No interior, enquanto eu crescia, uma das ameaças favoritas de meus pais era dizer que me mostrariam com quantos paus se faz uma canoa. Hoje, a juventude a caminho da cucuia, talvez já para lá do meio do caminho onde se encontra a pedra, gostaria de que houvessem me ensinado com quantos paus se faz um bote salva-vidas. Foi necessário aprender com alguns poetas. São botes salva-vidas imaginários, feitos de palavras, mas que nos ajudam a manter o nariz acima do nível das águas. Mas palavras são matéria orgânica, como a madeira. E com quantos poemas se faz um poeta? Nas livrarias, olhamos aquelas lombadas grossas das obras completas com papel-bíblia e capa dura e eles mais parecem tijolos que nos ajudariam apenas a afundar mais rápido. Sim, alguns poetas foram presenças constantes e confiáveis, como se fossem permanecer para sempre, a cada ano nos dando uma nova tábua para o salvamento em nossos maremotos nacionais e pessoais de lama. Mas há poetas, mesmo entre os grandes, que são capazes de nos salvar por vezes com uns poucos poemas. Com um, quiçá. Aqueles que ficam na memória. Entram em nossa corrente sanguínea e se tornam parte do nosso sistema imunológico. Na história da poesia brasileira, há alguns autores dos quais apenas alguns poemas chegaram a nós, e mesmo assim jamais afundarão no esquecimento. Penso no caso de Sapateiro Silva no século XIX, ou nos poucos poemas do baiano Pedro Kilkerry, já no século XX, que Augusto de Campos salvou para si e para nós. É pena só que às vezes os classifiquemos de bissextos ou deixemos que fiquem na obscuridade, quando há mais prazer e lição em um poema destes do que na obra completa de muitos outros.
Em seu romance Os detetives selvagens (1998), Roberto Bolaño leva suas personagens Arturo Belano e Ulises Lima ao deserto de Sonora, no México, em busca de uma poeta, Cesárea Tinajero, de quem conheciam um único poema. Mas aquele poema bastava. Era um bote salva-vidas. Pois eu digo a vocês que, para mim, a carioca Hilda Machado, mulher de carne e osso, verídica e verdadeira, também foi por anos uma espécie de Cesárea Tinajero. Tudo começou em 2004, em um número da revista Inimigo Rumor, editada por Carlito Azevedo, no qual li um poema dessa autora que desconhecia por completo, esta obscura. O poema intitulava-se Miscasting. A palavra é inglesa: mis·cast. 1. To cast in an unsuitable role. 2. To cast (a role, play, or film) inappropriately. Ou seja: quando ator e papel não combinam. Quando o ator não está preparado ou não é ideal para aquele papel. Não fomos todos miscast em nossos próprios papéis, aqui nessa novela interminável nossa?
Hilda Machado começa seu poema: “estou entregando o cargo / onde é que assino”, e daí em diante, de petardo em petardo contra si mesma, inadequada para o papel ou inadequado o próprio papel que a obrigaram a representar, vai acusando a si mesma e certamente ao galã da sua novela pessoal, a seus colegas coadjuvantes, ao autor da novela, à novela toda. Se o humor flutua na poesia brasileira, voltando aqui e ali em paródias e piadas, o que ocorre neste poema de Hilda Machado é mais raro entre nós. É um sarcasmo que punge, é um soco contra o próprio peito, é gargalhada autodepreciativa, de quem busca paliativo ferindo a si mesmo. Sofre e ri. Ri porque sofre. “Feliz ano novo / bem vindo outro / como é que abre esse champanhe / como se ri”, pergunta Hilda Machado.
Quis imediatamente ler mais, conhecer a autora. Planejava em algum momento encontrá-la, pedir por outros botes salva-vidas como aquele Miscasting. Foi por delicadeza que perdi a chance. Quantas coisas nós perdemos por timidez. Não escrevi a ela. Não a procurei a tempo. Em 2007, sabendo o quanto aquele poema havia se tornado importante para mim, a poeta e editora Marília Garcia me escreveu com a informação de que Hilda Machado havia morrido. Algum tempo mais tarde, ouvi de Carlito Azevedo que havia sido escolha da autora a hora, a data e o local de sua morte. O suicídio em São Paulo, a 2 de setembro de 2007.
A decisão de buscar outros poemas que Hilda Machado poderia haver deixado se tornou quase uma obsessão. Bastava ler e reler aquele Miscasting ou o outro poema na Inimigo Rumor, intitulado Cabo Frio, para intuir que não podiam ser simplesmente “sorte de principiante”. Havia tal controle de tom e estilo, pareciam-me tão únicos, que eu estava certo de que haveria outros. Havia de haver outros. Estava tão convencido da qualidade de seu trabalho, a importância que assumira para mim com aqueles dois poemas, que descobrir se havia mais um, ou dois, talvez 10, era em primeiro lugar uma necessidade pessoal minha. E uma tentativa de encontrar-me com esta autora, já que não havia conseguido fazê-lo em vida. Encontrá-la em texto, então. Ajudar a salvar o que poderia haver restado. Não são poucas as histórias de autores que têm seus trabalhos destruídos ou perdidos após sua morte, se não alcançaram reconhecimento em vida. Foi assim que certamente perdemos outros poemas de Sapateiro Silva, Sousândrade, Francisca Júlia ou Pedro Kilkerry, por exemplo.
A publicação próxima do pequeno volume Nuvens pela Editora 34, reunindo os poemas que Hilda Machado deixou enfeixados num manuscrito, vem ao fim de um pequeno périplo. Em 2009, no segundo número da revista Modo de Usar & Co. que eu vinha editando com Angélica Freitas, Fabiano Calixto e Marília Garcia, publicamos outros poemas que ela havia enviado a Carlito Azevedo e que ele gentilmente nos cedeu. Naquele mesmo ano, contactei pela primeira vez a família de Hilda Machado, perguntando se havia mais poemas, se papéis haviam sido encontrados. Queria, em primeiro lugar, garantir que estes poemas não se perderiam, como talvez tenham se perdido poemas de Francisca Júlia após seu suicídio. Foram muitas mensagens trocadas. A existência de Hilda Machado como poeta era secreta. Quase ninguém sabia que ela escrevia poesia. O próprio Carlito Azevedo conseguiu aquele arquivo por insistência. E a família, ainda muito abalada pela morte de Hilda, não queria mexer em seus papeis. A maré mudou, quando mostrei o trabalho de Hilda Machado a Cide Piquet, da Editora 34, que também contactou a família demonstrando interesse em editar seu trabalho. Foi assim, 8 anos após os primeiros contatos e 10 anos após a morte de Hilda Machado, que conseguimos a autorização para ler o que ela havia deixado.
É a primeira vez que me vejo editando o trabalho de um autor que já nos deixou. Como respeitar sua vontade? Como saber o que publicaria? Estamos seguindo as pistas da própria autora ao registrar este manuscrito, Nuvens, na Biblioteca Nacional em 1997, 10 anos antes de sua morte, 20 anos antes desta publicação. Com título, epígrafe, índice e contendo todos os poemas conhecidos, parece claro que a autora o via como livro pronto. Em um dos poemas inéditos, intitulado justamente Poeta, Hilda Machado fala mais uma vez com sarcasmo violento sobre a possível recepção de seus poemas, mencionando outras três autoras mais velhas e conhecidas que ela: Adélia Prado, Hilda Hilst e Orides Fontela. Ela as trata com luva de pelica. Mas não é contra elas que escreve, e, sim, contra a recepção de uma certa crítica machista da poesia brasileira, sempre pronta a comparar mulheres com mulheres, criando guetos e tentando manter assim seu Olimpo masculino intacto. Ela chicoteia: “Vai que algum amigo leia os versos poucos / e deles só prestam mesmo uns quatro ou cinco / e diga / parece Adélia / diluidora vagabunda me mato / e a revolta? / afinal não é tudo que parece Adélia / da outra, a Hilst, nem é bom falar / ou Orides / praga / que a minha inveja é só de mulher e absinto / pra eu beber em cálice / homem pra mim é sempre muso / o pterodáctilo me agarra pelo pescoço e lá vou eu”.
O trabalho de edição não está sendo porém o de mero monge copista. Entre os poemas do arquivo registrado na Biblioteca Nacional e os mesmos no arquivo enviado a Carlito Azevedo por volta de 2004, há variações. Alguns cortes. Versos excluídos. Mais uma vez percebo nestes cortes como Hilda Machado, apesar da obra e tardia, sabia bem o que fazia. Como poeta e editor, arrisco-me a dizer que são mudanças que realmente tornaram mais fortes os poemas. Aqui uma decisão editorial se faz necessária. Como foram feitas após o registro, há que se ver essas alterações como a vontade final de Hilda Machado sobre tais poemas. O manuscrito traz poemas como Um homem no chão da minha sala, longo e pungente como os já conhecidos Miscasting e O cineasta do Leblon. Alguns poemas curtos, ela reserva sua ironia para um tapa rápido e rasteiro. Em todos, sua mescla entre os registros culto e coloquial forma e informa sua técnica de amálgama entre o lírico e o satírico.
Seus poemas trazem muitas referências ao cinema, arte à qual ela dedicou a maior parte de sua vida como criadora e pesquisadora. Hilda Machado estudou cinema em Cuba. Foi nesta área que deixou primeiramente sua marca. Os textos demonstram ainda uma preocupação clara com a posição da mulher na cultura e sociedade. Uma contribuição sua nesse campo é o livro Laurinda Santos Lobo: artistas, mecenas e outros marginais em Santa Teresa (Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002).
Como incluirão Hilda Machado na historiografia literária nacional? É difícil saber. Por publicação, ela é contemporânea dos que estrearam no início deste século. Por idade, a poeta nasceu no mesmo ano em que Ana Cristina Cesar, escolhendo o mesmo fim duas décadas mais tarde. Mas Hilda Machado não é Ana Cristina Cesar, nem Adélia Prado ou Orides Fontela. Entrou no elenco de nossa novela para fazer o papel de Hilda Machado, e o fez para seu sofrimento e prazer, deixando-nos estes botes salva-vidas. Não ganhou Oscar de atriz principal ou coadjuvante. Nessa novela, não há Oscar, não há Urso de Prata, não há Kikito – ainda que a própria Hilda Machado tenha sido premiada em Melhor Direção por seu curta-metragem Joilson marcou em 1987. Certa vez, alguém perguntou a Arnold Schoenberg se ele era Arnold Schoenberg. Sua resposta foi que alguém tinha que ser. No interior, diz-se em tom de elogio sarcástico: “Se você não existisse, teriam que inventar.” Hilda Machado fez seu papel de Hilda Machado. Que felicidade não a ter que inventar. Ou, como ela escreveu: “Compomos o obrigatório conflito / de repetir com honestidade a velha trama / até que ao fim do primeiro bimestre / erra-se no açúcar / escorrega-se na farsa / e mudam-se todos para a novela das 7”.
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Nota do Suplemento Pernambuco: o poema abaixo, de Hilda Machado, foi gentilmente cedido pela família da autora a pedido do poeta Ricardo Domeneck, a quem agradecemos. É um poema inédito e sairá no livro Nuvens (Editora 34), atualmente no prelo.
O homem do mar
O homem do mar era uma construção serena
peixe fresco
corda
alcatrão
e a lembrança de velhos poderes imperiais no Canal
O nosso foi um fogo que queimou sem nos queimar
morreu na praia
estátuas silenciosas de sal
virávamos páginas em branco
a velha pergunta transbordando sempre
de cada livro no alto da biblioteca de alto preço
de cada escultura construída no além-mar
O mau fado me deixou a ver navios
ressaca impronunciável e alheia
falsas falésias
falácias
enseada escura
e canoa furada