Peq.prisao HallinaB jan18.1

 

 

Tirei um dia a menos ou um dia a mais, sei lá

Tanto faz, os dias são iguais

Acendo um cigarro, e vejo o dia passar

Mato o tempo pra ele não me matar.

(Racionais Mc’s, Diário de um detento)

 

“Fui preso em 3 de dezembro de 2014, um dia quente, desses que anunciam a proximidade do verão. Daqueles primeiros momentos, recordo-me, particularmente, do olhar assustado de minha mãe, dizendo que a Polícia estava na porta. Recordo, também, da calma com que abri; a voz de prisão dada por um brutamontes, que respondeu com um grunhido quando lhe perguntei se as algemas eram necessárias; os olhares curiosos dos transeuntes, indo apressados para o trabalho àquela hora da manhã. Eram seis e vinte.”

O trecho acima transcrito é parte do livro A pequena prisão (N-1 edições), de Igor Mendes, escritor, ativista político, graduando em geografia pela UERJ e um dos 23 ativistas considerados "perigosos" pela Justiça e processados sob a acusação de terem uma forte atuação na organização e prática de atos violentos em manifestações populares.

Em seu livro, Igor dá testemunho do processo de brutal repressão política a que foram submetidos alguns dos participantes dos protestos de 2013 e 2014. E, como lembra Vera Malaguti Batista no prefácio da obra, essa “brutal perseguição penal [foi] realizada com o aval dos governos federal, estadual e municipal, com o auxílio descarado e implacável da grande mídia”.

No dia 12 de julho de 2014, véspera da final da Copa do Mundo, Igor e outros ativistas tiveram a prisão decretada, numa estratégia do governo para impedir a realização do protesto convocado para o dia seguinte. Entretanto, tais objetivos se mostraram frustrados, uma vez que o protesto não deixou de acontecer.

Poucos dias depois, em 15 de julho, manifestantes marcharam pelas ruas do Rio de Janeiro defendendo a liberdade dos ativistas presos. Em agosto, o Tribunal de Justiça do Rio concedeu liberdade provisória aos 23 ativistas. Mas, como relata Igor, foram impostas “uma série de restrições, uma das quais, inexistente tanto no Código de Processo Penal como na própria Constituição: a proibição de frequentar manifestações”.

Em 15 de outubro do mesmo ano, Igor participou com outros companheiros de uma atividade cultural na Cinelândia, em comemoração ao Dia do Professor e em memória da repressão desatada um ano antes nas escadarias da Câmara Municipal do Rio. Nesse mesmo mês, Luiz Fernando Pezão elegeu-se governador. “Embora o número de votos brancos, nulos e abstenções tenha batido recorde”, como lembra Igor, “caberia a ele administrar o ocaso da ‘Era Cabral’”.

No fim da tarde do dia 2 de dezembro, o juiz titular da 27ª Vara Criminal da Capital, Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau, decretou novamente a prisão de Igor, e também a de Elisa Quadros (conhecida como Sininho) e de Karlayne Moraes (a Moa). No despacho do juiz constava como motivo o descumprimento de uma das medidas cautelares impostas aos réus, já que, segundo ele, os jovens teriam participado de um protesto no dia 15 de outubro. Assim, em 3 de dezembro de 2014, tinha início o árduo período de 204 dias de encarceramento enfrentado por Igor Mendes.

Na abertura do livro, Igor faz uma advertência: as linhas que se seguiriam a partir dali não se tratavam de uma tese acadêmica ou de uma reportagem. Tampouco tratavam-se de uma análise sociológica acerca das Jornadas de Junho de 2013 e do processo de criminalização das lutas populares, crescente desde então. O que os leitores e leitoras teriam em mãos seria apenas um depoimento, “fruto de um compromisso assumido com as vozes silenciadas. (...) É, sobretudo, um depoimento engajado, assumidamente parcial, de quem continua disposto a prosseguir na briga”.

 

O ato de testemunhar

Embora Igor afirme que, a despeito da troca de nomes para preservar identidades, “todo o mais é rigorosamente verdadeiro” em seu texto, sabemos que trabalhos de cunho biográfico são sempre processos de autocriação e reconstrução, uma empreitada que envolve inúmeras negociações subjetivas entre o indivíduo e as múltiplas possibilidades do mundo social. Ainda mais em um episódio como esse, profundamente marcado por experiências de violência e vários desdobramentos traumáticos. Assim, para pensarmos numa possibilidade de leitura para essa obra, é possível mobilizarmos a relação vista por Joel Birman entre a psicanálise e a literatura, numa tentativa de dize aquilo que seria indizível, “possibilitando então que os ruídos inarticulados do mundo noturno possam ser ditos pela tessitura diurna da palavra encarnada”.

Os estudos literários também se ocuparam deste tipo de produção. Em uma fala apresentada na mesa-redonda Graciliano Ramos: memória e história, realizada no Departamento de História da FFLCH-USP em outubro de 1992, Alfredo Bosi fez uma pequena genealogia do que se convencionou chamar, no contexto latino-americano, de "literatura de testemunho", um termo cunhado para qualificar um tipo de escrita que, segundo o autor, desde os anos setenta não cessava de crescer. "A escolha do termo obedeceu à necessidade de acolher um alto número de originais que se situavam na intersecção de memórias e engajamento. Nem pura ficção, nem pura historiografia; testemunho." Na avaliação de Bosi, essa seria uma expressão bifronte, e justamente daí viria sua riqueza.

“Mas o testemunho também se sabe obra de uma testemunha, que é sempre um foco singular de visão e elocução. Logo, o testemunho é subjetivo e, por esse lado, se aparenta com a narrativa literária em primeira pessoa. O testemunho vive e elabora-se em uma zona de fronteira. As suas tarefas são delicadas: ora fazer a mimese de coisas e atos apresentando-os ‘tais como realmente aconteceram’ (conforme a frase exigente de Ranke), e construindo, para tanto, um ponto de vista confiável ao suposto leitor médio; ora exprimir determinados estados de alma ou juízos de valor que se associam, na mente do autor, às situações evocadas” – definiu Bosi.

Embora antropólogos já tenham questionado se a noção de testemunho poderia ser um lugar analítico oportuno a partir do qual se escrever etnografias, ou, ao contrário, se não seria essa uma categoria suspeita, dado seu alto teor de subjetividade, foi a antropóloga Veena Das quem produziu um excepcional trabalho sobre o tema: O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. O contexto de sua obra é a Partição da Índia, em 1949, vista a partir da cultura punjabi (Punjab era a província mais próxima da fronteira com o Estado surgido, o Paquistão) e, particularmente, através dos olhos de Asha que, em 1941, ficara viúva aos 21 anos e passara a viver com a família do falecido marido. O testemunho de Asha constitui o núcleo analítico do texto de Das, que, anos mais tarde, não se pergunta como os acontecimentos estavam presentes nas consciências como acontecimentos passados, mas como vieram a ser incorporados na estrutura temporal das relações.

Dessa maneira, o ato de testemunhar foi visto por Das como uma importante forma de pensar a relação entre violência e subjetividade. Interessava à autora entender como sujeitos que atravessavam – e eram atravessados – por experiências de violência (no caso de seu texto, violências de gênero) seriam capazes de reocupar signos nocivos de violação através do trabalho de reconstrução de suas identidades. Assim, a própria formação dos sujeitos, embora emaranhada em construções contextuais, não seria completamente determinada por elas, mas seria também geradora de novos contextos.

Ainda que o autor que aqui analiso tenha sido ele próprio temporária e forçadamente transformado em “nativo”, sua empreitada não deixa de encontrar pontos de contato com o trabalho antropológico de Veena Das, proporcionando inúmeras contribuições para o campo das ciências sociais – e também para o da literatura.

Ao se reconstruir como sujeito de uma experiência dolorosa, Igor nos oferece a possibilidade de sermos “afetados” por suas memórias, no sentido em que o termo é empregado por Jeanne Favret-Saada em seus postulados sobre o ofício de etnógrafa. Para essa autora, “ser afetado” não seria o mesmo que ter uma experiência de empatia, uma vez que não somos portadores da capacidade de nos transformarmos em outros. O que é possível, portanto, é estabelecer uma relação de afetação, uma prática em que saímos alterados em nossos juízos e verdades.

 

Fluxos em cadeia

Nas últimas décadas, houve um grande interesse de pesquisadores de diversas áreas do conhecimento em relação ao encarceramento e seus efeitos na sociedade. Ainda assim, o trabalho de Igor apresenta, do ponto de vista operacional – mas não só – um caráter profundamente particular, constituindo-se, como apontou Vera Malaguti, em um marco. “A pequena prisão é talvez o mais importante livro brasileiro de criminologia dos últimos tempos. Tudo o que tentamos descrever como o sistema penitenciário brasileiro aparece aqui como uma verdade encarnada nos corpos dos seres humanos com que Igor conviveu em Bangu. Sabemos que o pequeno espaço de uma cela na periferia condensa toda a história da prisão, essa invenção do capitalismo industrial que tem no capitalismo vídeo-financeiro contemporâneo o seu esplendor.”

Uma das grandes contribuições de Igor é, justamente, possibilitar o aprofundamento da agenda de questões e do instrumental de pesquisa sobre prisões. Entre os conceitos mobilizados pelo autor está o de prisionização, termo que aparece no livro The prision community, publicado em 1940 por Donald Clemmer, sociólogo e funcionário do sistema penitenciário do estado de Illinois. Segundo Clemmer, nestes espaços de clausura, existiria uma cultura prisional que seria assimilada pelos detentos. Como posteriormente também apontou Michel Foucault, no contexto da prisão a disciplina não é algo que apenas regula comportamentos, mas invade os sujeitos e os produz, infiltrando-se nas relações correntes e se tornando uma espécie de atmosfera local.

Se Igor não deixa de confirmar os efeitos deletérios da prisionização na vida dos sujeitos inseridos no sistema carcerário, a força de sua obra, ao contrário, reside em seu ávido trabalho de dar testemunho sobre uma zona do cotidiano que é habitada por estes sujeitos através de uma reocupação dos signos marcados pela devastação. É bem verdade que essa não é uma tarefa fácil dentro dos muros da “pequena prisão”, o que fica evidente nos constantes relatos sobre os surtos de depressão, que culminam até mesmo em suicídios.

Se o nosso autor fala de sua passagem por uma “pequena prisão”, é por acreditar que, “iludidos com uma sociedade autoproclamada ‘livre’, vivemos na verdade em uma imensa, cada vez maior, prisão. Não creio que possamos considerar realmente livres os que têm de enfrentar a rotina de um trabalho extenuante e embrutecedor, coagidos pela fome e pela ameaça de desemprego. (...) Desse ponto de vista, o que chamamos de prisão, a cadeia, é apenas uma fração da prisão maior em que vivemos – um pouco mais pobre de vida, mais descaradamente odiosa, é verdade, mas ainda assim uma fração, se comparada ao grande presídio de povos em que se converte nossa sociedade nesses princípios do século XXI”.

 

Peq.prisao HallinaB jan18.2

 

Eu não teria espaço suficiente para descrever aqui as aterradoras experiências vividas por Igor e seus companheiros de infortúnio “nos porões invisíveis de nossa sociedade”, em locais que, segundo ele, são “como navios negreiros. Como campos de concentração. ‘Modernos’. ” Em sua descida ao inferno, Igor habitou um lugar em que a tortura é parte inseparável da rotina de desumanização, onde nada “é fortuito, mas obedece a uma lógica rigorosa, certamente perversa, mas metodicamente calculada. Os funcionários que sujam suas mãos para realizá-la não se veem como torturadores, mas como meros servidores públicos, fazendo aquilo que a sociedade espera. Senão a sociedade, ao menos os seus superiores. Não se dão conta que a tortura é mundialmente reconhecida como um crime de lesa-humanidade”.

De toda forma, eu não seria nem mesmo capaz de reproduzir a intensidade ética e política dos relatos de Igor, trabalho de um autor extremamente sensível e com grandes habilidades literárias, um escritor forjado por uma experiência de profundo sofrimento, mas também treinado pela literatura. “Sempre devorei a literatura referente à prisão, que me causava especial fascínio. De ‘Papillon’, caminhando em seu cubículo escuro, lutando para não enlouquecer na idílica e ao mesmo tempo infernal Caiena, ao Graciliano de Memórias do cárcere, íntegro e perspicaz observador da igualmente terrível Colônia Correcional de Dois Rios.”

Durante os meses em que permaneceu preso, Igor fez sempre questão de assumir sua condição de preso político. Foi uma forma encontrada por ele de não se render aos rituais de despersonalização e humilhação perpetrados pela lógica carcerária. De igual forma, diz ele, “o Estado que me prendera e a administração penitenciária, embora não admitissem publicamente minha condição de preso político – e de nenhum daqueles que esteve nessa situação –, na prática eram ciosos da minha vigilância e buscavam, no limite de suas possibilidades, diminuir meu contato com os demais presos, assim como com a lastimável situação carcerária, talvez por temer eventuais denúncias”.

Segundo Malaguti, a “lucidez e a integridade de Igor ajudam a retificar essa discussão sobre a natureza política de toda prisão e de todo prisioneiro; a diferença entre o preso político e o comum é que o primeiro sabe que sua prisão é política. Esse livro sobre a pequena prisão é tão contundente que reafirma a necessidade de repolitizarmos a questão criminal. Quando olhamos a história da questão criminal vemos como ela é naturalizada nos tempos de crise”.

Se não vou me deter nas experiências do horror narradas por Igor, algumas verdadeiramente assombrosas – ainda assim extremamente importantes de serem lidas –, gostaria de apontar aqui que o que considero fundamental em sua obra é a incessante busca por humanidade em meio a um universo profundamente marcado pela desumanização. “Que bicho estranho é o Homem! Alguns julgam os presidiários pessoas perigosas, embrutecidas. Do ponto de vista emocional, foram as pessoas mais carentes que conheci: carentes, sobretudo, de quem os escute e veja como são, ou seja, seres humanos, com um passado, presente e – quem sabe? – um futuro”.   

Dentre os diversos trabalhos teóricos sobre o sistema prisional publicados nos últimos anos, gostaria de mencionar brevemente um deles. Trata-se do ótimo livro Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos, de Rafael Godoi. Recém-lançado pela editora Boitempo, o livro é um desdobramento da tese doutoral de Godoi, defendida na sociologia da USP sob orientação de Vera Telles. Amparado em ampla base teórica e em uma sólida trajetória de pesquisa, o autor se propôs a fazer uma articulação entre o local e o global, pensando a experiência prisional de São Paulo no contexto das tendências de encarceramento em massa no mundo contemporâneo, buscando melhor compreender a “prisão em tempos (e lugares) de governamentalidade neoliberal”.

Como aponta Fernando Salla, autor da orelha, “Godoi reconfigura as tradicionais análises entre o dentro e o fora das prisões, destacando os ‘vasos comunicantes’, os muitos circuitos que conectam os espaços prisionais com os territórios urbanos.” Ler seguidamente, como fiz, os textos de Igor e Godoi é uma experiência impactante. No meu caso, diria mesmo revolucionária. Ambos os livros funcionam, sozinhos e, principalmente, em par, como “vasos comunicantes” entre a pequena e a grande prisão estabelecidas na periferia do capitalismo global.

 

Estado de exceção

Embora o termo “estado de exceção” seja constantemente empregado para dar conta de uma quebra do pacto democrático institucional, essa interpretação é bastante equivocada se tomada sob o ponto de vista conceitual inaugurado por Carl Schmitt, em 1922, em sua Teologia política, como uma forma de definir o soberano (“aquele que decide sobre o estado de exceção”). Em suas teses Sobre o conceito de história, de 1940, Walter Benjamin foi implacável: “a tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ no qual nós vivemos é a regra” – sendo essa exceção, portanto, uma norma para os oprimidos.

Em Giorgio Agamben o conceito fica ainda mais claro. Para este autor, o “estado de exceção” funciona como um “paradigma de governo” dos Estados contemporâneos, mesmo nos chamados democráticos. Em seu livro homônimo, publicado no Brasil pela Boitempo, Agamben aponta que o “estado de exceção” analisado por ele “não só sempre se apresenta muito mais como uma técnica de governo do que como uma medida excepcional, mas também deixa aparecer sua natureza de paradigma constitutivo da ordem jurídica”. Assim, o “estado de exceção” é ele próprio um paradigma constitutivo da ordem jurídica institucional.

Na obra de Igor Mendes, essas conceituações que podem parecer difíceis, ou até mesmo confusas, surgem de forma clara e bastante elucidativa. Cito-o a seguir, concordando integralmente com sua fala: “pertenço à geração que vive a transição entre uma época de relativa liberdade, conquistada ao final do regime militar, e o endurecimento da repressão política, em um contexto de crise econômico-social crescente e aumento das mobilizações populares. Digo endurecimento da repressão política, especificamente, porque os pobres, vivendo em guetos nos bolsões de miséria das grandes cidades, ou no campo, vitimados pelos bandos de pistoleiros a serviço dos latifundiários, nunca deixaram de ser reprimidos, presos e mortos pelas tropas oficiais ou os famigerados ‘esquadrões da morte’. Essa é, na verdade, a maior refutação de que os ‘anos de chumbo’ são coisa do passado: somos, atualmente, a quarta maior população carcerária do mundo, saltando de 90.000 seres aprisionados em 1990 para pouco mais de 700 mil em 2017. Temos as polícias que mais matam em todo o planeta, e a permanência em nosso ordenamento da famigerada categoria ‘autos de resistência’. Conhecemos casos escabrosos, como o de Amarildo de Souza, que provam eloquentemente que a iniquidade e a tortura não acabaram simplesmente porque eleições – essas eleições viciadas que conhecemos – passaram a ocorrer. No fundo de cada delegacia, no alto dos morros densamente povoados, em cada presídio, segue existindo um DOI-CODI.”

Para encerrar, faço novamente coro com Igor, já que, ao fim, foram estas as palavras que ficaram e, creio eu, estarão diariamente comigo na incessante luta contra a ideia de que “cárcere” possa ser um sinônimo possível para “justiça”: “esperança é, de todas as palavras que compõem a nossa bela língua, a que eu considero mais bela”.