O artigo do escritor Allan da Rosa, reduzido no impresso por questões de espaço, aqui segue na íntegra.
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Achille Mbembe é um filósofo camaronês que lecionou em cátedras do hemisfério norte antes de situar-se em Johannesburgo, onde atualmente dá aulas e bola um livro sobre o cosmopolitismo negro. Podemos considerá-lo até da estirpe de seu apreciado Frantz Fanon, por sua forma de movimentar o pensamento quase exaurindo possibilidades e descascando prismas pelas histórias das ideias e de seus usos, vigas e contradições, indo às fontes das ideologias e sistemas que hoje parecem fixos e, para alguns, irremediáveis. Quem ponga desavisado num capítulo qualquer de suas obras, pode contemplar análises profundas da água e sua invencibilidade, seus estilos de deslizes e sua tonelada represada, sua majestosa e inevitável presença, seus tratos essenciais aos outros elementos, para num tomo seguinte mergulhar nas fragilidades e numa coleção de derrotas da mesma água, por seus vapores fétidos e a desgraça das securas, antes de Mbembe abrir um tópico sobre a matéria do fogo e seus prêmios, até que mais a frente se centre nas fraquezas da chama e seus voleios, nas frestas entre os desenhos da fumaça, na queimadura na pele e o sussurro da brasa; até que nos recorde das cinzas e, como num enlace para amplos panoramas esquadrinhados, nos convide a pensar os pontilhados do álcool, que é caldo e é essência de labareda; filho, amante e mãe da água e do fogo, presença de mistérios, objeto tangível com história e mira, abraçado e orquestrado pelos sonhos e obsessões humanas.
Ou seja, quem lê Mbembe se põe a conhecer a casa toda de uma ideia pra sentir o prumo de sua arquitetura, saber onde o teto prenuncia desabar e qual é a sala respingada com água de cheiro, porque ele é de expor o horizonte de uma varanda para logo depois pensar num mofo de cantinho, seu avesso, mirando até a fundura os conceitos e seus raios de ação.
Em tempos de maniqueísmo berrante e certezas raivosas, quando se insiste explicitamente no uso de óculos de uma lente só, Mbembe traça rastros pulsantes no nó das bifurcações. Seja em África insubmissa, livro em que dichava religião e sociedade no continente por seus símbolos, discursos e sangrias políticas, ou no já notório Crítica da razão negra, enfim aqui publicado, em que Mbembe destrincha o imaginário e a construção de um ser negro pelo ocidente escravista e as assimilações, respostas e revides que essa podreira obteve de vozes insurgentes irradiadas pelo pan-africanismo, pelo nacionalismo negro ou no movimento Negritude. Este livro, aliás, lhe rendeu aqui uma relativa fama que coloca seu nome em chamadas estratégicas de capa de revistas de ciência e de arte, mesmo que ao folhear lhe encontremos apenas em coluninhas de 8 linhas parecidas com ligeiras seções de classificados, como testemunhei meses atrás numa publicação ‘cultural’ de instituição banqueira, dessas que em nosso tempo tentam balancear a rejeição de suas marcas e variar seus investimentos entre latifúndios e circuitos financeiros, operando o capital simbólico enquanto sediam encontros e abrem exposições, palcos e editais a quem ali caiba num eventual carimbo de estética “insurgente, comunitária ou tradicional”. Mbembe inclusive é um dos que já teorizou sobre tal face do neoliberalismo, que engloba discursos e capas étnicas ao mesmo tempo que morde, escanteia ou estrangula quem esteja à margem das grandes instâncias decisórias e assim passa a ter direito aos atestados estéticos e às moedas que são migalhas do grande banquete trilionário das corporações, multiplicadas a cada ano, a cada golpe, a cada rapa da mão grande. Ao tocar e destrinchar o neoliberalismo e seus abates globais, o filósofo chega a por no tabuleiro se já-já chegaremos à época em que “todos serão negros”, diante de tantas condições degradantes atribuídas aos descartáveis do sistema. Pegada essa que merece detidas reflexões, para não perdermos de vista o que ainda são rodos cavalares e genocídios baseados mesmo em algo muito maior do que uma definição restrita de classe ou em discriminações por cultura e etnia, e sim, tristemente, fincados em fenótipos e corpos fadados ao desprezo colonialista, ainda tão maciça lâmina quente desde o princípio do que podemos chamar de ‘modernidade’ - ou de era das catástrofes para povos africanos e indígenas das Américas, entre outros decepados pelo planeta, desconsiderados nas cartilhas e nos porões não apenas por suas linguagens e culturas consideradas de segunda mas por suas cores e peles. O que se chamou de pós-racial é um embuste, um desejo, uma luta ou um quadro com molduras sólidas amparando tintas em decomposição? É um belo desafio, nas atuais reconfigurações mundiais do capital com seus abalos estruturais, acompanhar as proposições de Mbembe que oscilam entre considerar Raça ora como eixo central de suas problemáticas, ora como questão que flutua entre papel secundário ou superável.
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Mortandade e racionalidade trançadas são o mote do seu ensaio Necropolítica, um livro mais sintético que vem sem a vastidão minuciosa e a enxurrada de referências. Aqui no Brasil já voga como termo muito citado diante do genocídio cotidiano do povo preto, trazendo comparações sobre o que há de específico no jeito de rechearmos nossas valas e cemitérios, baseado em ódios e estruturas de cinco séculos, e o que se entrosa às tecnologias globais contemporâneas. O que é nosso racismo sistêmico que se garante num projeto às vezes disfarçado e noutros momentos escancarado, e o que se diferencie do arreio balizado mundo afora. Isto se engancha na necessidade de criar perguntas, condições e veredas que barrem os processos atuais devastadores do planeta e do convívio das gentes, recriando ideias e presenças de luta por justiça, harmonia e felicidade.
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“Aqui neste lugar, nós somos carne; carne que chora, ri; carne que dança descalça na relva. Amem isso. Amem forte. Lá fora não amam sua carne. Não amam seus olhos; são capazes de arrancar fora os seus olhos. Como também não amam a pele de suas costas. Lá eles descem o chicote nela. E, ah, meu povo, eles não amam as suas mãos. Essas que eles só usam, amarram, prendem, cortam fora e deixam vazias. Amem suas mãos! Amem. Levantem e beijem suas mãos. Toquem outros com elas, toquem uma na outra, esfreguem no rosto, porque eles não amam isso também. Vocês têm de amar, vocês! E não, eles não amam sua boca. Lá, lá fora, eles vão cuidar de quebrar sua boca e quebrar de novo. O que sai de sua boca eles não vão ouvir. O que vocês gritam com ela eles não ouvem. O que vocês põem na boca para nutrir seu corpo eles vão arrancar de vocês e dar no lugar os restos deles. Não, eles não amam sua boca. Vocês têm de amar. É da carne que estou falando aqui. Carne que precisa ser amada. E, ah, meu povo, lá fora, escutem bem, não amam o seu pescoço sem laço, e ereto. Então amem o seu pescoço; ponham a mão nele, agradem, alisem, endireitem bem. E todas as suas partes de dentro que eles são capazes de jogar para os porcos, vocês tem de amar.”
Essa é uma fala de Baby Suggs, personagem de Amada, talvez o maior dos livros magistrais de Toni Morrison, um entremeado de histórias fascinantes, doces e asquerosas numa trama fantasmagórica que aflige uma mulher que matou sua filhinha para não vê-la tomada por escravistas. Mbembe marca em Necropolítica a engenhosidade do sistema da plantation [nota 1], ainda alastrado nas Américas após as abolições oficiais da escravatura. O filósofo retoma uma das clássicas noções sociológicas que aponta a política como algo que se faz para não se fazer a guerra, pautando assim compromissos e direitos internos ou além de fronteiras nacionais. Mas a partir daí pensa como a propalada noção de democracia, colorida por pincéis colonialistas, projetou práticas de soberania que instrumentalizam e destroem os corpos considerados inimigos ou entraves, apontando-os como seres considerados "incivilizados" ou nocivos ao seu domínio" . Mas Mbembe ainda mergulha em Bataille, que considera o suicídio como comédia humana, para descortinar como kamikazes e mártires se diferenciam do que costumamos chamar de heróis, pelos atos de definir a própria hora da morte, empenhados em razões e metas dos grupos que integram. Por aí, as ideias de Mbembe são atravessadas por novas questões, como o movimento da personagem Sethe, protagonista de Amada, e de outras mulheres que inflamam e subvertem sentidos de maternidade e de amor ao matarem suas nenês (por vezes gerados em recorrentes estupros) confundindo pelo menos no plano miúdo a autonomia diante da morte em plena escravidão que lhes retira seus direitos políticos, arrebata seus corpos e pesa seus coágulos ao lhes impedir de se autodeterminar e de ter lugar, no coração do horror que formou as nações modernas. Me recordo do capoeira Mestre Armandinho no Ceará conversando sobre as regras maleáveis de uma roda, questionando origens: “Ética? Que ética você pode pensar ou querer ditar pra uma pessoa escravizada?”
Mbembe repassa ainda as categorizações do racismo baseado no conceito de biopoder que busca em Foucault. Traça as relações entre razão e terror na revolução francesa e considera as práticas de primazia da força encontradas num certo comunismo que perseguiu a superação das noções de sujeito e objeto também pela militarização. Demonstra o cerne da racionalização na categorização racial que instituiu o sistema do apartheid e suas lógicas casadas de espaço, de trabalho e suas relações com os estados de exceção e de sítio, além de expor o gérmen nazista já na lógica de gestão do maquinário e das populações nos tempos incipientes da revolução industrial e de consolidação da colonialidade.
A historiadora obstinada é um dos contos de No seu pescoço, grande livro de contos de Chimamanda Ngozi Adichie. Nesta história, a autora apresenta tabus, pelejas familiares, relações espinhosas entre crenças e uma mulher propagada como maldita por parentes interesseiros que ambicionam suas terras enquanto chegam missionários ingleses na Nigéria. Surge o que Mbembe qualificou como uma chave colonial: terras onde a Jus pública europeia pode ser deixada de lado, onde a lei pode ser desprezada e a terra ser arrasada em função de projetos maiores de fixação e consolidação de domínio. Estes modos de desconsiderar lugares em que a lei pode ou não valer, espelha o que acontece hoje em quebradas, aldeias e muitas beiradas brasis? Abaixo, um trecho do conto:
“Ayaju voltou de uma viagem em que fora trocar mercadorias com mais uma história: as mulheres em Onicha estavam reclamando dos homens brancos. Elas tinham ficado felizes quando eles construíram um posto de troca, mas agora os brancos estavam querendo ensiná-las como fazer negócio e, quando os anciãos de Agueke, um clã de Onicha, se recusaram a colocar os polegares num pedaço de papel, os homens brancos vieram à noite com os homens normais que os ajudaram e arrasaram a aldeia. Não tinha sobrado nada. Nwamgba não entendeu. Que tipo de arma esses brancos tinham? Ayaju riu e disse que as armas deles eram bem diferentes daquela coisa enferrujada que seu marido tinha. (...) E então, a chegada de missionários que pareciam indefesos e eram da cor de albinos, frágeis e delgados que falavam igbo, fizeram a mãe pensar em depois de muita relutância entregar seu filho a educação cristã. (...) Eram todos da Congregação do Espírito Santo; haviam chegado a Onicha em 1885 e estavam construindo sua escola e sua igreja lá. Nwamgba foi a primeira a fazer uma pergunta: eles por acaso haviam trazido suas armas, aquelas que tinham usado para destruir o povo de Agueke, e ela podia ver uma? O homem disse que infelizmente eram os soldados do governo britânico e os mercadores da Royal Niger Company que destruíam aldeias; já eles traziam boas novas. Ele falou de seu deus, que viera ao mundo para morrer, e que tinha um filho, mas não tinha esposa, e que era três mas também era um. (...) Semanas depois, Ayaju voltou com outra historia: os homens brancos tinham construído um tribunal em Onicha, onde julgavam disputas locais. Tinham vindo, de fato, para ficar”
Como atual estágio da necropolítica, Mbembe assinala guerras e ocupações contemporâneas, por suas táticas de gestão territorial e sua tecnologia bélica avançada testada regularmente arrasando Kosovo, Palestina e outras paragens. Centra-se na África e as tretas suadas por exércitos mercenários que já não se restringem a fronteiras nacionais, concebendo como soberania “a capacidade de ditar quem pode viver e quem decide morrer”, refletindo também como a memória da morte se faz, seja a pessoal, a do bairro, a da cidade ou da nação. As milícias retratadas por Mbembe foram bem descritas em Alá e as crianças-soldado, romance satírico de Ahmadou Kourouma, que em Os sóis das independências já havia tocado com humor e ironia nas fraturas entre as comunidades tradicionais e as novas elites de um continente que foi paulatinamente testemunhando a perda dos valores que guiaram a união africana contra as colonizações. Eis a voz de uma criança viciada em explicar tudo que vê enquanto roda e integra gangues mancomunadas à multinacionais, sacerdotes e legisladores platinados:
“A Cia Americana de Borracha era a maior plantação da África. Ela cobria um enorme terreno de quase cem quilômetros quadrados. Na verdade, todo o nordeste do país pertencia à companhia. Ele pagava um monte de royalties divididos entre duas antigas facções – o bando de Taylor e o bando de Samuel Doe. (...) Djogo-djogo Johnson tinha obtido um acordo secreto. Houve uma festa no acampamento. Todo mundo dançou. Johnson de batina de padre com a kalachnikov rebolou até não mais poder e acabou dando cambalhotas. (...) a Libéria inteira, de Monróvia até o último recanto do país, sabia que Johnson tinha assinado um acordo secreto com o presidente da plantação. As outras facções não deixaram por menos. Os chefes logo se apresentaram na plantação e pediram para ser recebidos pelo presidente. Eles apresentaram ultimatos. O presidente para se safar, decidiu repartir a vigilância das cercanias da plantação em 3 ou 4 partes, cada uma delas sendo atribuída a uma facção (...) Na impossibilidade de um acordo para todas as propostas razoáveis vindas de sua parte, o presidente declarou às facções que tratassem de se entender sozinhas. O que equivale a jogar um osso só para 3 canzarrões turbulentos de impaciência”.
Como as milícias brasileiras, entranhadas cada vez mais em governos e vereanças, dominando negócios e funerais entre ladeiras e becos ou regendo o ritmo dos necrotérios nas disputas entre fazendas e estradas, se relacionam com a ficção de Kourouma? E como podemos perceber em nosso chão os pilares da necropolítica anunciada por Mbembe?
NOTAS
[nota 1] Nota da edição: trata-se de monocultura de exportação baseada em latifúndios e mão de obra escravizada, amplamente usada na colonização da América, Ásia e África (os ciclos da cana-de-açúcar e café são exemplos). Ainda é usado em vários países – com a diferença de que, em tese, atualmente se prescinde da mão de obra escravizada.
* Allan da Rosa é escritor, historiador, angoleiro e arte-educador popular, autor de Pedagoginga, autonomia e mocambagem, entre outros