Quando olhamos para a trajetória intelectual e obra de Heloísa Buarque de Hollanda fica evidente como a curiosidade e a originalidade, e mesmo certa antecipação em relação aos temas que irão ganhar o cotidiano, são suas marcas mais características. Mas quanta disciplina e trabalho são necessários para lhes dar existência? Apenas o desejo intenso de ver, ouvir, conhecer, experimentar o novo não faria de Heloísa Buarque de Hollanda, digamos, Heloísa Buarque de Hollanda. Sim, a própria palavra latina curiosîitas, ãtis traz a ideia de cuidado, de diligência em buscar uma coisa, no desejo de conhecer. Não será simples pôr em relação uma curiosidade aguda e uma carreira acadêmica exitosa, como as de Heloísa. Operação nada trivial e longe, muito longe, de qualquer sentido harmônico.
Essa relação é da ordem de um conflito existencial e subjetivo que fora socialmente modelado, como se pode ler em sua autobiografia intelectual, escolhas (2009). Se for fácil constatar o êxito de sua carreira, o mesmo não se poderá dizer sobre o disciplinamento da sua curiosidade. Não mesmo. Sendo seu móvel conflituoso, a curiosidade constitui, modela e também transborda a carreira por todos os lados. Diante do fracasso anunciado no controle daquela pulsão, de disciplinar sua curiosidade, aquele colocar antolhos para tornar-se apenas um especialista rigoroso, Heloísa, como outros de sua geração, teria basicamente duas opções: ou fragmentar seus interesses, dispersando suas atividades para fora do ofício ou domesticá-los para que coubessem todos dentro de um só registro, de um só “quadrado” como se diz por aí. Heloísa não teve saída: reinventou a si e recriou o seu ofício, substituindo sempre o “ou” pelo “e”.
Ela não é professora universitária “ou” editora de livros, curadora de exposições “ou” orientadora de teses acadêmicas, autora de numerosos livros e artigos “ou” diretora de documentários cinematográficos, mas tudo isso e muito mais, junto e misturado – para cair no clichê. Sim, de alguma forma, todas as suas diferentes atividades profissionais ganham sentido umas em relação às outras. Se fronteiras são locais de encontro de culturas e de domínios do conhecimento, ela as provoca, cruza, experimenta, brinca com elas. Heloísa e seu trabalho habitam a fronteira, local de redefinição das linguagens. A inovação dos seus projetos alimenta-se, assim, da sua curiosidade indisciplinável, e também das comunicações entre domínios distintos que ela põe em comunicação. Mas ela mantém sempre em alta tensão os termos da relação. Isto é, entre aqueles que o “e” liga e também separa – curiosidade e trabalho árduo, originalidade e disciplina e por aí vai. Ganhamos todos, seus amigos, seus alunos, seus leitores e os diferentes círculos afetados pelo seu trabalho e presença decisiva na cultura brasileira desde os anos 1960.
Expressão disso é a dificuldade em se definir uma especialidade acadêmica exata para a Heloísa. Tendo formação e carreira, sobretudo, em curso de Letras, ela não se define como crítica literária, mas como “crítica da cultura”. A distinção é tão mais importante se lembrarmos de que “literatura” e, especialmente, “poesia” têm sido matéria sconstantes de seus projetos. Isso desde o icônico 26 poetas hoje (1976), que deu visibilidade à poesia dita marginal, até trabalhos mais recentes, como ENTER – Uma antologia digital (2009), por exemplo, e mesmo projetos em curso. Passa ainda por ensaios seminais, como Impressões de viagem (1979). Neste, ao lado de uma discussão crítica sobre alguns dos principais projetos culturais da sua geração, a autora realiza uma discussão finíssima sobre o lugar da poesia, seus confrontos com outras linguagens e suas metamorfoses nas vanguardas. Porém, mesmo considerada em suas especificidades como criação estética, a poesia é sempre vista em contexto cultural. A palavra é a chave da cultura.
Tem papel aí os chamados Estudos Culturais, particularmente influentes nos Estados Unidos desde os anos 1960, com os quais Heloísa dialoga de modo muito próprio – como, aliás, em tudo o que faz. Campo de investigação de caráter interdisciplinar que explora as formas de produção de significados e sua difusão nas sociedades contemporâneas, Heloísa acrescentou não apenas um olhar pessoal, mas também uma forma de problematização teórica que tem a ver com a experiência histórica brasileira. Assim, temas comuns da agenda dos Estudos Culturais, como gênero, etnicidade e movimentos negros, feministas e periféricos ganham novos desenhos nos seus trabalhos e, sobretudo, um sentido democratizante muito importante. Democratizante, significando, antes de tudo, a própria ampliação do campo da cultura, do reconhecimento e da autocompreensão dos atores culturais.
Não terá sido mero acaso que Heloísa tenha começado sua vida acadêmica estudando Mário de Andrade e a transposição de sua obra maior, Macunaíma (1928), para o cinema de Joaquim Pedro de Andrade. Afinal, Mário foi o primeiro intelectual brasileiro a levar a sério a necessidade de ampliação do campo da cultura, problematizando as fronteiras, então praticamente intransponíveis entre o erudito e o popular, numa sociedade não apenas diversa, mas tão desigual e hierárquica como a brasileira. E como um pecado original, Mário está presente em tudo o que Heloísa vem fazendo desde então. Esse gesto fundante da sua trajetória intelectual não é apenas externo, no sentido de configurar um acento brasileiro aos Estudos Culturais, mas também envolve uma concepção sobre o papel do trabalho intelectual. Logo na “explicação” que abre Macunaíma: da literatura ao cinema (1978), Heloísa mostra a que veio: “Este é um livro em que procurei dar a palavra a Mário de Andrade [...]” e onde Joaquim Pedro avalia “o projeto e o momento do filme”.
Como procedimento metodológico, “dar a palavra” assume um sentido permanente na obra de Heloísa, conferindo um caráter dialógico e reflexivo a seus textos e que a tem levado, crescentemente, à problematização de convenções tradicionais sobre objetividade, subjetividade individual e mesmo autoria. Desconfio que esse seu modo de presença na narrativa tem se radicalizado tanto nos últimos anos, que estamos prestes a surpreender a dissolução da voz autoral em sua cada vez mais vibrante prosa ensaística (como pude entrever num capítulo do livro sobre feminismo contemporâneo que “ela” está escrevendo). Creio não errar de todo ao flagrar esse gesto em 26 poetas hoje, onde a autora da coletânea também visava a orientar os poetas ditos “marginais” no reconhecimento de seu lugar na cultura. Mas, sem dúvida fica mais fácil acertar, apontando-o como algo que estrutura Impressões de viagem, onde a conversa é, sobretudo, com os seus companheiros de geração e de “viagens”, num tipo de acerto de contas sobre as crenças e práticas culturais e políticas que lhes incendiavam corações, mentes e mãos.
Mas “dar a palavra” quer significar também que a crítica da cultura faz parte do debate público e que este deve envolver a pluralidade de posições em jogo e uma atitude mais aberta ao outro. O sentido ético e político desse gesto é da maior importância. Sobretudo, nos tempos que correm de tanta intolerância e construção de muros concretos e (em todo caso, sempre também) simbólicos, cujo pressuposto parece ser uma dificuldade crescente em lidar com as diferenças, com a alteridade, com o outro. Daí, o retraimento da esfera pública em curso na sociedade contemporânea, incluída a brasileira. Particularmente importante no caso de Heloísa é que há um aprendizado – nada fácil, por certo – do outro e com o outro no seu percurso intelectual - e, claro, por meio desse encontro, quase sempre um desencontro, consigo mesma e seu universo de origem.
Vou me ater apenas às pontas da sua fascinante trajetória. Chama a atenção que sua crítica/autocrítica sobre a visão romântica e tutelar que a juventude do CPC (e ela própria) demonstrou em relação ao seu “outro”, identificando-o genericamente como “o” povo brasileiro, tenha dado lugar não a uma desilusão ou a um pragmatismo, como ocorreu com grande parte da sua geração. No seu caso, fez com que sua curiosidade em relação ao outro não arrefecesse nem um pouco. Ao contrário, ela não só aumentou, como também se sofisticou e pluralizou, passando a envolver alteridades e empatias de diferentes ordens. Eu teria outros exemplos para dar, lembrando dos seus trabalhos com poesia marginal, feministas, trans e periferias, mas vou me limitar, porém, a uma das últimas brilhantes invenções da Heloísa: a Universidade das Quebradas. Ao invés de se pautar pela difusão da cultura acadêmica àqueles que estão fora da universidade, a Quebradas procura aproximar os saberes das academias e os das culturas urbanas periféricas, realizando, em mão dupla, uma ampliação contundente do próprio campo da cultura.
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Certezas triunfalistas da ciência e da ideologia saem de cena, dando lugar ao compartilhamento de dúvidas sob pontos de vistas múltiplos. Se não se trata mais de uns ensinarem e outros aprenderem, no sentido tradicional, mas de um experimento pedagógico de conhecimento compartilhado, o sentimento da igualdade avança sobre a hierarquia.
A Quebradas é, assim, um laboratório de inovação na produção de conhecimento, mas, sobretudo, de reconhecimentos não apenas de um “outro” em relação a um “eu” (e vice-versa), mas também de um “nós” nas nossas diferentes interações cotidianas. É justamente esse tipo de ampliação do campo da cultura e de reconhecimentos sociais que permite o aprendizado do descentramento das identidades. Afinal, como identidades são sempre relações, não seria possível também incorporar o “outro” no próprio “eu”? Aprendizado difícil, por certo; mas necessário, se quisermos reinventar modos de convivência e também de conflitos mais democráticos. Estamos num campo aberto, e Heloísa Buarque de Hollanda está à frente, uma vez mais.