O urbanista Bernardo Secchi afirma que transitamos em meio a uma superfície terrestre constituída pelo extenso arquivo de signos deixados por quem nos precedeu. Deleuze e Guatarri falam sobre linhas de fuga: movimentos empreendidos pelos sujeitos para desmontar e remontar a paisagem, com a vontade de firmar conquistas, criações. Parto, então, para um breve mapa mental contemporâneo da cidade de São Paulo: Praça da República esquina com a Avenida São Luís, de um lado a Consolação, do outro a Biblioteca Mário de Andrade. Rua 7 de Abril, Barão de Itapetininga em um dia útil, Largo do Arouche, bancas de flores, Largo de Santa Cecília, Avenida São João, o prédio dos Correios no Vale do Anhangabaú, Avenida Angélica. Praça da Luz, Bom Retiro. Parque Trianon, Avenida Paulista, Mirante 9 de Julho, Bela Cintra, Alameda Ministro Rocha Azevedo, Rua Augusta.
Todos esses lugares são escritos, corrigidos, apagados, destruídos e ressignificados ao longo de décadas. Gerações produzem um tipo de código geográfico-social cumulativo, resultante da relação que cada época e cultura possuem com o espaço. A partir dos anos 1960, a temática espacial passa a ser tratada, na literatura, não apenas como categoria observável nas obras, mas como um modelo de leitura e sistema de interpretações. Marcado pela instabilidade, o espaço e suas diferentes formas de percepção produzem ordens semióticas – a cidade real e a cidade escrita – que não se anulam, como assinala Beatriz Sarlo em A cidade vista. De que maneira o espaço pode manifestar-se existencialmente? O que se constitui como estar em uma metrópole latino-americana? De que forma o sujeito torna-se espaço, e o espaço torna-se sujeito?
Nesse contexto, São Paulo desponta como uma área que esteve, entre as décadas de 1920 – 1970, na lupa de olhares descritivos de romances e poemas importantes para pensar a representação da cidade na literatura brasileira. A decadência do café, o Modernismo, o delírio no caos urbanoide, as margens que se estabeleceram ao redor de um Centro exaltado aparecem nos escritos de Roberto Piva, João Antônio, Pagu, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Maria de Lourdes Teixeira. Essa última, um nome desconhecido de muitos que leem este texto e que passará por um processo de resgate a seguir, afinal, São Paulo também tem rosto de mulher.
Maria de Lourdes Teixeira nasceu no município de São Pedro, em 1907. No total, publicou dezoito livros; participou da Academia Paulista de Letras, recebeu o prêmio Jabuti em 1961 e 1970, na categoria romance, por Rua Augusta e Pátio das Donzelas. Sua obra, que apresenta uma rica captura espacial do estado de São Paulo, não foi reeditada, está fora de circulação no mercado e pode ser encontrada apenas em sebos. Locomotivas, lambretas, automóveis, deslocamentos entre o campo e a cidade, entre a casa e a rua são alguns elementos e ações que formam a experiência cartográfica em Rua Augusta. Dois núcleos principais norteiam o romance: a mansão decadente na cidade de Itu, espaço onde habitam os fantasmas de um passado glorioso e as mulheres de uma família imponente no projeto ferroviário brasileiro; a rua Augusta, espaço de liberdade, efervescência social, política e afetiva.
Cecília, jovem criada no ambiente nostálgico, repressor e conservador que domina o cotidiano na casa ituana, torna-se o elo entre o passado e o presente político, metrópole e paisagem natural de um campo antes tão promissor. De acordo com Luís Alberto Brandão, espaços podem ser conceituados como “efeitos de deslocamentos”, o que introduz ao conceito noções de movimento e tempo. Em Rua Augusta, Lourdes Teixeira trabalha atenta a esse propósito, apresentando uma espécie de panorama dos crescentes e decrescentes sociais, políticos que atravessavam uma das (ainda) futuras maiores cidades latino-americanas. Na mobilidade dos personagens, o leitor observa a progressão do capital financeiro de um espaço que prometeu sempre o ouro, de um Estado que, na década de 1950, encontra no urbano o sinônimo de desafogo e autonomia.
No casarão, o conglomerado matriarcal – formado por uma sequência de sucessões genealógica; bisavó, avó, mãe, filha – revisita questões religiosas e torna-se a voz que propaga discursos machistas, classicistas. A escritora paulista reúne nas salas, quartos e dependências de empregados as personalidades que defendem, com fervor, valores de uma sociedade anacrônica, perdidos no tempo, confinados no espaço da lembrança e do apego econômico. No seu estudo sobre a relação entre o corpo e o espaço urbano, Richard Sennet analisa a Londres na obra de E. M. Forster e assegura: “Os seres humanos precisam ser sacudidos para darem conta do Outro e do lugar compartilhado. Trata-se de um tipo de desarraigamento positivo” – tem-se, enfim, a segunda parte de Rua Augusta, momento de reviravolta narrativa, no qual Cecília muda-se para a capital e estreita a sua amizade com Andreia, personagem que se identifica como antagônica diante da premissa conservadora que circunda os demais.
Na rua Augusta está a novidade, a expectativa de manter-se livre, flanar, discutir arte, música e literatura em restaurantes, bares, observar vitrines e exposições, construir novos fantasmas, novos medos e axiomas coletivos. No ensaio Maldita rua, Eliana Kuster e Robert Pechman traçam um esquema de revisão histórica da rua na sociedade. De acordo com os pesquisadores, o passeio público passou por um apagamento – primeiro, a rua das multidões, dos flâneurs, da massa, do povo, das paixões; depois, a prioridade de circulação dos automóveis, a cidade modernista que prioriza as máquinas, pouca negociação, pouco conflito. O romance de Lourdes Teixeira está posto, no recorte cronológico, na área de transição entre esses dois tipos de rua – o flâneur e seus desejos deparam-se, então, com a velocidade dos carros, o surgimento de um cotidiano sufocante; a pressa dialoga, por alguns segundos, com a contemplação e o pensamento crítico.
A leitura de Maria de Lourdes Teixeira aqui, na nossa São Paulo, a cidade de João Doria – onde o funcionamento do aparato público e urbanístico está em segundo plano e o bem-estar do setor privado e das máquinas, em primeiro – aparece como uma possibilidade de reflexão acerca do papel do corpo que atravessa um espaço público hostil e violento (tanto em suas ações, quanto em sua linguagem). O estar na São Paulo da escritora paulista é uma espécie de limite, também fuga, mas, sobretudo, trata-se de fronteira entre uma era político-social que terminou e o surgimento, a cada esquina, de outras ideias, saídas. Hoje, a população paulistana alcança, mais uma vez, alguma urgência de novas demarcações. Os espaços propostos pela gestão vigente manifestam-se de maneira arbitrária, segregativa e truculenta. A mansão de Itu está aos pedaços, o plano das locomotivas fracassou, o café é ficção, o futuro não é mais dos engenheiros e dos barões. A gente é paisagem. Lourdes Teixeira, em 1960, apesar de um texto sublinhado por convicções discriminatórias, consegue tocar esse espaço limítrofe. A cidade é um estado da mente, e não um salão de baile no qual o culto ao trabalho ignora todas as dinâmicas de um corpo vivo, flexível, resistente.