Nesta sexta (20) será lançada a reedição de O Rei da Vela, peça de Oswald de Andrade que agora completa 80 anos. O texto foi escrito em 1933, mas somente publicado 4 anos depois.
A reedição deste ano é da Companhia das Letras e vem com textos que situam a importância da obra. Reproduzimos um trecho de um dos textos abaixo: um manifesto que José Celso Martinez Corrêa escreveu em 1967 quando da primeira montagem da peça no Brasil, feita pelo Oficina.
O texto já tem 50 anos, mas mostra como O Rei da Vela ainda é uma obra bastante atual – mas por “Senilidade mental nossa? Modernidade absoluta de Oswald? Ou pior, estagnação da realidade nacional?”, indaga o ator e dramaturgo. As perguntas fazem valer o esforço reflexivo.
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O [grupo de teatro] Oficina procurava um texto para a inauguração de sua nova casa de espetáculos que ao mesmo tempo inaugurasse a comunicação ao público de toda uma nova visão do teatro e da realidade brasileira. As remontagens que o Oficina foi obrigado a realizar, por causa do incêndio, estavam defasadas em relação à sua visão do Brasil destes anos depois de abril de 1964. O problema era o do “aqui e agora”. E o “aqui e agora” foi encontrado em 1933 n’O Rei da Vela de Oswald de Andrade.
Senilidade mental nossa? Modernidade absoluta de Oswald? Ou pior, estagnação da realidade nacional?
Eu havia lido o texto há alguns anos e ele permanecera mudo para mim. Me irritara mesmo. Me parecia modernoso e futuristoide. Mas mudou o Natal e mudei eu. De repente, depois de toda a festividade pré e pós-golpe esgotar as possibilidades de cantar a nossa terra, uma leitura do texto em voz alta para um grupo de pessoas fez saltar todo o percurso de Oswald na sua tentativa de tornar obra de arte toda a sua consciência possível de seu tempo. E O Rei da Vela (viva o mau gosto da imagem!) iluminou um escuro enorme do que chamamos realidade brasileira, numa síntese quase inimaginável. E ficamos bestificados quando percebemos que o teto deste edifício nos cobria também. Era a nossa mesma realidade brasileira que ele ainda iluminava. Sob ele encontramos o Oswald grosso, antropófago, cruel, implacável, negro, apreendendo tudo a partir de um cogito muito especial. “Esculhambo, logo existo”! E esse esculhambo era o meio de conhecimento e expressão de uma estrutura que sua consciência captava como inviável. Pois essa consciência se inspirava numa utopia de um país futuro, negação do país presente, de um país desligado dos seus centros de controle externo e consequentemente do escândalo de sua massa marginal faminta. Para captar essa totalidade era preciso um superesforço. Tudo isso não cabia no teatro da época, apto somente para exprimir os sentimentos brejeiros luso-brasileiros. Era preciso então reinventar o teatro. E Oswald reinventou o teatro.
Para exprimir uma realidade nova e complexa era preciso reinventar formas que captassem essa nova realidade. E Oswald nos deu n’O Rei da Vela a “forma” de tentar apreender através de sua consciência revolucionária uma realidade que era e é o oposto de todas as revoluções. O Rei da Vela ficou sendo uma revolução de forma e conteúdo para exprimir uma não revolução. De sua consciência utópica e revolucionária, Oswald reviu seu país. E em estado de criação quase selvagem captou toda a falta de criatividade e de história de sua nação. A peça, seus 34 anos, o fato de não ter sido montada até hoje, enfim tudo fez com que captássemos as mensagens de Oswald e as fizéssemos nossas mensagens de hoje. Comunicação de nossa visão da realidade brasileira e das novas formas que o teatro deve inventar para captá-la. O Rei da Vela acabou virando manifesto para comunicarmos no Oficina, através do teatro e do antiteatro, a “chacriníssima” realidade nacional. Essa realidade que Olavo Bilac já mencionava falando às crianças que nunca, nunca, veriam igual. E que, portanto, somente um teatro fora de todos os conceitos do ser ou não ser teatro, fora do escoteirismo teatral, poderia exprimir.
A falta de medo da inteligência de Oswald, seu anarquismo generoso, seu mau gosto, sua grossura são os instrumentos para captar a vida do “homem recalcado do Brasil! Produto do clima, da economia escrava e da moral desumana que faz milhões de onanistas desesperados e de pederastas… Com esse sol e essas mulheres!… Para manter o imperialismo e a família reacionária”. N’O Rei da Vela todo esforço do homem brasileiro é para manter, através da autóctone e única ideologia nacional, o “oportunismo”, seu status quo, paradoxalmente um status quo que é exatamente a engrenagem que o perde.
De um lado, a história dos Mr. Jones (personagem americano da peça) e de outro os Jujubas (massa de marginais representada na peça não por um ser humano, mas por um cachorro) e sua não história — no centro o chamado “homem brasileiro” que só e impotente para fazer sua história tem que partir para seu simulacro de história: sua existência carnavalesca, teatral e operística. O Rei da Vela de 1933, escrita por uma consciência dentro dos entraves que não os mesmos de 1967, mostra a vida de um país em termos de show, teatro de revista e opereta. Não há história, não há ação no sentido hegeliano. A tese não engendra sua antítese por si só. A estrutura (tese) se defende (ideologicamente, militarmente, economicamente) e se mantém e inventa um substitutivo de história e assim de tudo emana um fedor de um imenso, de um quase cadáver gangrenado ao qual cada geração leva seu alento e acende sua vela. História não há. Há representação da História. Muito cinismo por nada.