Matrioska A Julia Moreira set17

 

É fácil evocar os nomes de escritores russos. Não são poucos, quase todos clássicos: Dostoiévski, Turguêniev, Tchekhóv, Púchkin, Gógol, Tolstói, Górki. A lista continua em uma boa quantidade. Nenhum é nome de mulher.

A (vasta) produção russa de matriz feminina não é, nem de longe, conhecida no Brasil. O resgate mais recente foi a coletânea de textos organizada por Graziela Schneider para a Boitempo Editorial (A revolução das mulheres), mas no âmbito do não ficcional e no bojo das celebrações do centenário da Revolução Russa. Reúne textos de escritoras e militantes produzidos nas cercanias de 1917. “O tema da jênski voprôs – ‘questão feminina’ ou ‘das mulheres’ – povoa o pensamento e a literatura da Rússia (e, depois, da URSS) pelo menos desde meados do século XIX”, diz Graziela na apresentação ao volume em questão.

Dentre as escritoras do século XIX que ajudaram a sedimentar a mulher como profissional de literatura e a agenciar representações de um feminino independente está Nadiêjda Khvoshchínskaia (1824-1889). O sobrenome é pronunciado aproximadamente “Rrvoxinscaia”. Uma de suas obras, A moça do internato (1861), está com tradução no prelo, a ser lançada pela editora Zouk no próximo mês.

Por que a obra importa? “É a primeira ficção russa na qual há a representação da mulher como um ser independente, autônomo”, diz o tradutor da edição, Odomiro Fonseca.

Com narração em terceira pessoa, é uma novela em 13 capítulos sobre Liôlienka, uma jovem provinciana dos anos 1850 cuja vida muda ao conhecer Veritítsin, poeta e intelectual politicamente decadente que se torna seu vizinho. À adolescente, Veritítsin começa a apresentar leituras e visões de mundo que contestam os valores tradicionais: a obrigatoriedade do casamento, o dia a dia na cidade, entre outras questões. Liôlienka se apaixona por ele, mas o poeta está interessado em outra mulher, Sofia Khmeliêvskaia.

Dos 13 capítulos, 12 se passam quando Liôlienka tem 15 anos e mora em uma cidade chamada “N.” – um nome genérico e anônimo, que faz com que a história possa se passar em qualquer cidade provinciana da Rússia. Mas que, ao mesmo tempo, sugere um estado mental atrasado. Apesar de locais desse tipo serem bastante frequentes nas ficções russas do período, as cidades provincianas surgem, em “A moça do internato, como ‘reinos da obscuridade’” de forma mais contundente, diz o pesquisador inglês Joe Andrews (em Narrative space and gender in russian fiction: 1846-1903). É para lá que Veritítsin, a contragosto, se muda.

Essa dinâmica tem fundo nas memórias da escritora. Na juventude, Nadiêjda Khvoshchínskaia foi aluna de um internato em Riazan, interior da Rússia – daí a memória que serviria de lastro para escrever a novela. Passou boa parte da vida na pequena cidade, mas sempre informada dos principais debates e ideias do país. “O nome da novela em russo é pansionierka, e pansión era uma espécie de internato provinciano para moças”, explica o tradutor. No princípio, Liôlienka deseja ser uma das melhores alunas da escola. À medida que vai tomando consciência do conservadorismo local, ela começa a errar propositalmente nas provas, como forma de mostrar revolta.

O último capítulo da novela, o maior, se passa em 1860, quando a protagonista encontra o poeta por acaso num museu em São Petersburgo. É uma mulher autônoma, que ganha dinheiro com seu próprio trabalho (ela é pintora e vende reproduções de obras famosas), mora sozinha. Ela confronta seu antigo “preceptor”, que possui uma visão domesticadora do lugar social da mulher – ele elogia Sofia Khmeliêvskaia por ter escolhido se casar com um latifundiário muito mais velho a fim de proporcionar uma velhice confortável para a mãe. “Aqueles que se sacrificam até as últimas consequências são superiores. Só o sacrifício da perfeição pode conduzir o ser humano a alguma coisa...”, justifica Veritítsin, constantemente confrontado pelo discurso seguro e emancipado de Liôlienka.

 

FEMINISMO?

A protagonista não é a primeira mulher da literatura russa a mostrar independência, mas é a primeira a expor essa independência em um discurso claro e direto. “Em Dostoiévski, por exemplo, a mulher surge como um personagem forte, mas não é o centro das atenções. Nos escritores homens, ela surge de forma idealizada, no geral”, explica Priscila Marques, tradutora e doutora em literatura e cultura russa pela USP.

Em A moça do internato, Liôlienka responde aos três pilares da jênski voprôs de seu tempo: casamento (a mulher deve escolher seu pretendente), educação - a mulher deve ingressar na universidade e, historicamente, as russas vão se espalhar pela Europa para conseguir isso, principalmente nas universidades de Heidelberg ou Zurique; e, por fim, o trabalho. Defendia-se que elas deveriam atuar em diversos campos profissionais, indo além das profissões tradicionais de costureiras, governantas, normalistas ou tutora de crianças.

Em contraste, Odomiro Fonseca fornece um panorama das representações mais conhecidas da mulher naquele período. “A Zina, de O sonho do titio (Dostoievski, 1859), tem esboços de mulher emancipada. Mas, das ações dela, nada se concretiza. Já a Kukshina, de Pais e filhos (Turguêniev, 1862), é uma mulher emancipada, mas representada em tom satírico. A Vera Pavlovna, de O que fazer? (1862, Tchernitchévski), é completamente diferente: é realmente independente, com um discurso elaborado, muito político, panfletário. A questão é que ela veio depois da Liôlienka de Nadiêjda Khvoshchínskaia.”

Segundo a feminista russa Tatyana Mamonova, tanto Liôlienka como as personagens femininas das ficções posteriores de Nadiêjda (como a do romance Ursa major, de 1871) representaram uma evolução significativa para a ficção da época. Mamonova diz (em Women’s glasnost vs. naglost, de 1994), que as mulheres criadas pela autora do século XIX “restringem a si mesmas a um esforço honesto e moderado pelo bem das pessoas, tentando manter vivas suas almas, sonhos e seu sagrado descontentamento” (p. 127).

Ainda que, segundo a tradução americana do texto de Mamonova, a russa contemporânea diga que as escritoras do século XIX procuravam apoio no feminismo, seria anacrônico dizer que Liôlienka ou sua autora são figuras feministas, já que todo aporte prático e teórico do que se entende como feminismo só surgiria décadas depois do lançamento de A moça do internato. Talvez o elemento mais sintomático do caráter não feminista do texto seja o fato de que Liôlienka desenvolve autonomia, mas o processo de conquista - ainda que dependa fundamentalmente da sua disposição pessoal em buscar a mudança - começa e se desenvolve a partir das provocações de Veritítsin. Um homem.

De fato, era difícil não usar o masculino como um vetor para ter acesso a ideias progressistas ou conseguir respeito social. Nadiêjda Khvoshchínskaia usava um pseudônimo masculino – V. Krestóvski (não confundir com o escritor Vsevolod Krestóvski, também daquele século) – para poder publicar. O recurso dos pseudônimos era relativamente comum naquele tempo: os homens, para falar de temas mais sensíveis, afetivos, usavam nomes femininos; para as mulheres, os nomes masculinos eram uma chance de receberem críticas consistentes, pois costumava-se olhar a obra feminina com mais complacência. “Mas toda a crítica da época sabia que Nadiêjda era V. Krestóvski. Acabou que o pseudônimo só convencia o público”, explica Odomiro Fonseca.

“É importante dizer que a tradução dessas autoras do século XIX significa o resgate dos debates da questão feminina na Rússia daqueles anos, algo que se fala pouco hoje em dia”, pontua Priscila Marques, para depois reiterar que “da mesma forma como o marxismo não surgiu da noite pro dia naquele país, o mesmo se pode dizer da consciência do que é ser mulher, que marcou as autoras de 1917 e depois”.

PESQUISA E TRADUÇÃO

Odomiro Fonseca estudou a obra da Nadiêjda Khvoshchínskaia no doutorado em literatura e cultura russas na USP, concluído em março deste ano. Sua pesquisa versou sobre três ficções do século XIX e procurou entender como, nesses livros, o niilismo funcionou como uma “estrada para a emancipação” da figura feminina nos textos literários, em especial os escritos cujos enredos se passam entre 1855 e 1866 – época conhecida como a das “grandes reformas” na Rússia.

As revoluções na Europa em 1848 fizeram o czar Nicolau I fechar o país a qualquer tipo de intercâmbio cultural com as nações vizinhas para evitar a entrada de ideologias progressistas. A abertura viria em 1855, com a morte dele e a derrota na Guerra da Crimeia (1853-1856). Seu filho, Alexandre II, abriu novamente a Rússia e empreendeu uma série de modernizações – a principal foi a libertação dos servos, em 1861 (os latifúndios foram mantidos nas mãos de seus proprietários). O soberano sofreu uma tentativa de assassinato em 1866 e, após o episódio, foram suspensas todas as negociações entre os liberais radicais e a realeza para a implementação de mais reformas.

É nesse meio tempo que surgem todas as personagens já citadas, inclusive Liôlienka. O romance começa em 1852, ainda com a Rússia fechada, e termina em 1860, com ela já aberta. O discurso de Liôlienka no último capítulo de A moça do internato acompanha o movimento da ideologia liberal no país, à época marcado pelo niilismo russo. Este, segundo Odomiro, “era uma grande sopa de teorias modernas a serviço do rompimento completo com a tradição estatal” e seus círculos de debates “tornaram-se, gradualmente, ao longo da década de 1860, espaços de fala e liberdade para as mulheres”. Era presente na Rússia desde os anos 1830 e sua queda se daria nos anos 1870, com as primeiras traduções de Marx para o russo no país. Isso deu mais corpo ao socialismo já existente e, a partir de então, o niilismo seria visto como algo suave e não radical.

Ao lado da obra de Nadiêjda Khvoshchínskaia, foram estudadas por Odomiro os livros A garota niilista (1890), de Sofia Kovaliêvskaia (1850-1891), e Tempos difíceis, de Vassili Sleptsov (1836-1878). Autoras e autor pouco lidos, mesmo na Rússia, segundo o tradutor, e que nunca foram publicadas no Brasil. Odomiro já começou a traduzir a obra de Kovaliêvskaia e depois passará à de Sleptsov. A escritora é mais conhecida por ter sido a primeira mulher russa com doutorado em matemática e sua ficção tem forte cunho biográfico. E Sleptsov, diz o tradutor, é um dos maiores escritores daquele país, cuja obra fora jogada “na lata do lixo da História” por questões políticas. Ambas as traduções ainda não têm editora definida.

  

Leia aqui um trecho de A moça do internato, de Nadiêjda Khvoshchínskaia