Memes dez.18 KarinaFreitas

 

No dia 8 de novembro de 2018, o presidente da República Michel Temer encontrou o futuro ocupante do cargo, Jair Messias Bolsonaro, para entregar-lhe uma espécie de cartilha com recomendações para o próximo governo. Esse ABC didático continha 245 páginas e abordava assuntos desde a reforma da previdência à importância do estreitamento dos laços entre o Brasil e os demais países fronteiriços da América do Sul, na esperança de se ajustar os pontos e garantir a manutenção de certas agendas durante o delicado período de transição. “Não há espaço para retroceder”, dizia Temer na manchete da notícia sobre o encontro.

A primeira reunião entre o emedebista e o capitão reformado do exército aconteceu no Planalto, em Brasília. Bolsonaro estabeleceu provisoriamente seu gabinete no Centro Cultural Banco do Brasil do Distrito Federal até o dia oficial de sua posse, marcada para o dia 1º de janeiro de 2019. O jornal Folha de S.Paulo, aproveitando o embalo, lançou um concurso junto aos seus eleitores intitulado “Que legenda você daria a essa foto?”. A imagem escolhida era a dos presidentes, atual e sucessor, apertando frouxamente as mãos. Jair Bolsonaro está à esquerda, aparentando estar posando para os fotógrafos e jornalistas presentes na cobertura do evento. Já Temer o olha fixamente com um sorriso enigmático muito distante do apelo romântico da Mona Lisa de Leonardo da Vinci. A regra do concurso era enviar o texto via WhatsApp com nome completo e cidade, e as respostas mais criativas apareceriam no site e nas redes sociais do jornal. Ah! Uma ressalva: “não vale xingar os envolvidos, nem terceiros”. A Folha também salientava que as “caras e bocas dos políticos podem nem render uma análise aprofundada”, mas servem pelo menos como chiste para a terceira edição da brincadeira legendada realizada pelo periódico.

No dia seguinte ao anúncio do concurso, depois de analisar umas centenas de frases bem-humoradas, segundo constaram, saiu o veredicto. A legenda era então um diálogo ficcional entre os dois no qual Bolsonaro dizia “tem que mudar isso daí” enquanto Temer replicava “tem que manter isso daí”. Se o resultado for mostrado no seu todo, extraindo a instituição que o fez e seu propósito de gincana, para um usuário ativo das redes sociais, Facebook, Instagram, Twitter e afins, ele dará ao sincretismo texto-imagem outro nome. Na verdade, acabaram criando um meme assim meio sem querer-querendo.

Os memes já dominam a narrativa dos tumultuados acontecimentos políticos do Brasil há alguns anos, graças ao rápido e amplo poder de viralizar um conteúdo em tempo recorde. No melhor estilo “faça você mesmo”, um meme e não requer muita habilidade com as artes computacionais. Basta uma imagem, uma legenda, certa dose de bom humor e voilà. Nas plataformas Google Play e Apple Store é possível adquirir um aplicativo para ajudar na confecção se o nível for paint brush para iniciantes. O importante é participar, dar um like, recomendar e, sobretudo, compartilhar.

A replicação desse mix de imagens, gifs e vídeos humorísticos junto com uma legenda é o produto de um jogo semiótico entre destinador e destinatário repleto de referências e intradiscursos. Eles operam da seguinte forma: primeiramente, os memes políticos são, na sua maioria, de natureza parodística, fazendo alusão intertextual com situações ou acontecimentos noticiados envolvendo fatos e figuras conhecidos. Segundo, o sentido é construído coletivamente, então envolve um repertório cultural que reforça uma afinidade entre o enunciador e o enunciatário. Terceiro, o meme não tem autoria proclamada, logo qualquer um que o produzir estará isento de culpa pelo conteúdo compartilhado.

A grande sacada desses enunciados imagéticos da web talvez seja a de parecer algo feito por qualquer um munido de um smartphone sem conhecimento de photoshop ou qualquer programa profissional de edição de imagem. Isso torna um meme uma obra em aberto a partir da qual modificações e acréscimos podem ser feitos a torto e a direito. Apela-se para a colaboração dos usuários para “remixá-lo” à sua guisa. Só é necessário manter algum traço ou pista do meme referenciado, seja presente no segmento visual, no verbal ou no discurso, tornando presumível a conexão entre os signos linguísticos e o fato parodiado. Na página do concurso da Folha, na parte dos comentários, internautas deram mais de 90 sugestões oficiosas em relação à possível legenda a figurar na foto. “Eu sou você amanhã”, “te vira, toma que o filho é teu”, “Ufa, me safei” ou “Conde Drácula e o Recruta Zero em ritmo de aventura”. Todas seriam ótimas criações a serem vistas em linhas do tempo por aí afora se virassem memes de fato.

A participação dos leitores, neste caso, ocorreu quando eles passaram a construir novas narrativas em cima da fotografia, atribuindo a ela uma nova possibilidade de sentido além da de oficializar o encontro entre os dois presidentes. Todos continuaram na mesma esfera semântica da frase ganhadora. E não foi à toa. Como diria Bakhtin, todo discurso é atravessado por um outro. José Luiz Fiorin complementa, na questão da enunciação, que talvez o único homem a produzir um enunciado sem interferência foi Adão. E olhe lá... Se os participantes aparentemente acertaram em cheio na proposta da gincana, houve um direcionamento dado previamente pelo recorte da reportagem, pela imagem, pelo contexto e pelo destinador. Nada é por acaso.

O nome meme vem do grego mímese, que designa o fato de imitar, copiar ou reproduzir a natureza da forma como ela foi apreendida, observada, não como ele é. A notícia do encontro dos dois políticos foi logo personalizada, despiu-se do seu caráter objetivo para se tornar mais relacionável com o grupo destinatário. Ao subjetivar um fato, o valor maior em jogo memético são os laços tecidos entre os usuários através da troca. É assim que um grupo se individualiza com suas referências e repertórios comuns. Ou melhor, acontece um reconhecimento ideológico com o outro, pois o meme necessita de uma ação conjunta a fim de repassar a informação adiante. Este tipo de narrativa talvez não exponha caráter de ninguém, até pelo anonimato de sua autoria, mas com certeza revela quem está do lado de quem nas trincheiras.

Já na sua expressão visual, memes apresentam uma repetição de padrões e modos, por isso são facilmente interpretados e copiados. Igual à brincadeira em que um indivíduo faz um gesto e um outro o imita acrescentando um gesto novo, e assim sucessivamente. Nesse jogo, o primeiro gesto será sempre lembrando na longa sequência formada no final. Desse modo, é possível identificar as relações intertextuais estabelecidas entre o texto-base e a suas apropriações parodísticas resultantes. Sem a devida referência, não se entende a piada. Nada pior que ter que explicar um meme para alguém. O joguinho do gesto para por aí, impossibilitando dar continuidade à sequência. Falando em linguagem meme, não se compartilha aquilo que não se compreende, cortando, assim, o seu processo de disseminação.

Os memes políticos, por sua vez, têm caráter persuasivo. Isso explica as brigas e desavenças causadas em grupos de família e de amigos no zap em todo Brasil. “Sicrano deixou o grupo” é a frase que resume bem a recepção de um meme quando não se comunga, por assim dizer, dos mesmos gostos. Ou seja, como vimos com exemplos bem próprios, não dá para mudar opinião alheia com um meme, por mais convincente ou engraçado que seja. Mas dá para entoar um coro entre os que já são pró um determinado candidato, por exemplo, o que ajuda na divulgação da propaganda política militante. Os grupos de circulação são as famosas “bolhas” dentro das quais não há discordância. Fora dela, não há salvação para o meme.

Para quem se debruça sobre os estudos meméticos, impossível não passar pelo campo da biologia antes de chegar ao meme de humor tal como o conhecemos hoje. O termo foi emprestado do geneticista inglês Richard Dawkins cuja alcunha foi lançada na sua obra O gene egoísta (1976). Segundo Michele Knobel, a respeito da descoberta de Dawkins, memes são boas ideias, um som, ou uma frase de efeito que são replicadas de indivíduo para indivíduo através do contágio. Neles, estão imbuídos costumes, valores e comportamentos que fazem esse gene cultural adquirir uma vida longa. Já no meme como gênero discursivo, ele realça um assunto ao qual se deseja dar um certo enfoque, chamando a atenção do público para ele, mantendo-o vivo por um pouco mais de tempo na memória.

Para Viktor Chagas, professor especialista em memes e política da Universidade Federal Fluminense, a função dos memes políticos é fazer incitar as massas à ação política. O texto é simples, muitas vezes com marcas da oralidade que simulam uma conversa íntima com o leitor. O discurso realça certos aspectos positivos e/ou negativos da imagem de uma figura pública vista pelos olhos de seu eleitorado. Estabelece-se também um contrato de veridicção entre quem compartilha e quem recebe (destinador e destinatário) o meme. Igual diria Aristóteles, mais vale uma mentira em que todos acreditam a uma verdade incrível que ninguém endossa. Não dá para atribuir ao presidente uma frase que não pertença ao seu repertório, ou então, que não seria crível. Ninguém compartilha uma falácia já previamente julgada como tal.

Na “paródia” da Folha, a legenda retoma uma frase muito conhecida de Bolsonaro durante sua campanha “tem que ver isso aí”, mas faz dela uma variação debochada, subvertendo um discurso “oficial”, rebaixando a figura do rei inatingível ao mundano. A estratégia é utlizar um intradiscurso no qual se misturam o do então candidato e a percepção perspicaz do autor do meme. O humor é a chave para fazer o discurso se espalhar com facilidade e ter maior adesão popular.

Ora, sabemos que essas narrativas são uma tentativa de paródia, maneira de traduzir a realidade através de construções coletivas que mobilizam um grande número de participantes em busca de uma identidade própria. E quanto ao seu autor? Esse permanece desaparecido ou com poucas notícias a respeito. Pode ser eu, você, alguém com o app MemeCreator instalado no celular ou uma empresa especializada nesse tipo de propaganda pela internet. Quem se importa? Sendo o fato a partir do qual se produz o meme sempre recente, prosaico e efêmero, ele é descartado assim que um novo acontecimento vier à tona. No entanto, o que se pode depreender do physique du rôle, do ator social por trás dos enunciados humorísticos, é que ele é persuasivo, político, manipulador, militante, subversivo, com um ótimo senso de humor e possui poder suficiente para levar o debate para além da brincadeira online.

Contudo, o concurso da Folha marcou quase todas as opções do que faz um meme de fato um meme. Faltou apenas colocar a legenda por cima da foto e distribuir nas redes. Isso não aconteceu, apesar de todos os demais elementos constitutivos, salvo o anonimato da autoria, estarem presentes. Foi quase. Bateu na trave, e foi para fora. Foi um meme na sua intenção. Um quase-meme.

Ferdinand Saussure é pai da ciência da linguagem. No seu manual Curso de linguística geral (1916) ele teoriza os signos, uma junção de um significante com um significado, que nos ajudam a definir as coisas que são dadas pelo mundo. Um conceito somado a uma imagem. Os signos são por natureza arbitrários, pensados e estabelecidos consensualmente pelos falantes de uma língua. Como diria um professor meu, “cachorro é sempre um cachorro só o próprio cachorro é que não sabe”. Para o linguista genebrino, uma coisa não pode ser seu oposto, quer dizer, um signo se diferencia por aquilo que ele não é e não pelas suas semelhanças. Gato nunca é lebre. Há um contraponto necessário a ser feito então. Se uma imagem engraçada com legenda não é meme, o que seria um meme afinal?

 

>> Gustavo Táriba é mestrando em Linguística (USP)