Solano.3 KarinaFreitas dez.18

 

 

O senhor. No telecoteco de um tamborim o teu suor mais doce, no ninho e na revolta se enamorando ali na Escola de Samba Quilombo, Escola, sem deslumbre de desfile oficial, mas em cortejo cotidiano na quebrada, de Coelho Neto a Acari. Na G.R.A.N.E.S (saberão o significado vital da sigla?) Quilombo, a independência das correias do governo, das antenas do entretenimento e do cartão-postal pra turista. O senhor, cantado poeta, embalando na gana das caixas, silvando nas cuícas, cintilando no anel prateado que ponteava o sete-cordas, soprando nas verdejantes folhas do Morro, as de Palmares... quintais de teu reinado sem fronteiras. Teus ensinamentos e tua memória celebrados no Tempo da melodia e no brinquedo da roda, no passo miudinho e nos versos de quentura, nos desafios da rima e na levada calangueira, na africania no lamento e no gozo. Ali regendo, desenhando, irradiando o sonho esteve Candeia, o pilar. Constou tua filha, dona Raquel Trindade, inventando carnavalesca e sem fresta pra playboy chegar impondo plumas. O senhor louvado com os cobras Wilson Moreira e Nei Lopes, dupla de mestres a comporem um dos mais formosos sambas da história humana pro teu lema Ao povo em forma de Arte, que foi o enredo do ano de 1978 (o da fundação do MNU, Movimento Negro Unificado que te trazia em alicerce de ideia e de sentimento). Com Lélia Gonzalez refletindo o crioléu, plantando e lutando contra a neurose fundamental brasileira. E junto e dentro e razão e mistério, o maior patrimônio de uma escola, pulsando com bambas famosos que não tiraram o pé do chão, curtindo a digestão das feijucas e peixadas, convivendo criativa e tecendo o tom milenar: a comunidade preta. A leva castigada, tripudiada, escanteada e há 500 anos desafiando os espelhos e valas deste país. No chão, tuas orelhas. Na liberdade, tuas íris, Seo Solano.

O senhor, eterno na lua cheia sobre a comunidade do Bode, ali no Pina. E ressoando no baque de responsa do Bongar, no cansaço entre o Barro e Camaragibe, no espoco entre as madeiras do Coque, deslizando pelo esgoto aberto de Casa Amarela, pisando a poeira das vielas do Ibura, brindando pelas escadarias estreitas do Alto José do Pinho. Teu espírito e teus calos antecedendo Brasília Teimosa, Seo Solano, já ali pirralho recebendo o tapa voante das gotas voadas do mar. O senhor, preto Atlântico, sarrando elegante com os discotecários mandarins da Cubana em Água Fria. Sou a ficção, florindo no abismo entre a Verdade e a Mentira, e a imaginação, esta erva de realidades, enxerga o teu abraço caligrafado em Abdias Nascimento e em Nicolas Guillén, numa irmandade que pode até prescindir de se resvalarem e dividirem mesa, vocês bordando compreensão, escrevendo mocambagens.

Sou teu medo madrugueiro, levado de cuecas do barraco estourado por milicos em Caxias e sou teu filho com sarampo arrancado de teu colo (o Seo Liberto que depois foi pura galhardia de mestre-sala na Mocidade Alegre, aqui da zona norte paulistana). Sou a solidão contigo na cela, espremido entre muitos braços escuros. Sou o travo da prisão incomunicável e a teimosa busca de tua família por mil porões, até tocarem tua mão na cana da Rua da Relação. E sou tua pisada solta, “poroso de poesia”, como o senhor traduziu e anunciou a vida contemplando em movimento a graça nas cores das frutas, nos ombros das mulheres, na arrelia das crianças, na cintilância da chuva, nos tachos e nos gestos dos marreteiros.

Sou o encanto arredio da banca negra que colou com o senhor no Embu, magnetizando a contemplação chapada daquela gurizada do Taboão da Serra e do Ferreira, mulecada da época e que hoje anciã me conta do espanto e do sorriso que neles brotaram, vendo sua trupe colorir o mapa, estilosa fundar território-terreiro e festar na lagoa. Sou o lábio que ri manhoso e um teco tristinho, diante do capataz que se morde e escarra pra dentro ao te ler e se reconhecer feitor. Sou as lascas da tua biblioteca de caixas de verdura, o toco de lápis no caderno de capa de veludo. Sou o hálito e o aroma da feira. Sou agulha-e-linha da bandeira, das sapatilhas e da Kalunga, costuradas pra rodar por subúrbios, por Campinas, Baixada Fluminense, Minas Gerais e Varsóvia girando com cabocolinhos, pastoris, samba de bumbo e cocos. Vou, já vou, já vou te buscar. E nessa travessia balanceira rumo Europa, sou teu silêncio perscrutando o mar, atencioso aos sais que vem lá do fundo, pintando na tua vista a queda dos que pularam e de quem foi arremessado. Com o senhor, poeta, sou o avesso e o inverso, sou os dentes de Bombojila.

Sou A rosa vermelha que não murchará, a que levou à tarde nas mãos com a pureza das crianças e enfeitou os cabelos da amada, pelos caminhos que teus pés traçaram com a leveza dos bailarinos, com o sol do teu sexo, com a cabeça firmando a consciência do século. Sou teus versos, cristais e decepções, mordiscos em mamilos tesos. A pirraça sapiente de manter a história frevente, o sonho de comida na gamela. Sou a canela ruça de Jorginho e sua bola de capotão, sou o Amanhã que dizias que era, o épico de Zumbi, a fartura da quizomba, a cama úmida, o gole gelado entre livretos na Lapa. Sou os teus dedos se soltando de unhas e de anéis dos irmãos que se afofaram em explorar outros patrícios. A desobediência de jovem diácono, diante da anestesia que se muletava num pastor desinteressado em discutir injustiças. Sou a carreteira que te invocou e te cobriu, as atas amareladas de reuniões e congressos discutindo o ser negro e o lameiro escravista que ainda hoje é tão peguento em nosso calcanhar. Sou o angu na colher e a martelada sapateira que te fizeram a infância, guias de tua temporada de seis décadas piscando Poesia. Sou a carícia eletrizante, a maciez e o gostar de ser gostada. A renda branca se separando do corpo, o rastro cintilante da lábia pela pele, o momento do rasgo suave, o vigor e o vapor mais íntimo.

Sou a sanha que te sabe nos saltos gastos e nas golas abertas do Harlem Renaissance, no timbre recitado de Langston Hughes e na prosa levitante de Zora Hurston. Sou trem da Leopoldina nos vagões do teu blues, os arreios da plantação e a corrente nos tornozelos, rompida em teus versos e danças. Sou tua coceira no peito, pra fruta estranha pendente das forquilhas da Ku Klux Klan (a que de lá saúda hoje um presidente recém-eleito por aqui...). Mas sou teu desatino, bem mais Chicago Renaissance. Sou a cadência da tua esperança e de tua cicatriz diante do subemprego alfinetando o vão da unha, sou a eletricidade e o espanto, a confusão e a sedução urbana, os estilhaços e a tanta cola no sonho migrante. Sou teu lirismo em pleno amor escorregadio do segregado Southside, do racismo moendo, engolindo e estourando a boca em Cordovil e Olaria. Sou tua leitura da linguagem incendiada e dos abismos de dentro. Sou você com Richard Wright na influência comuna da caneta preta que incomodava o Partidão lá e aqui. No black boy que decorava e questionava a reza. Nessa carruagem de pneu furado, nos choques e dilemas afiados d’O filho nativo. Na coragem, nas contradições e nos desconcertos da caneta. Nas estrofes e naqueles parágrafos ressoando rap, desenhando em riste os labirintos de um bebop bicudo, maracatuzando Malunguinho que abala a cidade, ligeiro com os cassetetes.

Sou um feliz agradecimento, Mestre. Sou os feixes e as mesclas de tuas pinceladas no cordão umbilical do pensamento periférico. Sou a trindade, este enigma que lambeu o destino em teu nome. A pareia com teu clã continuado, tua linhagem majestosa e maloqueira, a multidão pocando e retinindo berimbaus e ilus no funeral de tua filha pelas curvas do Embu. Sou a bença de abraçar Vítor, Zinho, Maria, Manoel... Karla e Caçapava ... nobreza que arrelia, pesquisa, ri trançando épocas, lava banheiros, cozinha, fogueta madrugadas e faz lacrimejar; família que mantém o Teatro de teu nome, lutando contra desabamentos, goteiras e fanáticos. Sou a sensibilidade acesa e acolhedora de Maria Margarida, tua companheira, linha de frente na Arteterapia do Museu do Inconsciente, na jardinagem delicada dos estudos e tratos aplicados com a regência de Nise da Silveira, elas de cá cuidando e engenhando a fonte da majestade nos símbolos e da sincronicidade enquanto trocavam cartas com Jung (história tão pouco contada...). Sou a Bíblia lépida, a que transpira no Cântico dos Cânticos, a que seria terrorista ou herege endemoniada para pastores do desespero e da ganância, na mão de Maria Margarida, presbiteriana que conhecia, prazerava, ensaiava e ensinava cada coreografia ancestral à tua trupe, numa época em que os tornozelos moídos e felizes da chamada cultura popular, e negra, eram necessidade e gosto de sobrevivência, de boniteza e de encontro aos solados enlameados. Distantes de serem fetiche no Leblon, vitrine anestesista em Moema ou anzol de edital para vampiros bem-criados na mesada.

Sou a leve pancada na porta pedindo licença, a promessa do retorno e sua presença sempre inédita. Sou o estalo seco da pneumonia, tua peleja pra respirar e o alento que permanece do teu último poema, quando pousado com teus músculos já tão combalidos, na clínica de Santa Tereza ainda explorava sutil a vastidão e o miudinho de Ser:
 
INTERROGAÇÃO
No dia em que eu deixar de ser eu
No dia em que eu perder a consciência
Do mundo que idealizei…
Neste dia…
Eu sorrirei sem saber do que sorrio.
 
Sou a pouca luz incidindo em teu rosto num retrato pintado por dona Raquel, quadro sumido e encontrado por ela anos depois, cultuado num peji por uma senhora que ainda o guarda e se fortalece quando limpa as mãos no pano de prato, ajeita o lenço na cachola e ora pro senhor numa favela em Itapecerica.

 

>> Allan da Rosa é escritor, historiador, angoleiro e arte-educador popular. Assina, entre outros, Reza de mãe