Qual a ideia que passa em nossa cabeça quando ouvimos a palavra “índio” [nota 1] ser pronunciada? Será que ela nos remete a seres que vivem na selva, andam nus, descalços, pintados, enfeitados, portando arcos e flechas, sentados ao redor de uma fogueira assando um bom naco de carne, olhares atentos aos perigos da floresta e com rostos deformados, mas que vivem em harmonia, seja com a natureza, seja com as outras pessoas de sua “tribo”, não sofrem com a poluição ou com o stress ocasionado pela correria insana da vida urbana?
Se essas ideias perpassam sua cabeça quando a palavra é dita não precisa se preocupar porque você faz parte de uma grande parcela da população brasileira que foi (des)educada pelo sistema de ensino que lhe incutiu uma ideia romantizada dos indígenas brasileiros. Romantizada? Como assim? Já explico.
Historicamente, os brasileiros aprendem que os “índios” são seres que estavam presentes nessa terra quando os colonizadores chegaram e os encontraram aqui. Os consideraram inferiores e trataram de impor para eles uma nova forma de vida baseada no trabalho, na servidão religiosa e na submissão política. Para serem gente de verdade teriam que ser colonizados. Eles não eram muito afeitos ao trabalho e por isso foram logo substituídos pelos negros escravizados na África e trazidos para cá para substituir os selvagens.
Nosso aprendizado quase sempre para por aí. Os “índios” praticamente deixam de existir na narrativa histórica que os deixa presos ao passado brasileiro. Essas narrativas foram sendo engrossadas pela literatura, fazendo vir à tona o “bom selvagem” – uma ideia corroborada pela filosofia que foi alimentando nosso modo de ver essas populações. José de Alencar foi o principal representante da disseminação da imagem de um nativo nobre, honesto, ético, pomposo, orgulhoso de suas origens e capaz de atitudes corajosas. Eram, em última análise, quase um civilizado, quase um europeu. Nessa descrição não entrava nada da humanidade real dos povos retratados, nos restando aceitar que eles eram exatamente aquilo que a literatura nos apresentava. Assim nasceu para nós um “índio” sem história, genérico, sem humanidade, um simulacro, um estereótipo que ficou preso aos livros didáticos e que nos foi sendo apresentados como algo da história do passado brasileiro. Infelizmente ainda hoje é assim. Estas representações continuam sendo revividas nas salas de aula sempre que é comemorado o dia 19 de abril, o dia do “índio”. A pergunta que não quer calar é a mesma: que “índio” é esse que se comemora? Aquele que está no nosso imaginário: subalterno, selvagem e patético.
Nem tudo, porém, acaba por aí. Há outra visão ainda mais preocupante que esta do bom selvagem, romântica. Se fosse só essa tudo seria resolvido por uma boa escola. Há outra visão dissonante que paira sobre nós e que reforça o desprezo que aprendemos a ter desses povos. Quem nunca ouviu afirmações do tipo: “índio” é preguiçoso, selvagem, atrasado, viciado, encrenqueiro, atrapalha o progresso e o desenvolvimento? Quem nunca ouviu alguém dizer que o “índio” tem muita terra e não sabe o que fazer com ela porque é incompetente? E que a terra tem que ser dada para quem dela tira riquezas? Que a terra que não for cultivada coloca o Brasil em descompasso com o resto do mundo?
Sei que já ouviram dizer essas coisas. Alguns dizem abertamente e outros de forma velada, mas o fato é que essas duas ideias – a romantizada e a ideologizada – estão presentes em nosso imaginário. Como dito antes, uma é trazida pela escola e a outra pela mídia. Uma nos ensina a olhar para o passado e a deixar lá a existência desses povos e a outra nos diz que o presente não comporta gente que não entenda de economia ambiental. Essas duas visões moram dentro da gente. Quase nunca nos damos conta disso. A não ser, claro, quando olhamos para a realidade e nos deparamos com indígenas frequentando a universidade, escrevendo livros, ganhando prêmios culturais na música, teatro ou cinema. Quando notamos que os “bons selvagens” já ocupam um espaço na sociedade brasileira. Nessa hora deixamos mais uma vez a ideologia tomar conta da gente. Sabe o que dizemos? Se o cara já está na universidade ou participando da sociedade como um todo ele não pode mais ser “índio de verdade”, já está civilizado, é um de nós. Por que “índio de verdade” é aquele que mora no nosso imaginário. Entendeu?
DIREITO PARA CHAMAR DE MEU
Foi assim durante quase 500 anos. A estratégia do Estado brasileiro era desqualificar a existência dos povos indígenas. Suas políticas para eles eram quase sempre de extermínio, perseguição, escravização ou integração à sociedade nacional. Essas políticas conseguiram reduzir drasticamente a população nativa que era, em 1500, quase 2 milhões de pessoas, para um pouco menos de 100 mil pessoas na década de 1970, período em que estudiosos vaticinavam que os indígenas não chegariam ao século XXI. Aconteceu, no entanto, uma reviravolta que colocou essa visão niilista em cheque: os indígenas começaram a se organizar.
Até os anos de 1970, as populações indígenas eram invisíveis para a sociedade brasileira. Viviam dentro de suas reservas, caso não tivessem muito contato com os “brancos”, ou estavam sendo obrigados a frequentar a escola para aprender as “coisas dos brancos” e se tornarem “civilizados”. O caminho estava dado e nada poderia interferir nessa lógica que culminaria no desaparecimento total dos indígenas e os deixariam presentes apenas nos livros escolares. Acontece que houve um movimento da Igreja Católica no sentido de reunir lideranças para grandes assembleias. Chefes tradicionais que não se conheciam passaram a perceber que seus problemas eram semelhantes e que a solução poderia ser a mesma caso fizessem pressão sobre o governo brasileiro. Esse foi o embrião para o surgimento do que viria a ser o movimento indígena brasileiro, entidade que se efetivou nos fins dos anos 1970 e cresceu durante os anos de 1980 e que teve sua expressão máxima com a aprovação dos capítulos 231 e 232 da Constituição brasileira.
Se até a Constituição de 1988 os indígenas estavam fadados ao desaparecimento, a partir daí ganharam uma sobrevida em forma de Direitos Constitucionais. Foi assim que o movimento indígena mostrou ao Brasil que os povos que representava não estavam de passagem por esta terra e que já eram plenamente brasileiros, ainda que diferenciados por força de suas ricas culturas; que tinham direitos originários que precisavam ser respeitados; que podiam ser brasileiros sem deixar de serem indígenas; que podiam, deviam e queriam participar da sociedade brasileira, mas que os povos que ainda estivessem em situação de pouco ou nenhum contato deveriam ser respeitados em sua integridade física, material e imaterial.
É isso que está escrito na Constituição. Pela primeira vez na História nacional o Estado brasileiro admitiu que os indígenas estão nessa terra para ficar e que têm direito a ter direitos, portanto, são brasileiros plenos em suas diferenças. Caberia, portanto, ao Estado oferecer todas as condições para que consigam praticar sua brasilidade – que passaria pela demarcação de todas as terras indígenas, atendimento de saúde diferenciado, educação que levasse em conta seus processos pedagógicos próprios, seus sistemas de cura, seus ciclos de produção, suas redes de interação com o ambiente, seus conhecimentos e sabedorias próprios.
Será que tudo isso este mesmo acontecendo? Sei que alguém há de perguntar. Eu responderia dizendo que muita coisa aconteceu e está acontecendo porque é um processo que não tem hora pra acabar. A partir dos anos 1990 os indígenas passaram a se organizar de maneira mais livre, sem as amarras institucionais que a Funai impunha. Surgiram organizações não governamentais autônomas; projetos e programas de atendimento à saúde e educação com a obrigatoriedade de que técnicos de saúde e professores fossem indígenas; cresceu a presença indígena nas universidades; houve maior visibilidade das práticas sociais e políticas; aumento substantivo da população indígena; a cultura indígena está mais presente na sociedade brasileira. Muitas outras coisas não aconteceram, como a esperada demarcação das terras indígenas. Nisso houve um retrocesso muito grande, parte porque o Estado não se mobilizou para efetivar o direito, parte por conta dos interesses transnacionais nas riquezas que estas terras guardam. Este é um capítulo à parte que ainda deverá ser escrito na história brasileira.
Devo dizer que ainda há muito a se descobrir sobre os povos indígenas. Os próprios indígenas estão dispostos a contribuir para que isso aconteça. Não à toa já se fazem presentes na sociedade participando, interagindo, contribuindo, planejando, atuando, ensinando. Já são mais de 5 mil estudantes indígenas nas universidades; mais de 20 doutores e outros 50 mestres, além de mestrandos em diversas áreas do conhecimento. Pouco, é verdade. Mas não se pensarmos que isso tem apenas pouco mais de 20 anos.
Há também muitos problemas a serem resolvidos e que passam pela participação mais efetiva dos indígenas e pelo interesse do Estado brasileiro que não podem ficar à mercê das bancadas de apoio. Essas bancadas quase sempre são compostas por inimigos dos povos indígenas e que não querem que nossos direitos sejam efetivados. Ao Estado cabe proteger esses direitos e à sociedade civil organizada obrigá-lo a isso. Os direitos indígenas foram uma conquista, e não um benefício a nós oferecido. Temos o direito. Temos que lutar ainda mais por ele.
Como diziam os primeiros mentores do movimento indígena: Não esperamos ninguém. Somos aqueles por quem esperamos.
NOTAS
[nota 1]. Utilizo os termos “tribo” e “índio” sempre entre aspas lembrando que estas são palavras que caíram em desuso e que seus significados já não são mais compatíveis com nomenclaturas mais recentes.
* Daniel Munduruku é escritor, doutor em Educação (USP), pós-doutor em Linguística (UFSCar), autor de Kabá Darebu