Durante quase todo o século XVI e o XVII a colonização portuguesa na América se manteve em uma faixa litorânea de terra que hoje equivale ao litoral do Nordeste do Brasil. E construiu nessas terras uma sociedade baseada na exploração das plantações de cana-de-açúcar e no trabalho escravo indígena e africano. Foi nela também que fundou núcleos urbanos que cresceram bem rápido, margeados por canaviais que iam pouco a pouco substituindo a floresta, e nos quais uma elite de descendência portuguesa se esforçava por transplantar para as terras açucareiras a cultura da nobreza ibérica, tanto seus hábitos cotidianos e regras éticas e estéticas, quanto, é claro, a rígida hierarquia social que marcava a metrópole.
Nesse cenário, Salvador e Olinda logo despontaram como os dois mais importantes núcleos urbanos, lar para elites que comandavam a produção açucareira e o governo local e influenciavam as chamadas “capitanias anexas”: as terras que se estendiam desde o sul da Bahia até o Ceará. Sempre pelo litoral. Mas nessa imensa região o dinamismo urbano não se restringia aqueles dois poderosos núcleos, e outras vilas efervesciam, como Goiânia, Tracunhaém e Porto Calvo, do lado pernambucano, e Cachoeira e Camamu, no Recôncavo Baiano. Eram cidades e vilas com grande diversidade humana, habitadas por africanos, cristãos-novos, portugueses, mulatos e mamelucos que cotidianamente interagiam, produzindo um universo social e cultural complexo.
Para além do domínio que aquelas elites exerciam desde seus engenhos e suas residências urbanas, era a Igreja Católica que pairava hegemônica sobre o cotidiano do mundo do açúcar, controlando desde o nascimento à morte dos indivíduos, através de uma cultura cerimonial e festiva. Nas ruas de Olinda, Salvador e suas vilas vizinhas gente livre e escrava celebrava, separada em seus grupos sociais e étnicos específicos, festas para santos, procissões fúnebres e, é claro, todo o calendário de datas comemorativas estabelecido pela Igreja e pela Monarquia. E apesar de que nesse palco barroco os escravos, forros, pardos e cristãos-novos procuravam reler as imposições culturais eclesiásticas e régias de diferentes maneiras, construindo toda uma cultura mestiça que não deixava também de influenciar os altos estratos sociais, era mesmo a elite açucareira quem ditava as regras da cultura oficial. De seus assentos nas mais importantes irmandades e nas câmaras municipais os senhores de engenho se espelhavam na nobreza ibérica para construir, através da ostentação de luxo e ócio em grandes festas públicas, uma cultura fidalga que, acreditavam, estava civilizando as terras americanas. Uma civilização, no entanto, não apenas etnocêntrica e escravista, mas extremamente hierárquica e ostentatória.
E, nem mesmo a ocupação da região, entre 1630 e 1654, pela Companhia de Comércio das Índias Ocidentais – a holandesa WIC – destruiu essa concepção. Pelo contrário, as elites açucareiras emergiram do período holandês fortalecidas cultural e politicamente. E, assim fortalecidas, começaram a se expandir para fora do litoral, adentrando os interiores continentais e criando, na esteira de seus currais de gado e rotas de comércio, uma nova sociedade colonial baseada em uma ideia, a de Sertão. Na verdade, muito mais do que conquistar o Sertão, o mundo açucareiro o inventou a partir de uma imagem que já existia antes mesmo dos colonos começarem a criar gado longe da Mata Atlântica: a ideia de grandes vazios incultos. A conquista, propriamente dita, o conflito com os grupos indígenas continentais e a implantação da pecuária, viria depois.
Assim, se atualmente o Sertão é um espaço político, físico e social bem delimitado, geograficamente definido a partir do conceito de região, esse é um fenômeno recente, originário do cientificismo do século 19. De fato, os espaços também têm história e a do Sertão começou com uma ideia vaga na cabeça das gentes do açúcar e foi se transformando, à medida que as pessoas acreditavam verem aquela imagem nos espaços continentais, em uma série de intensos conflitos com os grupos indígenas do semiárido, iniciados na segunda metade do século 17.
A palavra em si é mais antiga que a colonização: deriva da portuguesa ‘deSertão’, que, no século 16, significava basicamente um lugar onde não havia súditos do rei de Portugal. E cedo o Sertão colonial passou a representar essa imagem da ausência de súditos, ou seja, de colonos. E nesse sentido não dizia respeito a um deserto físico, e nem mesmo a um espaço vazio: os habitantes nativos, por exemplo, eram reconhecidos como moradores dos sertões continentais, somente não eram reconhecidos como vassalos do rei, ou mesmo como gente útil à colonização. Para o imaginário açucareiro, todos os lugares às margens da colonização, distantes daquelas formas de exploração econômica, em geral escravistas, que caracterizavam o que era considerado civilizado, eram sertões e pouco importavam as características climáticas, de relevo ou de vegetação. Além disso, com a expansão gradativa da conquista o Sertão era um espaço sempre em mutação.
Até à consolidação das Minas Gerais, no século 18, o espaço civilizado colonial por excelência foi a área açucareira, para quem Sertão era todo lugar desconhecido, indefinido, todo espaço considerado selvagem e perigoso, mas também cheio de riquezas prometidas. Sertões eram as matas marginais que limitavam as áreas de engenhos e as serras onde os índios se refugiavam, eram os planaltos semiáridos e as caatingas distantes. E todos que vivessem nesses espaços eram tidos como selvagens por excelência: os habitantes dos sertões eram, em si, pequenas representações individuais da imagem açucareira para os interiores continentais. Eram os incivilizados, os bárbaros, a gente que, por estar fora da área colonizada e por se recusar a se submeter aos projetos coloniais, era vista como perigosa e inculta. E nesse discurso os colonos encaixavam tantos os indígenas nativos dos interiores continentais, quanto os quilombolas que para lá haviam fugido. Eram todos, igualmente, inimigos da colonização.
Essa representação do Sertão e de seus habitantes estava por todo lugar, desde as autoridades coloniais e os religiosos que serviam de missionários nos interiores e consideravam toda a região como desolada e assustadora, até os escritores e artistas. E um bom exemplo da propagação de tal imagem é a gravura do holandês Zacharias Wagener chamada A Dança dos Tapuias. Wagener, que servira por um tempo como pequeno funcionário do governo de Nassau no Recife, publicou sua obra, o Thierbuch, ao voltar à Europa, direcionada para um público plebeu ávido por notícias dos mundos ‘exóticos’ no além-mar. E entre as ilustrações publicadas estava sua versão da ‘dança dos tapuias’, tema usado também por Eckhout. Nela vemos o que seria, para o autor, uma cena típica do cotidiano dos tarairius, um dos mais importantes grupos indígenas do interior do Rio Grande do Norte. Mas a cena não retrata um lugar realmente visto e visitado pelo autor, e sim um Sertão imaginado que ele montou com base nas informações que recolheu enquanto convivia com a gente das vilas do açúcar.
E assim sua ilustração não retrata o que era o Sertão, mas o que se acreditava, na zona do açúcar, que ele fosse. Nela vemos uma área de descampado cercada por pequenos morros cobertos esparsamente por árvores simétricas que lembram muito o pinheiro europeu. Não se vê em nenhum lugar habitações ou plantações, ou outros sinais quaisquer de construções humanas. O cenário é uma vastidão aberta onde as figuras humanas são quase animalescas e no qual dois grupos podem ser percebidos: um grupo de mulheres em primeiro plano, concentradas no que parece uma cerimônia de canto, e um de guerreiros armados, no fundo, em pleno ataque à cena principal.
Mas as armas dos guerreiros são os únicos objetos na cena. Elas, e a pequena fogueira, são os únicos indicativos de que a gente retratada teria alguma cultura que fosse. De resto, os personagens quase se assimilam ao cenário natural: uma mulher bebe água em posição animalesca enquanto o que parece ser um cadáver espera para ser cozido perto da fogueira.
A vegetação retratada, estranha ao semiárido, é a primeira pista de que o artista nunca esteve no Sertão dos tarairius. O cadáver para o pretenso banquete é a segunda: os europeus associavam muito facilmente o canibalismo a qualquer grupo indígena, sem distinção, e sem entender muito bem do que se tratava. Além disso, as mulheres índias sem quaisquer adornos, e a inexistência de utensílios indicativos da cultura material, como vasilhames ou choças, são outros bons exemplos de que o autor pouco ou nada sabia sobre o tema e os personagens pintados. A dança dos tapuias de Wagener ilustra muito melhor a crença do pintor e das gentes das vilas açucareiras sobre o que era o Sertão e seus habitantes do que qualquer conhecimento concreto sobre essa região. O que ela retrata é uma imagem de desolação, barbárie e ausência de civilidade.
A zona do açúcar interpretava o Sertão como o espaço do barbarismo porque pensava em si mesma como o espaço da civilização. No final do século 18, quando a sociedade sertaneja já era uma realidade, um dicionário da língua portuguesa, escrito pelo erudito Antonio de Moraes Silva, ainda definiria o Sertão como o interior, o coração das terras, oposto ao marítimo, às praias e à costa. Ainda o “mato longe da costa.” Ou seja, mesmo depois de terminados os conflitos e o processo de conquista do interior continental, e mesmo depois de fundada na região uma nova sociedade colonial, aquela primeira ideia de Sertão como uma área bravia, selvagem, agreste, não se extinguiu de todo. Mesmo depois da independência, o Sertão continuaria sendo, para o litoral, o lugar do inóspito ou do exótico; o interior bravio porque sem lei.
Kalina Vanderlei Silva é doutora em História, professora e autora de Nas solidões vastas e assustadoras: A conquista do Sertão de Pernambuco pelas vilas açucareiras nos séculos XVII e XVIII (CEPE, 2010).
O livro:
Nas solidões vastas e assustadoras
Editora Cepe
Páginas 269
Preço R$ 30