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Por ocasião dos 160 anos de Madame Bovary, um dos divisores de águas da ficção moderna, dispobilizamos abaixo um excerto do Prefácio escrito pela ficcionista Lydia Davis. No Brasil, esse prefácio foi publicado na edição que a Companhia das Letras (selo Penguin-Companhia) fez do livro.

 

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A meta de Flaubert era escrever um romance “com objetividade”, deixando o autor de lado. Ainda que Madame Bovary esteja farto de detalhes políticos e sociais que refletem as opiniões fortes de Flaubert (seu amigo Émile Zola conta que ele não tolerava ser contrariado em uma discussão), sua técnica consiste em apresentar o material sem comentário, por mais que ocasionalmente deixe escapar algum. Relatar os fatos objetivamente, apresentar uma descrição meticulosamente objetiva — de um objeto ridículo, por exemplo — pode também ser um comentário. Em outra carta a Colet, sobre a cena em que Emma vai pedir ajuda ao cura, Flaubert observa: “O episódio deve ter no máximo seis ou sete páginas sem uma única reflexão ou explicação do autor (tudo em diálogo direto)”.

Portanto, no lugar do comentário, os detalhes das cenas e os retratos agudamente psicológicos devem exprimir tudo — e, para Flaubert, o diálogo direto servia mais para retratar os personagens que para avançar o enredo. A descrição minuciosa põe o leitor em presença do material. Para ter eficácia, os detalhes devem ser observados de perto, escolhidos com cuidado, precisos e vivos como na descrição do buquê de noiva que ela o atira no fogo: “As pequenas bagas de papelão estalavam, os fios de latão se torciam, o galão se derretia; e as corolas de papel, endurecidas, balançavam-se ao longo da chapa como borboletas negras, enfim voando pela chaminé”.

Para que o romance comova ou desperte o interesse do leitor, Flaubert é obrigado a transformar aquilo que ele enxerga como um mundo sórdido, inteiramente pelo poder de seu estilo, em uma obra de beleza formal e estilística — ao mesmo tempo, escrevendo-o de um modo contrário a suas inclinações naturais. Mais de uma vez, diz com todas as letras que tem medo de não o terminar: tudo depende do estilo.

Mantendo essa abordagem quase clínica do material, Flaubert aprendeu a ser muito econômico com as metáforas. Com frequência, nas suas revisões intensas, a versão cortada era mais lírica que a que ele conservava. Escrevendo mais de sessenta anos depois da publicação do romance, Marcel Proust lamentou a ausência de metáforas, já que acreditava, como ele mesmo dizia, que “só a metá- fora pode dar uma espécie de eternidade ao estilo”. Mas reconheceu que o estilo ia além da mera metáfora.

Proust chega a dizer que em tudo de Flaubert não há uma única metáfora bonita. Mas eis outra adorável comparação com uma borboleta: depois de se entregar a Léon pela primeira vez na carruagem fechada que percorre Rouen, Emma rasga o bilhete de rejeição que inutilmente lhe escrevera, e “uma mão nua passou por baixo das cortininhas de tecido amarelo e jogou papéis rasgados, que se dispersaram ao vento e foram cair mais longe, como borboletas brancas, sobre um campo de trevos vermelhos todo em flor”.

Se a descrição objetiva era o método literário de Flaubert, essa objetividade sempre estava imbuída de ironia. Ver e julgar uma coisa com um olho frio era julgá-la com a ironia que desde a infância fazia parte da sua natureza. Sua ironia domina o livro, colorindo cada pormenor, cada situação, cada fato, cada personagem, o destino de cada personagem e o conjunto da história. Está presente na escolha dos nomes: a velha carroça caindo aos pedaços chamada “Andorinha” (Hirondelle); os nomes de muitos personagens, como o próprio Bovary, uma das variantes francesas de “boi”; o agiota malvado Lhereux (“o feliz”). Está presente nas palavras e frases do romance às quais ele dá uma ênfase especial — no manuscrito, sublinhava-as, é claro, como quando emprega linguagem semelhante em sua correspondência; na tipografia são italicizadas. Elas aparecem em todo o romance, a come- çar pela primeira página com novato. Com essa ênfase, Flaubert chama a atenção para a linguagem que se usava, comum e impensadamente, para expressar ideias compartilhadas que também eram inquestionáveis. Algumas, como novato, são relativamente inócuas; outras podem revelar um preconceito malévolo, como o comentário da sra. Tuvache, a esposa do prefeito, para a criada (relatada em discurso indireto) ao saber que Emma passeou sozinha com Léon: “a senhora Bovary estava se comprometendo”.

A ironia de Flaubert está presente nas eloquentes justaposições que ele cria entre o “poético” e o brutalmente banal, criando um efeito às vezes humorístico, às vezes chocante, mas que sempre nos detém, nos pega de surpresa. Uma passagem primorosa — geralmente uma descrição da natureza — é logo demolida, como se Flaubert também estivesse demolindo seu próprio impulso lírico, pelo que vem a seguir, uma comparação ou ato banal, mundano. Os exemplos são numerosos: Emma está no bosque, estendida no chão, trêmula ainda por ter feito amor com Rodolphe pela primeira vez, em harmonia com a paisagem natural circundante descrita plena e sensualmente; a passagem termina com a rude afirmação de que Rodolphe, charuto entre os dentes, estava consertando uma rédea com o canivete. Muito mais adiante na história, em uma barca com Léon, Emma estremece ao pensar em Rodolphe com outras mulheres; o barqueiro, que a irritou sem o saber, cospe na palma da mão e pega os remos. Devastadora e pateticamente, após a morte de Emma, quando a estão vestindo, uma das mulheres envolvidas na tarefa admira sua beleza em termos um tanto impertinentes: ainda parece tão viva; como um reproche, quando a mulher lhe ergue a cabeça para pôr a coroa, eis que jorra um líquido negro da boca de Emma. Flaubert, o antirromântico obstinado, não podia ser mais flagrante que nesse momento.

Como nos exemplos acima, o que tanto nos abala é a incisiva especificidade dos detalhes poéticos e, a seguir, a brusquidão com que Flaubert passa para detalhes não menos específicos e perturbadores ou brutais.

Algumas dessas justaposições irônicas produzem não horror ou páthos, e sim humor. Por exemplo, na cena do comício agrícola, a conversa poética e romântica de Rodolphe com Emma, a observarem do alto da Câmara Municipal, é contraponteada (sem comentário do autor) pelos graves anúncios de prêmios para o progresso agrícola em campos como o “estrume” e o “uso de tortas de grãos oleaginosos”. Ou então o cômico provém da justaposição de elementos desproporcionais, como, por exemplo, no caso dos textos de Homais, que é jornalista além de boticário: às vezes, é a grandiloquência do seu estilo que não combina com a banalidade do tema (sidra); ou, quando ele relata as festividades, são as cores gloriosas com que as pinta no artigo que mal se relacionam com o que delas sabemos em sua irrisão e insuficiência.

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Embora Homais seja o único escritor “profissional” no livro, outros estilos de escrita aparecem ao longo dele: o pai de Emma, as instruções de Charles para o caixão. Sempre mergulhando plenamente nos pontos de vista de seus personagens, Flaubert muda de rumo convincentemente à medida que entra e sai desses outros estilos não menos estranhos a ele, talvez, que o estilo de narração do livro como um todo. Afinal, seu estilo natural próprio, diz ele em uma carta, é o de Santo Antão: o que ele deseja poder escrever são “grandes giros de frase, períodos amplos, cheios, a correr como rios, uma multiplicidade de metáforas, grandes explosões de estilo”.

O que Flaubert tenta realizar neste livro, pelo contrário, é um estilo claro e direto, econômico e preciso e, ao mesmo tempo, rítmico, sonoro, musical e “liso como o mármore” na superfície, com variadas estruturas de frase, e com transições imperceptíveis de cena para cena e da análise psicológica para a ação.