima Barreto tampouco arrefece. Logo após o fim da Primeira Guerra Mundial, ele se pronuncia como descrente das soluções diplomáticas para a resolução dos conflitos, já que faltaria sinceridade nas partes envolvidas e sobrariam pretensões de expansão militar, o que acabou por contribuir para a eclosão de um novo conflito décadas depois. Há também observações contundentes sobre a sociedade desse período. Em vários textos vemos um Lima Barreto observador dos costumes, seja através de mudanças ou de conexões com tempos passados. Ele comenta as reformas na cidade, as conversas entreouvidas nas ruas, os passeios de bonde, as práticas de comércio, os cafés da vida boêmia, as expressões populares, os assuntos do cotidiano, a violência urbana, as falcatruas do dia a dia, a emergência do feminismo e muitas outras expressões dos anseios da modernidade carioca. Nesse sentido, há várias pontes que o leitor pode fazer com o momento atual. No texto “O nacionalismo”, por exemplo, publicado em 1920, é possível fazer muitas conexões com a crise da questão da imigração e da ascensão de um nacionalismo de extrema direita que vem ocorrendo em vários países e que acabou por impulsionar, de certa forma, o Brexit, por exemplo. No Brasil da época de Lima Barreto essa questão da imigração e do nacionalismo estava efervescente e ele se posicionou de maneira incisiva:

A bem dizer, a carestia atual entre nós é fabricada por aquela gente que de há muito se pôs além e acima do ideal de pátria, é a gente da finança que vai até a funestas guerras para ganhar dinheiro e todo o nosso nacionalismo contra ela é vão e ridículo. Para derrubá-la é preciso abalar e modificar ideais e sentimentos [...]. O mal-estar da nossa vida não vem da massa geral de estrangeiros, tão necessitada como a maioria dos nacionais; vem da injustiça das relações econômicas entre pobres e ricos. Cessem elas, que o mundo será um paraíso e a pátria ficará quase sempre sendo para cada qual o lugar em que nasceu.

Entre os 164 textos recém-descobertos, há vários como este, muitas vezes fazendo uso da sátira e de um tom mais bem-humorado, mas sempre com uma lucidez e uma mordacidade extraordinárias. Um livro como esse, que traz à tona uma descoberta incomum de tantos textos que ficaram dispersos e camuflados em jornais e revistas, é de grande importância não só para um melhor entendimento da obra de Lima Barreto, como também de uma nova perspectiva sobre as várias questões culturais, sociais, econômicas e políticas que eram relevantes não só no Brasil das primeiras décadas da era republicana, mas no momento em que vivemos. Isso nos dá mais uma ferramenta para ter uma visão histórica e literária sobre o nosso país.

Em texto por ocasião dos 100 anos de Triste Fim de Policarpo Quaresma, o senhor diz:

Para ele [Lima Barreto], o conceito de humanidade deveria se sobrepor ao de pátria, e a literatura deveria ser a arte que, tendo o poder de transmitir sentimentos e ideias, deveria trabalhar pela união da espécie, e não pela construção de conflitos, como a Primeira Guerra Mundial que já estava em curso quando, há cem anos, Lima Barreto bancou do próprio bolso a primeira edição deste livro que se tornou um clássico.

A partir disso e da leitura de outras obras do autor, é possível falar que há uma espécie de "projeto" consciente do escritor em questão para a literatura? Gostaria que o senhor falasse sobre isso e como a reunião organizada pelo senhor se encaixa no conjunto da obra que se conhece do Lima Barreto.

Felipe Botelho Corrêa: O projeto literário de Lima Barreto é algo evidente não só no conjunto de sua obra, mas também em alguns textos que explicitamente abordam o tema, como é o caso de “Amplius!”, de 1916, e “O destino da literatura”, que é de 1921. Entre os vários aspectos desse autoproclamado projeto literário que dá direção à produção de Lima Barreto, há um que é fundamental: seu anseio por uma “literatura militante”. Esse conceito engloba várias dimensões que o próprio autor menciona ao longo de sua obra e que já apareciam na fortuna crítica que surgiu a partir da década de 1950: a busca de solidariedade entre indivíduos e entre sociedades (lembremos que boa parte de sua obra é escrita tendo como panos de fundo a Primeira Guerra Mundial e a tumultuada Primeira República); o esforço por uma descolonização literária que passasse não só pela construção de uma “fala brasileira” (maneira pela qual Manuel Bandeira caracterizou o esforço literário de Lima Barreto), mas também de uma literatura crítica, interessada e conectada à realidade onde era produzida; uma escrita menos contemplativa e preocupada com as categorias de beleza, e sim uma literatura mais empenhada em intervir no debate das questões sociais e políticas de sua época. Esses e outros aspectos da literatura militante de Lima Barreto já eram conhecidos, mas faltava ainda um melhor entendimento de como sua produção militante era disseminada. E aí fica claro que suas colaborações na imprensa foram a espinha dorsal desse projeto literário.

De tudo que conhecemos de Lima Barreto, pouquíssimos são os textos que não passaram pela imprensa antes de serem publicados em livro (Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá é uma das poucas exceções). A organização desses textos espalhados pela imprensa foi feita, em grande parte, só com o trabalho de Francisco de Assis Barbosa, décadas depois da morte de Lima Barreto. Barbosa, contudo, não foi a fundo nas revistas onde os textos apareciam regularmente. Apesar de terem sido os meios que mais publicaram textos de Lima Barreto, pouco se sabia, por exemplo, sobre o papel de revistas ilustradas de grande circulação como Careta, Fon-Fon e ABC no projeto literário do autor. Ao contrário dos jornais diários, que tinham circulação local ou no máximo regional, essas revistas enviavam regularmente para outras cidades do território nacional cerca de 70% de suas tiragens semanais que chegavam a 100 mil exemplares. Guardadas as devidas proporções, é possível dizer que esses eram os meios de comunicação de massa da época, e uma das maneiras mais eficazes de se tornar “patrimônio comum do espírito dos contemporâneos” (objetivo do próprio Lima Barreto) através de uma linguagem acessível e cativante. Essas revistam faziam muitas vezes a iniciação literária de alguns leitores, como foi o caso de Carlos Drummond de Andrade, que era um ávido colecionador da Careta e da Fon-Fon quando crescia em Itabira no interior de Minas Gerais. A apreciação de Drummond por estas revistas era tanta que acabou perdurando na maturidade e ele chegou até a produzir o manuscrito de um Dicionário de pseudônimos brasileiros baseados nessas revistas e que foi um guia importante na pesquisa que identificou os textos de Lima Barreto que permaneciam desconhecidos até agora.

O exemplo de Drummond é apenas um entre tantos que atestam o impacto que essas revistas tinham naquelas primeiras décadas do século XX. Lima Barreto tinha plena consciência disso, e nesse sentido fica difícil sustentar a tese de que a imensa colaboração dele nessas revistas era apenas uma maneira de ganhar dinheiro. O potencial de disseminação de revistas populares ilustradas como Careta e Fon-Fon, que tinham um viés satírico, era visto por Lima Barreto como uma maneira fecunda de disseminar sua militância literária. É nessas revistas que vemos o lado satírico e mordaz do autor carioca, criticando os costumes, as instituições e as ideias de seu tempo sem perder o bom humor. A maior parte dos 164 textos que foram descobertos agora se encaixam nessa vertente da obra de Lima Barreto que faz uso da sátira como uma maneira de ser subversivo e militante, já que para ele “o ridículo mata e mata sem sangue.”

O entendimento de Lima Barreto como pré-modernista (e não modernista) se deve a quê? Parto da ideia que o autor era bastante moderno em seus temas, então gostaria que o senhor trabalhasse a forma como ele foi localizado na nossa literatura. E sobre a importância de situá-lo em outro lugar.

Felipe Botelho Corrêa: Há dois aspectos nessa questão: a nacional e a internacional. Na historiografia literária brasileira, a tendência tem sido dar uma centralidade ao movimento que acabou tendo como emblema a Semana de Arte Moderna realizada em São Paulo em 1922, que é o ano da morte de Lima Barreto. Longe de mim querer refutar o papel catalisador do movimento liderado por Mário de Andrade e Oswald de Andrade, mas o termo “pré-modernista” me parece inadequado quando tratamos de Lima Barreto. Ele foi um precursor e pioneiro do modernismo brasileiro, e quem em muitos aspectos botou o pé na porta e abriu novas possibilidades. Não é à toa que escritores como Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade fizeram reverências ao autor de Todos os Santos [bairro onde morava Lima Barreto]. A ida de Sergio Buarque de Holanda ao Rio em 1922 a pedido de Mário é uma boa ilustração dessa afinidade entre eles. A ideia era que Lima Barreto se juntasse ao grupo da Klaxon e colaborasse com eles, mas o carioca rechaçou o convite e ainda soltou, como não podia deixar de ser, umas farpas satíricas na Careta conectando a Klaxon com o futurismo de Marinetti e propagandas de automóveis dos EUA. Mário ainda retrucou a farpa na Klaxon, mas a possibilidade do diálogo se encerrou semanas depois com a morte de Lima Barreto.

É difícil pensar em características da produção literária desses autores relacionados à Semana de 1922 que já não estivessem presentes em Lima Barreto, que cotidianamente achincalhava a literatura de sorriso da sociedade e os anseios de beleza literária completamente desconectados da realidade do país. Barreto já estava à procura de um instrumento de trabalho que o aproximasse de uma ampla gama de pessoas e que descobrisse e discutisse as questões de seu meio e de seu país, como o próprio Mário pregava. Apesar de não terem feito parte do mesmo movimento (por pouco), Lima Barreto não deixa de ser um modernista pioneiro. Essa exclusão de Lima Barreto na historiografia da virada modernista no Brasil faz ainda menos sentido quando olhada sob a perspectiva internacional dos estudos sobre modernismo. Por esse olhar, fica evidente na vasta obra de Lima Barreto o impacto da Primeira Guerra Mundial, a busca por novas formas de expressão e linguagem, o crescimento das cidades que vão se expandindo rapidamente, o avanço dos transportes, a imigração de massa, a questão do negro e da miscigenação na cultura e na sociedade brasileira, a redescoberta do Brasil e de um enfrentamento criativo de sua condição pós-colonial, o surgimento da cultura de massa, entre outras questões que dão um caráter inovador e precursor àquilo que anos depois seria desenvolvido com mais amplitude na produção cultural brasileira. Um outro caráter modernista de Lima Barreto que por vezes é negligenciado é a sua constante colaboração em revistas mencionadas acima, criando inclusive a Floreal em 1907, que se encaixa perfeitamente na discussão das pequenas revistas modernistas que o Ezra Pound faz em seu famoso ensaio “Small Magazines”, publicado em 1930. É nesses âmbitos que vejo Lima Barreto como um modernista. Não se trata de um modernismo de vanguarda, mas de uma obra que concatenava os processos de modernização e de transformação social que o Brasil e o mundo atravessavam naquele momento.