Raramente me perco de vista
Paul Valéry
A veloz rede de montagem, que anualmente traz um inédito de Roberto Bolaño (1953-2003) para as livrarias, tem fragmentado uma das produções mais potentes da literatura contemporânea. A seguir, dois bons exemplos da “mcdonaldização” do chileno. Em 2016, foi lançado o romance El espíritu de la ciencia-ficción (escrito em meados dos anos 1980); e, no final de 2017, as novelas de Sepulcros de vaqueros (ainda inédito no Brasil) com textos que vão do começo da década de 1990 até os últimos dias do escritor. Em ambos os casos, obras inconsistentes e apresentadas de forma que os rombos do mal-acabamento são evidentes.
Tanto El espíritu de la ciencia-ficcion quanto Sepulcros de vaqueros trazem um material que deveria ficar disponível num arquivo aberto para pesquisadores e não num lançamento editorial cercado por estardalhaço. Por eles, encontramos trechos, pistas e borrões de ideias dos enredos dos seus grandes livros. É o caso de uma cena da novela "Patria", a primeira de Sepulcros, que traz uma sequência que seria desenvolvida num dos contos de La literatura nazi en América (1996) e depois em Estrela distante (1996): um avião risca o céu com frases enigmáticas como espécie de comemoração ao golpe de Pinochet, período que marcou no Chile o ponto máximo do fascismo que se alastrou por toda América Latina ao longo do século XX. A repetição da imagem do avião-escrevinhador como outdoor da ditadura é um dado curioso para quem se debruça no quebra-cabeça de Bolaño.
Mas, com exceção desse tipo de uso, há poucas vantagens para o leitor comum diante da “mcdonaldização” bolaniana. São tantos livros em oferta nas livrarias, que o melhor da sua produção acaba se perdendo. Sem um devido cuidado editorial, ele irá se tornar um autor cujas obras seminais são pontos perdidos em meio a um oceano de títulos medíocres, quando, na verdade, existia um abismo entre a compulsão da escrita e as obras finalizadas e publicadas pelo autor em vida – sobretudo a partir de Estrela distante. Diante da expressão “um inédito de Bolaño”, saiba que você pode estar sendo vítima da síndrome de roupas novas do imperador.
Seria mais interessante que a rede de montagem bolaniana se voltasse para uma efeméride de fato importante: os 20 anos da publicação de Os detetives selvagens (1998), tanto o romance que deu fama internacional ao escritor como aquele que foi talvez o último grande romance do século XX – o “último grande romance do século XX”, aposto pomposo, mas não necessariamente solitário. Poderíamos dizer o mesmo para, por exemplo, Os aneis de saturno (1995), de W.G. Sebald (1944-2001).
Detetives e Os aneis, obras infectadas por uma melancolia absolutista. Romances assustados diante da iminência de ameaças fascistas e cujos personagens perambulam por cenários-fantasmas.
Tanto Sebald quanto Bolaño são detentores de uma memória cultural “enciclopédica”, podemos assim dizer, que promove o questionamento da importância da ficção a partir de um exercício autorreflexivo, que tem na desconstrução do discurso historiográfico (tradicionalmente objetivo) o principal alvo. A figura quase obsessiva de alter ego dos autores em seus textos atua como uma forma de confundir o leitor sobre quem está contando/manipulando a história (ou a História). Ou seja: uma pluralidade constante entre o que entendemos por subjetividade/objetividade, entre o que diferenciamos por ficção/não ficção. Mas a “ficção também é uma posição do intérprete”, como já alertou Ricardo Piglia. Perspectiva que veste como uma luva, quando pensamos no trabalho desses autores e na ficção contemporânea.
VIVER É EXERCÍCIO DETETIVESCO
O êxito de Os detetives selvagens se deve, sobretudo, ao cuidado da disposição da narrativa, na qual sequências de ações casuais acabam desembocando em labirintos e passam a ser seguidas por falas indiscerníveis, linguagens de sonho. Ameaças, veladas ou não. O começo do livro é célebre: a recordação de uma inscrição de diário que nos lança no centro de algo como uma revolução prestes a irromper: “Fui cordialmente convidado a fazer parte do realismo visceral. Claro que aceitei. Não houve cerimônia de iniciação. Melhor assim”.
Mais que em qualquer outro livro de Bolaño (e com o recurso mais bem-executado que em qualquer outro dos seus livros), o que seria a “história central” de Os detetives selvagens se “perde” em meio a outras histórias, como se alguém estivesse contando algo importante e se perdesse no meio da conversa, como se nem lembrasse o porquê de ter começado a dizer aquilo a princípio. De repente, como um coágulo em meio à banalidade do cotidiano, percebe-se a iminência tensa de um desastre. A natureza do desastre é potencializada na injustiça e crueldade da história da América Latina, acumulada sobre um fundo primitivo de traição, dor, vingança e resistentes memórias. A violência contra mulheres e jovens artistas dos seus livros são evidências dessa devastação. O curiso é que não é para os dirigentes que Bolaño aponta seu dedo acusador (em muitos dos seus livros a infecção do Mal tem acesso à trama via oficinas literárias, via grupos de escritores, saraus, etc.); e, sim, para a cumplicidade que a literatura estabelece com eles. Em seu romance Noturno do Chile (2000), o protagonista é um crítico literário corrupto e não um político corrupto, uma curiosa troca de papéis. Em Os detetives selvagens, ele chama Octavio Paz de “o verdadeiro inimigo”.
Porém, em meio a todo o horror, o Bolaño-narrador também nos fala próximo de histórias de amor e noites de sexo que duram até o amanhecer, imagina clarões de larga beleza poética e faz da perseguição por escritores desaparecidos a verdadeira fábula moderna. Há um oásis até nas situações mais grotescas. Assim como os beats e assim como o Rimbaud traficante na África, que tanto fascínio despertaram, Os detetives selvagens enfrenta frontalmente o universo dos autores estabelecidos, ao criar um grupo de escritores do underground que não está preocupado em gerar uma grande obra literária. A questão aqui é viver uma vida que se iguale à literatura. Uma vida digna de ser literatura.
Abandonar a literatura que não oferece representações poéticas sem fissuras seria, enfim, compreender a verdadeira função da literatura, ou seja, encontrar perguntas mais elaboradas para entender a vida e, assim, se livrar do Mal Absoluto, fechar as portas para a barbárie? Seriam os escritores, todos eles, detetives (selvagens) diante desses enigmas? É com essas equações que Bolaño arma a sedução da sua obra.
Os detetives selvagens, com sua estrutura fragmentada, com seu mosaico labiríntico de personagens, é o epitáfio com cartão-postal para o deserto de uma geração já sem figuras acima do bem e do mal. O paradoxo de uma geração exilada ainda que já possa voltar para “casa” (mas que “casa”?). É um livro que conta a infância, adolescência e o anoitecer de dependentes de guerrilha, de viciados em ditaduras, de leitores de si próprios, de investigadores de um mistério que já perdeu seu referente.
MIRAGEM NO DESERTO
A investigação dos “detetives selvagens” gira em torno da busca pela escritora vanguardista Cesárea Tinajero, que desaparecera no México em meados dos anos 1920. O reencontro com sua figura mítica salvaria da desolação todos os poetas do underground mexicano dos anos 1970, do qual Bolaño fez parte no período em que escreveu um manifesto de viver/fazer literário chamado "Infrarrealismo" – que no romance reaparece “disfarçado” com o nome de realismo visceral.
A personagem de Cesárea faz pensar numa ligação do Infrarrarealismo/realismo visceral com o Grupo Estridentista, que fundou a vanguarda mexicana e foi liderado por Maples Arce, Germán Arzubide e Arqueles Vela. Tais autores pregavam uma renovação poética ao lado de um conteúdo social. Ou seja: era um grupo formado por escritores crentes na relação entre vida e arte, perspectiva presente no manifesto infrarrealista e na obra de Bolaño.
Cesárea é relatada como a verdadeira fundadora do realismo visceral, após uma cisão por divergências políticas (e por isso mesmo estéticas) com o grupo de Arce. A figura da poeta nos leva a uma questão central: por que mesmo ela é tão importante – ou melhor, tão importante para os jovens escritores? Afinal, trata-se de uma mulher que desapareceu há mais de 50 anos, deixando uma obra praticamente apagada, esquecida, sem qualquer outro sinal de produção ao longo dos anos. Cesárea, na verdade, é justamente fascinante por sua ausência. Uma matriarca estéril.
As personagens de Bolaño são sempre fascinadas por fantasmas como Cesárea, pelas ausências que parecem ser as únicas coisas a fazer sentido, por silêncios que insistem em ser barulhentos. E por estranhos clarões, como nessa passagem de Detetives: “Virei-me e pelo vidro traseiro vi uma sombra no meio da rua. Nessa sombra, emoldurada pela janela estritamente retangular do Impala, estava concentrada toda tristeza do mundo”.
Essas ausências/ esses rompantes de iluminação em tempos sombrios acabam nos fazendo pensar numa das questões centrais para a literatura do século XXI: Qual o papel do escritor após tanta fragmentação, após a morte dos grandes discursos, das grandes ideologias? Bolaño escreveu compulsivamente sobre o fracasso da escrita. Sobre seu desaparecimento.
Os detetives selvagens é um grande epitáfio em meio do deserto. Um epitáfio da literatura e dos projetos literários/revolucionários do século XX no apagar das suas luzes. E curioso é o uso recorrente da palavra detetives ao longo da carreira de Bolaño. Uma palavra que aparece em entrevistas (ele já havia declarado que, se não fosse escritor, seria detetive), nos seus primeiros poemas (em um deles retrata a chegada do investigador ao local do crime e de como essa chegada arma os nossos modelos de espanto) e na maioria dos seus romances e e contos. Mas seus detetives exercem uma função diversa da corrente, daquela popularizada pelas narrativas de Poe. É que detetives procuram assassinos; detetives selvagens caçam fantasmas.