Capa.set18 3 Hana Luzia

 

 

Abaixo, o ensaio de Silviano Santiago sobre o exercício da linguagem na obra de Graciliano Ramos com seu nome original. Aqui, o nome da postagem foi alterado por razões de divulgação. 

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PARCIMÔNIA DO SECO, FASCÍNIO DO SÓLIDO

Comecemos por algumas linhas de Memórias do cárcere. Elas traduzem o estoicismo filosófico – ético, estético e político – de Graciliano Ramos: “Queria endurecer o coração, eliminar o passado, fazer com ele o que faço quando emendo um período – riscar, engrossar os riscos e transformá-los em borrões, suprimir todas as letras, não deixar vestígio de ideias obliteradas”. Em Graciliano, emoção e escrita literária se interpenetram. Interpenetram-se também a reflexão sobre a dita espontaneidade dos sentimentos cotidianos e o trabalho duradouro que a arte requer e deve ser exercido, a posteriori, sobre os borrões. Borrar a espontaneidade dos sentimentos cotidianos significa questionar preconceitos dissimulados, impostos pela formação pequeno-burguesa, que nos enriqueceu sem dúvida, mas de que padecemos, se pensarmos nas injustiças de que é vítima a maioria da população brasileira.

Ao acertar o passo dos propósitos contraditórios de uma escrita literária capaz de abrir espaço para uma sociedade futura, Graciliano encontra uma forma trabalhosa: ao borrar os desacertos sentimentais do passado, melhor se enxergam os caminhos iluminados do futuro. Ao borrar a palavra apressada que lança na folha de papel, o artista sai em busca da palavra certa para o lugar certo. Tanto a depuração da experiência que fundamenta a memória, quanto a depuração do estilo que alicerça a narrativa têm o fim de não deixar o cidadão e o artista caírem nas ciladas armadas pelos poderosos do momento e pelos pares pequenos burgueses, ávidos que sempre estão a oferecer ao primeiro – o cidadão – o salvo-conduto da má fé, de que fala Jean-Paul Sartre, e ao segundo – o artista – os grossos dividendos do mercado e os louros espúrios da Academia.

A partir da depuração da experiência e da depuração do estilo pode surgir no campo estreito e esplendoroso da arte literária de Graciliano Ramos a ideia duma utopia socialista. A atitude radical do escritor alagoano não é decorrência do temperamento. Como ele próprio nos alerta, o borrão na folha de papel, que recobre e elimina a escrita apressada, equivocada e preguiçosa, é virtude literária que serve para guiar a vontade de endurecer o coração com a finalidade de eliminar o peso do passado. Por detrás da atitude radical está a força absoluta da indecisão, ou melhor, a prática diuturna dos borrões. Feito o borrão, brota, alicerça e se afirma na folha de papel em branco a certeza e a coragem da decisão, fruto que é do império da razão.

Os escritores que nos legam livros que são apenas produto do “talento individual” – por mais extraordinário que seja este – saltam, dão cambalhotas no ar, recebem aplausos e desaparecem com o correr dos anos. Já os que nos deixam escritos amadurecidos lentamente, ao compasso da vida que brilha e da história humana que se esvai, produzem efeitos inesperados e definitivos no leitor. Ao lê-los e ao refletirem sobre seus escritos, o leitor atento, o crítico e o historiador da literatura percebem concomitantemente o “atraso” no sistema literário vigente e são levados a repensá-lo, induzidos que estarão pela força histórico-social que esses poucos e definitivos livros carreiam. São eles que nos levam a revalorizar e a reorganizar, a partir de insuspeitados parâmetros originais, o acervo artístico de uma nação ou da humanidade.

Nascido em 1892, o velho Graça não chega tarde ao cultivo das letras, como se depreende dos textos publicados em jornal entre os anos de 1915 e 1921, que estão hoje reunidos no volume Linhas tortas; chega, no entanto, tarde ao livro publicado e distribuído pelas livrarias do país. Seu primeiro romance, Caetés, foi editado no ano em que cumpriu 41 anos. Talvez por ter chegado tarde ao leitor de livros, chega enriquecido por uma reflexão pessoal e intransferível sobre a arte de narrar. Muito dessa arte, sabemos, foi tomada da leitura dos realistas-naturalistas portugueses, em particular de Eça de Queirós, o mais vigoroso e iconoclasta romancista do século XIX português.

Em longa frase entrecortada por pontos e vírgulas, escreve Graciliano: “Eça é grande em tudo – na forma própria, única, estupendamente original, de dizer as coisas; na maneira de descrever a sociedade, estudando de preferência os seus lados grotescos, ridicularizando-a, caricaturando-a; na arte com que nos sabe transportar do burlesco ao dramático, da amenidade de uma palestra entre íntimos às paisagens de Sintra, dos salões de Paris às serras de Tormes, das práticas devotas de uma velha casa cheia de padres à Jerusalém do tempo de Jesus”.

Dele tomou de empréstimo não só a qualidade castiça do idioma português, como também o espírito político revolucionário, sempre crítico das injustiças que as formas despudoradas do colonialismo e do pós-colonialismo continuavam a operar pelas margens do mundo europeu, quando tudo indicava que os tempos democráticos eram chegados. Sem tempo hábil para desenvolver a ideia, gostaria, no entanto, de lançá-la como hipótese nesta ocasião. Eis a ideia.

O nordeste de Graciliano Ramos tem muito a ver com a Irlanda que Eça de Queirós descreve e analisa nas extraordinárias Cartas de Inglaterra (escritas entre 1874 e 1878) que ele devorou com entusiasmo juvenil depois de reunidas em livro. De maneira simples, eis a hipótese: o efeito Irlanda, via leitura de Eça de Queirós, está para Graciliano, assim como o efeito Espanha, via atividade diplomática, está para João Cabral.

Começarei a elaborar a hipótese de trabalho com algumas palavras de Antônio José Saraiva, tomadas do seu livro As ideias de Eça de Queirós, e continuarei por outras poucas palavras tomadas de empréstimo a uma das cartas da Inglaterra do próprio Eça. Leiamos Saraiva e, ao mesmo tempo, substituamos mentalmente algumas referências à Irlanda do século XIX por referências à situação social e econômica do nordeste do Brasil no século XX, que conhecemos tão bem. Por exemplo, onde se lê land-lord inglês, leia-se latifundiário nordestino. Comecemos por Antônio José Saraiva:

Só nos fins (do século XIX) a exploração (da Irlanda) pela Inglaterra deixou de ter caráter colonial. Com efeito, a terra irlandesa estava dividida em enormes latifúndios por alguns grandes proprietários ingleses, e o alento dos naturais da ilha era consumido até ao último sopro para manter o fausto e o esplendor dos referidos proprietários estrangeiros. (...) Esta questão da Irlanda é talvez a que deixa um sulco mais fundo e mais comovidamente humano nas Cartas de Inglaterra. E aqui, como no caso do Egito, Eça sabe ver para além do pitoresco romântico as leis rígidas que presidem aos fenômenos sociais: a fome da Irlanda é o resultado do regime da propriedade e das relações dos land-lords com os trabalhadores da terra.

Teríamos de ler em seguida, e por extenso, a carta da Inglaterra que leva por título A Irlanda e a Lei Agrária, publicada na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em 20 de fevereiro de 1881. Contentemo-nos hoje com algumas frases soltas:

Há também outra coisa que se percebe bem: é que a população trabalhadora da Irlanda morre de fome, e que a classe proprietária, os land-lords indignam-se e reclamam o auxílio da polícia inglesa quando os trabalhadores manifestam esta pretensão absurda e revolucionária – comer. (...) Como proprietário do solo, pois, o Lord arrenda-o às famílias que de geração em geração vivem nas suas terras: o irlandês prende-se ao solo como uma árvore pelas raízes, e muitas vezes prefere morrer a abandonar um torrão árido que o não nutre. (...) A natureza quando não se apresenta ao trabalhador irlandês sob o aspecto de solo pedregoso, mostra-se sob o aspecto de pântano. Oferece-lhe de um lado um penedo, do outro um charco. // E diz-lhe com a sua ternura de mãe: // – Escolhe. De qual preferes tirar tu os meios de subsistência.

Se as ideias socialistas de Eça de Queirós, em particular as que atacavam de maneira corajosa os dramas do colonialismo e do pós-colonialismo europeu, tiveram enorme impacto na formação intelectual de Graciliano Ramos, sabemos que o estilo do autor de Os Maias, presente e forte em Caetés, como Antonio Candido demonstrou em Ficção e confissão, será pouco a pouco abandonado em favor de uma escrita brasileira. Documento dos mais extraordinários para indicar a ruptura estilística com o romancista metropolitano é a carta que dirige à dona Heloísa de Medeiros Ramos, sua esposa.

Escreve-lhe Graciliano no dia 1º de novembro de 1932:

O S. Bernardo está pronto, mas foi escrito quase todo em português, como você viu. Agora está sendo traduzido (negrito meu) para brasileiro, um brasileiro encrencado, muito diferente desse que aparece nos livros da gente da cidade, um brasileiro de matuto, com uma quantidade enorme de expressões inéditas, belezas que eu mesmo nem suspeitava que existissem. Além do que eu conhecia, andei a procurar muitas locuções que vou passando para o papel.

Portanto, existem duas versões do romance S. Bernardo. A primeira, escrita originariamente em língua portuguesa, devedora por certo dos ensinamentos dos clássicos lusitanos, é transcrita (Graciliano vai além, escreve: traduzida), ganhando novo léxico e nova sintaxe, com vistas a uma segunda versão, onde predomina uma língua brasileira encrencada, um brasileiro de matuto. Abandonados o léxico e a sintaxe propriamente d'Os lusíadas, abandonado o dicionário luso, o de Morais ou o de Cândido Figueiredo, Graciliano, tal um etnógrafo em viagem pela própria terra natal, busca o dicionário vivo que sai da boca dos amigos e companheiros. Graciliano acrescenta na citada carta:

O velho Sebastião, Otávio, Chico e José Leite me servem de dicionários. O resultado é que a coisa (refere-se ao romance) tem períodos absolutamente incompreensíveis para a gente letrada do asfalto e dos cafés. Sendo publicada, servirá muito para a formação, ou antes, para a fixação da língua. Quem sabe se daqui a trezentos anos eu não serei um clássico?

Pode-se concluir, em apenas aparente contrassenso, que o estilo clássico de Graciliano deve muito à fala de Sebastião Ramos, dos irmãos Cavalcanti, Otávio e Chico, e do padre José Leite, primo-irmão de Heloísa.

Agindo como etnógrafo em viagem pela terra natal, Graciliano Ramos foi pouco a pouco transpondo os cerceamentos impostos pela única atenção à forma castiça do português escrito em Portugal. Consegue proeza quase impossível – a de criar em cima da língua rebuscada e vigorosa de Eça de Queirós uma língua brasileira parcimoniosa e acre-doce, cética e classicizante, semelhante à do nosso Machado de Assis. Ressalte-se esta frase de Mário de Andrade, leitor de Machado:

Machado de Assis (...) era o homem que compunha com setenta palavras. Era aquele instrumento mesmo de setenta palavras, manejado pelos velhos clássicos, que ele adotava e erguia ao máximo da sua possibilidade acadêmica de expressão culta da ideia.

A que acrescentamos, para finalizar, quatro versos célebres de João Cabral de Melo Neto:

Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca.