SUPLE marcha em recife by clarissa galvao

Marcha das mulheres em Recife. Imagem: Clarissa Galvão

 

Eu nunca esqueci quando vi esse vídeo de Joy DeGruy postado no Think Olga há uns anos: como usar um privilégio (de gênero, de raça, de classe) para encorpar uma luta que não é sua diretamente, pois se trata de uma opressão que você não sofre, mas que te sensibiliza. É uma pena que uma voz seja mais ouvida do que outras (afinal, “alguns animais são mais iguais que outros”...), mas já que é assim, step it up, não para falar PELO outro, mas para engrossar o coro de "epa, isso não tá certo".

Ações auto-organizadas e interseccionais, fruto direto da Women's March de 27 de janeiro (mas com maternidade lá atrás, no movimento feminista negro estadounidense), se deram mundo afora no dia 8 de março. Marchas e atos públicos aconteceram mundo afora, mas também ações de panfletagem, leituras, performances públicas etc.

O #leiamulheres organizou encontros Brasil afora exatamente esta semana. Não foi por acaso que decidimos lançar a edição especial de poesia lésbica do zine Mais Pornô Por Favor! no dia 7 de março. Em Londres, Virna Teixeira, poeta cearense e editora, organizou as leituras de lançamento da Alba Londres (especial de poesia feminista brasileira) no dia 8 à noite, depois das marchas e no dia 9, na Embaixada Brasileira – onde lembrou, bravamente, da violência misógina sofrida por Dilma Rousseff durante o processo de impeachment.

Além desses protestos analógicos, ações digitais mostraram um olhar atento e forte sobre a situação. Dentro do mundinho literário, queria chamar atenção pro Prêmio Brava, criado espontaneamente por Micheliny Verunschk – uma reação ao Prêmio Bravo!, que causou furor essa semana por ser composto de jurados homens premiando exclusivamente homens.

 

SUPLE micheliny verunschk

SUPLE marcha em SP by micheliny verunschk

Meme do Prêmio Brava e Marcha das Mulheres em São Paulo. Imagens: Micheliny Verunschk

 

A reação de Veruschnk foi simplesmente enumerar autoras que existem, que publicam e que ela lê. Reverberou em posts de poetas como Júlia de Carvalho Hansen, Prisca Agustoni e Carla Diacov, e entre muitas outras leitoras, que reuniram suas listas particulares na hashtag "eu leio mulheres vivas".

A dinâmica da premiação da Bravo não podia ser pior. Mas eles conseguiram ser pior ainda em outra coisa: no timing. A lista de finalistas ganhou ares de ridícula e anacrônica ao lançar, na semana do dia 8 de março (de 2017, ou seja, pós-golpe e pós-Women's March que, by the way, já se tornou um divisor de águas na história do ativismo contemporâneo) uma lista composta de escritores homens, premiados por um júri de homens.

No que acredito ter sido uma reação não-direta ao prêmio, o escritor Ricardo Lisias escreveu sem seu Facebook: "Quando um homem branco, hétero e de classe média escreve sobre suas próprias questões, ele é considerado um autor de temas universais. Se uma mulher, um negro, um homossexual e por aí vai escrever sobre suas próprias questões, aí são considerados autores que escrevem sobre temas ligados a mulheres, negros, homossexuais e por aí vai. Ahahahah, que merda".

Vamos lá: nós (a mulher, o negro, o homossexual e o "por aí vai") estamos falando isso há anos. But then again, sabemos que a voz de Lisias é ouvida. O que ele está dizendo não é nada de original nem novo, não é nada que não tenhamos dito antes (mil vezes), e seguimos dizendo. Mas reverbera, e ajuda a transformar (tal qual o princípio do uso do privilégio para encampar uma luta que não é organicamente sua, mas na qual você acredita).

Mas nem tudo é luta no front. No post de Lisias, o também escritor Santiago Nazarian deixou o seguinte comentário: "É natural. A maior parte dos que escreve é homens [sic], brancos, héteros, as minorias são minorias se tratam de questão de minorias. E não há nada de mal [sic] nisso". No caminho oposto de usar-seu-privilégio-pra-encorpar-a-luta-dos-outros, Nazarian opina sobre algumas opressões que ele não sofre (“algumas” pois Nazarian é homossexual; mas não é mulher, nem é negro). Assim, a opinião me parece bastante equivocada, porque não é baseada em experiência, tampouco parece ser baseada em nenhuma bibliografia. E se não é baseada nem em vivência, nem em leitura, nem em estatística (desde quando mulher é minoria? O Banco Mundial e a ONU mostram em levantamento de 2015 que as mulheres são 49,6% da população mundial), vira pura especulação, pitaco.

Outra reação inoportuna veio de Marcelino Freire, que postou uma foto dele próprio (vestido de mulher) para “homenagear” as mulheres no dia 8. Bom, se a cultura ocidental demorou 9485 anos pra entender que black face é horrível, talvez em 2067 os homens entendam que mulher não é fantasia – assim como etnia não é fantasia, gênero e identidade sexual também não são. Repare, aliás, que só quem se diverte fantasiado de “nêga maluca” ou travesti são pessoas não-negras, não-LGBTQ.

Quando cagou na cara do governo e fez o discurso de agradecimento ao receber o Prêmio Camões, Raduan Nassar abriu na literatura o precedente que Kleber Mendonça Filho tinha aberto antes, no povo do audiovisual: quem não se posiciona, passa vergonha.

Por isso que ações como a de Carlito Azevedo – que se retirou do prêmio da Bravo – são, sim, fundamentais. Azevedo foi bastante discreto em relação ao tema, mas o ato reverbera e inspira. A coragem inspira. Não sei quais foram exatamente as motivações dele, mas imagino que, entre outras coisas talvez mais pessoais, tenha se sensibilizado com a completa falta de representatividade no prêmio.

Escrevi pra Azevedo, dizendo que isso que disse aí em cima, e ele respondeu, sucinto e certeiro: “o tempo é político e cada gesto nosso agora vai ser ou encobridor de problemas ou denunciador de problemas. Ou vamos continuar fingindo que tudo é 'natural' ou vamos colocar os dedos nas feridas e mostrar que nada é natural...”.

Assino embaixo.

No dia 27 de janeiro, antes de ler seu espetacular poema My mother was a freedom fighterAja Monet lembrou que não podemos subestimar o poder da linguagem; que foram “palavras que puseram Trump no poder”. Monet não podia estar mais certa. Linguagem tem poder porque linguagem é ação. Como podemos tão frequentemente esquecer isso? Não foi à toa que Michel Temer fez aquele discurso misógino e retrógrado no dia 8. Não é por ser burro – é porque ele tem um projeto.

A professora da UERJ e militante feminista Giovanna Dealtry foi certeira ao lembrar: “O Temer não acredita no que disse. Ele quis dar um chega pra lá na Dilma e em nós hoje. Não foi uma gafe. Foi proposital. (…) Os jornais insistem que o Coiso cometeu 'gafes' em seu discurso. Não é gafe. É misoginia”.

As ações e fala desses homens (Azevedo, Lísias vs. os de Temer, Trump, Freire e Nazarian) são posicionamentos. Entre si, se distanciam em anos-luz em seus significados. É importantíssimo lembrar que nenhum desses statements é inofensivo – sendo que, enquanto alguns causam estragos, outros edificam. Porque ok, a tal das entrelinhas falam blablabla, mas as linhas gritam.

Vão sempre dizer que essas coisas (um post no Facebook, uma saída de um prêmio) não muda nada. Mas não é verdade. Porque como disse Chico Science: “um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar”. Não custa nada se reinventar, portanto.