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Os fatos – A autobiografia de um romancista, tradução de Jorio Dauster, projeta ao grau máximo a relação entre Philip Roth (autor) e Nathan Zuckerman (narrador). Em seu eixo narrativo, uma troca de missivas, na qual a última palavra fica, não por acaso, com Zuckerman – o triunfo da ficção. No meio, entre uma carta e a outra, Roth decide por contar a sua vida “de verdade”, através de um manuscrito que se diz fiel aos acontecimentos, afastado de qualquer condução imaginativa. Quer publicar uma autobiografia e precisa do aval de seu personagem. No livro, a premissa de Walter Benjamin desenvolvida no ensaio O narrador – Considerações sobre a obra de Leskov não o configura como factível. Grafa o alemão: “Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais”. Talvez, pelo fato de que o texto só tenha aparecido no Brasil após diversas outras obras das quais Zuckerman faz parte, a nossa aproximação com o homem beira o inevitável.

Maestro é o nome do primeiro capítulo de O escritor fantasma, romance publicado em 1979, no qual Roth estabelece, enfim, Nathan Zuckerman como um dos narradores mais importantes da literatura norte-americana contemporânea. O aspirante a escritor aparece pela primeira vez em My life as a man, porém, a partir do livro dedicado a Milan Kundera, Zuckerman torna-se protagonista narrativo na obra de Roth, e vem – a desaparecer – somente em O fantasma sai de cena (2007). Para tal instauração de seu narrador, Roth inicia o romance com o encontro entre Zuckerman e Emanuel Isidore Lonoff: menos uma lembrança descrita de forma excelente, mais uma passagem na qual fica posta a questão da figura do escritor – questão essa muito cara às narrativas do norte-americano. Aqui, o escritor como espécie de regente que suporta toda a orquestra ao seu redor – a vitrola quebrada, o destino, a ficção, o “eu” que envelhece.

Eis como E. I. Lonoff é descrito por Zuckerman: “A casa de madeira, sede de uma fazenda, ficava no fim de uma estrada de terra, trezentos e cinquenta metros morro acima nas Berkshires e, apesar disso, o homem que saiu do escritório para me cumprimentar cerimoniosamente envergava um terno de gabardina, uma gravata de crochê azul, fixada na camisa branca com um prendedor de prata liso, e sapatos pretos tão bem-escova-dos e sacerdotais que me fizeram pensar que ele acabara de descer de uma cadeira de engraxate, e não do excelso altar da arte”. Roth destitui, nesse momento, o autor de seu locus inatingível e o coloca numa cadeira de engraxate – um lugar comum, qualquer, distante do suposto privilégio da cultura, da literatura. Neste ponto, o leitor confronta-se com uma ambiguidade e, a seguir, vem a pergunta: O autor pode, ao mesmo tempo, ser maestro e sujeito comum? Ou ainda, o autor pode, simultaneamente, ser criador e criatura?

Michel Foucault, em O que é o autor?, afirma que o texto aponta, de alguma maneira, para essa figura que lhe é exterior e anterior. De acordo com o filósofo, o nome do autor caracteriza um certo modo de ser no discurso; esse discurso não é “uma palavra cotidiana, indiferente, uma palavra que se afasta, que flutua e passa, uma palavra imediatamente consumível”, é palavra que recebe status. Foucault agrega à representatividade do autor uma importância do discurso e sentencia: o sujeito fala de algum lugar, portanto, não é livre. Mas, esse lugar oscila e, dita feita, volta-se o foco para Roth e Zuckerman. Um autor é molde vivo dos discursos que o atravessam e, por consequência, dos lugares que cruza. Esse mosaico desequilibrado de personalidade é peça constante na obra de Roth, sobretudo, na concepção de Nathan Zuckerman.

Difícil não lembrar também de Philippe Lejeune e seu O pacto autobiográfico: de Rosseau à internet. Nas suas postulações, o francês enumera mecanismos dos quais qualquer autor pode fazer uso para validar a categorização de autobiografia à sua narrativa. A princípio, o leitor pode alinhavar Os fatos às definições de Lejeune – a constância do eu; as confirmações, no próprio texto, de que, sim, é Philip Roth (o nome presente na capa do livro) quem está falando – mas, é muito breve o instante do engano. Zuckerman está lá, e Zuckerman não existe. Quando decide por pedir uma opinião ao seu narrador, novamente, Roth balança o conceito de estatuto do autor. Ele quer contar toda a verdade de sua vida, mas, como conseguir, de modo pleno, sem que antes a ficção o autorize?

Gérard Genette, em Palimpsestes, apresenta algumas categorias às quais ele intitula de transtextuais – presença de um texto em outro texto. Uma delas, a arquitextualidade, configura-se como jogo de tensão entre o que, de fato, o texto é e o que ele pretende como gênero. Ao longo de sua obra, Roth repensa a estrutura de arquitextos como o romance, o conto e a autobiografia. Os fatos é um exemplo de sua tenacidade à formação de uma escrita de si; para além, é um atestado de seu projeto literário. Roth compreende o eu a partir de uma identidade fixa, porém, extremamente mascarável. O escritor norte-americano parece promover um tipo de maratona na qual todos os corredores possuem a mesma identidade, mas os nomes e a aparência são diferentes. Não existem vencedores nessa corrida esquizofrênica. Não obstante, a linha de chegada insiste em ocupar o campo de visão como lembrança de um desejo final – o deleite do gozo sujeito à morte que acompanha todo o fim. A escritura que se realiza sempre incompleta, pois o eu, por mais que tente, não dá conta do mundo.

No âmbito de uma identidade que se expande, veloz, na escrita, o judaísmo é ponto de imutabilidade para Roth. No seu nome de autor está o ser judeu. Desde o início da carreira, ele esteve em constante processo comunicativo com a sua origem coletiva. Dividido entre dois territórios políticos delineados por interlocuções falhadas, grupos dominantes e enunciados perdidos, o escritor norte-americano experimenta um inevitável conceito de pertencimento duplo e, possivelmente, turbulento. Roth está posto numa geração de judeus norte-americanos que se desviou, com entusiasmo, dos “(...) costumes e percepções antiquadas e socialmente inúteis, herdados dos países de origem de seus antepassados”. Seus pais, de alguma forma, permaneciam ligados a tais hábitos antigos e aos vínculos ortodoxos. Roth explica o ponto de vista de seu grupo, naquela época: “Sobre ser judeu não havia mais nada a dizer do que havia a dizer sobre possuir dois braços e duas pernas. Teria nos parecido estranho não ser judeus — e mais estranho ainda ouvir alguém anunciar que não queria ser judeu ou que pretendia deixar de sê‑lo no futuro.” O manuseio identitário em sua literatura passa, sendo assim, pela história de uma sociedade. As máscaras podem consumi-lo, pois trazem consigo o poder supremo do acontecido, a potência das sucessões de anteriores abalos e glórias coletivos.

Escreve Roth a Zuckerman: “Se este manuscrito significa alguma coisa, essa coisa é meu cansaço com as máscaras, com os disfarces, com as distorções e as mentiras”. Ou seja, a sua fadiga com o fazer literário, com a sua própria poética da linguagem e, por consequência, com a sua genealogia. O escritor almeja olhar-se no espelho sem o filtro das saídas que só a literatura pode (talvez) oferecer. “Depois dos cinquenta, precisamos encontrar meios de nos tornar visíveis a nós mesmos.”, afirma ainda na carta na qual os motivos pelo seu esgotamento diante da ficção são detalhados: o colapso nervoso que o autor vivenciou na década de 1980, a morte de sua mãe, os fatais problemas de saúde de seu pai.

Nesse contexto, a ideia de escrutinar a realidade é tida como um impulso de renovação para permanecer vivo. Ao reviver instantes de sua infância e adolescência, paixões como os jogos de beisebol, episódios de afeto e liberdade com seus colegas, Roth ergue-se, cambaleando, com o propósito de que em sua franqueza estará a salvação. Então, Zuckerman ganha voz – o discurso do personagem sobrepõe-se ao do escritor. A transparência que nos foi sugerida é desfeita pela possibilidade de outra geografia narrativa, em que não existem culpados, mortes definitivas; e a voz do eu não dói. “Na ficção, você pode ser muito mais verdadeiro sem se preocupar o tempo todo em causar dor diretamente. Aqui você tentou fazer passar por franqueza o que mais me parece uma dança dos sete véus — o que há nestas páginas é como um código para algo que está faltando. A inibição se mostra não apenas como uma relutância em dizer certas coisas, mas, o que é igualmente decepcionante, como uma redução do ritmo, uma recusa em alçar voo (...)”, sentencia o personagem.

É interessante observar a redenção do texto ficcional logo após o que, supostamente, se chama de autobiografia. Para que Zuckerman falasse, foi preciso sublinhar uma sequência de eventos; foi necessário, enfim, narrá-los. E Roth admite essa dificuldade em dissociar, por completo, o real do imaginário, da memória. “Reconheço que uso a palavra ‘fatos’ nesta carta em sua forma idealizada e de modo muito mais simplório do que desejo expressar com o título. Sem dúvida, os fatos nunca vêm simplesmente até as pessoas, mas são incorporados por uma imaginação formada por experiências anteriores. As lembranças do passado não são lembranças de fatos, mas lembranças de como os fatos foram imaginados”, diz a seu narrador. A memória é uma impostura, assim como os fatos que a constituem.

A impressão é de que Os fatos – A autobiografia de um romancista foi uma obra cuja força de impacto, nos leitores, aconteceu no ano de seu lançamento nos Estados Unidos (1988). Hoje, Roth está recluso, parou de escrever, Zuckerman há muito sumiu. Apesar de o livro permanecer como um ótimo objeto para debates críticos e acadêmicos, algum detalhe foi diluído e escapou, lost in spacetime. Nesta nossa conjuntura, ambos, narrador e escritor, estão à deriva. Errantes, mas tranquilos, afinal, possuem um amplo universo imaginativo sempre no aguardo de seus retornos – como um navio que navega costa a costa certo litoral populoso; ou como uma sala de música, na qual todos estão prontos, pacientes, à espera do maestro mais querido.