Ruy Belo artigo ago.18

 

A minha aproximação com alguns poetas costuma acontecer por motivos semelhantes, indo de encontro àqueles que despertam algum tipo de desconforto poético e que conseguem, sobretudo, se mostrar atentos ao seu tempo. Também me coloco ao lado dos dispostos a tratar sobre a dor – porque é muitas vezes ao poema que recorremos quando todo o resto já não basta. E por isso, também me ponho ao lado dos que aceitam falar da morte – da morte do corpo –, assim como Ruy Belo.

Nascido em 1933, na pequena freguesia de São João da Ribeira, cidade tipicamente portuguesa de formação cristã e população majoritariamente feminina, Ruy Belo foi o verdadeiro poeta obscuro. Certamente, não nasceu em um período fácil, já que 1933 também foi o ano da Constituição Portuguesa que instaurou a ditadura de Salazar, assim como o ano em que os nazistas fizeram a grande queima de livros na Alemanha. Como disse o próprio poeta em Vat 68, um de seus ensaios dedicados à morte de Manuel Bandeira, “Todos os anos são anos de morte”. Agora, em 2018, faz 40 anos que Ruy Belo morreu, e por isso temos a oportunidade de fazer deste não só um ano de morte, mas também de poesia. Esta, então, é uma espécie de obituário – um texto em sua memória.

Ruy Belo levou uma vida completamente dedicada ao texto e aos estudos, publicando nove livros de poemas e um grande apanhado de ensaios e críticas. Mas o que vale aprofundar aqui são certos aspectos da sua poética, como sua aproximação com o cultivo da terra e dos saberes metafísicos; nos mostrando um crescente fértil – campos poéticos férteis, como em Aquele grande rio Eufrates, de 1961, seu livro de estreia: Somos verdadeiramente pessoas seguras de si/ Longe de nós — que fará ele aqui? — o pensamento/ de um dia deixarmos atrás de nós um corpo/ lembranças nossas em alguém vazios os lugares onde estivemos.

Estes versos inauguram a obra, compondo um poema longo e de profunda negatividade. Há uma aguda visão da negatividade enquanto um estado de profusão mortífera, mas é preciso ressaltar que aqui o negativo é principalmente um espaço vazio. Trata-se de pensar a obra poemática de Ruy Belo distante de uma concepção producente de preenchimento, de criação de respostas. O que se percebe em sua poética é, na verdade, uma completa dedicação ao hermetismo, à obscuridade – ao esvaziamento. E lembremos também que no início era o caos, o vazio antecessor da criação. Em grego, “vazio” se diz por kenós e sua variação kenwsis é o esvaziamento pelo qual Jesus passou, na Carta aos Filipenses, para assemelhar-se aos homens, fazer-se humano como nós; esvaziar-se de si mesmo para receber o outro, porque, afinal, somos verdadeiramente pessoas seguras de si.

Esvaziar-se pode também ser uma forma de esquecer e por isso não surpreende que Ruy Belo não tenha recebido nenhum prêmio em vida. Adília Lopes, poetisa portuguesa recém-editada no Brasil, disse em uma de suas últimas entrevistas que ele é subvalorizado “porque as pessoas têm relutância a certas referências religiosas e por isso não o consideram muito”. É difícil acreditar na sua baixa recepção a partir dessa chave, considerando que Portugal possui uma origem tão católica (sem falar do Brasil). Apesar disso, existem algumas informações que precisamos considerar, como seu envolvimento com a Opus Dei; sua sensação de despertencimento com seu país, percebida em pronunciamentos do tipo: “é realmente uma desgraça ter nascido em Portugal. Parte para a vida em desvantagem”; ou ter lançado seu primeiro livro justo na mesma semana que Herberto Helder lançou A colher na boca.

Antes de tudo, aceitemos que cabe ao poeta falhar, principalmente porque cair é importante para o poema – e às vezes carregar alguns versos consigo é exatamente o motivo da queda – mas para além disso, a sua tardia entrada no espaço literário também se mostra um mosaico de dificuldades humanas: A morte é a verdade e a verdade é a morte/ Ao homem não foi dado nenhum outro dia/ e a vida é qualquer coisa como nunca mais chegar. Resiste-se à sua obra, como resiste-se ao enfrentamento dos obstáculos – e a morte sempre foi o maior deles.

Assim como Fernando Amaral fala-nos em seu prefácio da edição portuguesa do livro de Ruy Belo, publicado em 1962, O problema da habitação: alguns aspectos, “o acto de amar a vida implica também amar a morte”. Se estamos atados à vida, é porque nos atamos também à morte. É dessa forma que passamos a habitar casas sobrepostas, numa espécie de revezamento entre preencher e esvaziar os lugares, um jogo entre positivo e negativo. Entretanto, logo notamos que a dicotomia vida & morte não se sustenta por muito tempo na poética de Ruy Belo, porque nela o abismo da morte coexiste também com o da vida – a morte está no corpo. E por isso é importante lembrarmos do corpo, porque falar da morte é falar do término da matéria e, a rigor, nada mais que isso.

Nos primeiros poemas desse mesmo livro, Quasi flos e Imaginatio locorum, acrescenta-se ainda o problema de que esse corpo disputa espaços com outros corpos, como se construísse algo em cima de lugares já construídos. Arquitetamos a vida numa multiplicação de ruínas, empilhando um a um os dias da mesma forma que empilhamos os corpos – a maior dificuldade encontra-se em habitar a si mesmo –, enquanto a alegria é uma casa recém construída/e uma casa é a coisa mais séria da vida. Assim buscamos o topo das habitações na procura de um horizonte, um espaço que ainda possa estar vazio para nos reedificarmos, afinal a alegria é uma casa demolida.

Após a ruína, resta-nos a memória, e por isso realizar esse obituário poderia se tornar um peso, se todo esse percurso não nos trouxesse também a lembrança dos poemas (e qualquer oportunidade para ler Ruy Belo é sempre bem-vinda). Mas o peso ainda é inevitável. Em um de seus ensaios, o filósofo francês Lyotard nos pergunta “por que afinal filosofamos?”, respondendo logo em seguida que “filosofamos porque perdemos a unidade. A origem da filosofia é a perda do uno, a morte do sentido”. Toda a poesia de Ruy Belo procura restaurar a unidade entre os homens a partir do compartilhamento da morte, e é por isso que estamos aqui, mesmo com o peso – porque morrer é universal, é o que nos une. Assim como a morte sedimenta o homem à terra, mostrando sua finitude material, Ruy Belo sustenta sua poesia por uma espécie de mediação entre os dois planos, como se extraísse a morte das coisas para mantê-las vivas. “Creio que nem por pintar porventura a realidade melhor do que ela é a deixo de pintar como é”, assim definia sua própria obra. Pois por pintar a realidade da melhor forma é que se tornou, por meio da morte, um poeta das coisas vivas, e por mais controverso que pareça, sua obra manifesta, sim, uma certa alegria – um deslumbre divino – em estar diante de todas essas coisas vivas.

Em Boca bilíngue, de 1966, uma dessas coisas vivas é o próprio idioma, onde o poeta nos aproxima da língua materna (a que temos em comum) e da linguagem metafísica (cosmogônica). Porém, o que se nota desde o começo do livro são alguns espectros já conhecidos pela literatura portuguesa, como uma espécie de dificuldade de origem, que aparece na série de poemas intitulados Portugal sacro-profano, especialmente no verso: Nenhum cordão nos prende por instantes a nenhum umbigo; e também na epígrafe do livro de Manoel Gomes da Silveira: porque loucos não os há, senão em língua portuguesa. Percebe-se que a proposta é que o poeta nos ensine sua língua; embora ela não seja propriamente a língua portuguesa, mas sobretudo a linguagem dos poemas, pois “bilíngue é toda a poesia”; e a partir da linguagem da poesia somos iniciados também a um tipo de linguagem da terra, da natureza: de todas as coisas ao nosso redor.

Embora a poesia não seja o meio mais apropriado para alguém se fazer entender, Ruy Belo mostra como ela é certamente uma ferramenta de acesso, se utilizando da memória como elemento de fixação, de contato, confluindo com o que Silvina Rodrigues diz em seu livro Literatura, defesa do atrito: “é na poesia, e a partir da poesia, que o pensamento encontra a memória”, esse grande exercício de recordação, de reconstrução narrativa, de imaginação. Logo, é assim que a poética de Ruy Belo nos acessa: ao dar voz às coisas ao nosso redor, uma voz que nos canta a vida, Uma voz canta,/ alguém além mais longe chora/ O adro a árvore a casa se está, onde se entra e mora/ Aqui o homem é... ou era mesmo agora. Sua poesia permanece conosco porque se transforma em um elemento primordial e coletivo: nenhum poema (como a memória) exclusivamente nos pertence, pois nada que nos atravessa é único (ou até mesmo real), fazendo com que o compartilhamento poético ocorra por meio das imagens que reunimos e reconstruímos, juntos, no poema: Nada na minha poesia é meu/ juro por Deus dizer toda a verdade/ Ponho a mão na cabeça o dia é escuro e vago e eu respiro/ Espero pela manhã como quem nasce [nota 1]. E não esquecemos dos poemas de Ruy Belo porque, na verdade, eles nunca deixaram de estar por toda a parte – coube ao poeta apenas nos lembrar.

Por fim, poucos também se lembram, mas seus nove livros de poesia foram publicados aqui pela editora 7Letras, entre os anos de 2013 e 2014, num trabalho de agrupamento poético que recepcionou não só sua obra, mas também prefácios de diversos poetas brasileiros. Antes disso, havia apenas um único número da antiga revista Inimigo Rumor dedicado ao poeta, publicado em 2003. Quanto a sua obra crítica, só há uma única edição publicada em Portugal pela Assírio & Alvim – mas Ruy Belo está por toda a parte, nas minúcias, sendo revisitado constantemente pelos poetas. Por isso, me parece necessário dizer que conheci sua obra pela de Eugênio de Andrade, em um poema dedicado à morte do amigo: Agrada-me que tudo assim fosse, e agora/ que começaste a fazer corpo com a terra/ a única evidência é crescer para o sol – enquanto nós ficamos à sombra.

 

NOTAS

[nota 1] Em cima de meus dias, de Boca bilíngue, 1966.

 

* Isabela Benassi é escritora e mestranda em Literatura Portuguesa pela USP

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