Resista ao imaginário de uma bruxa horrenda com verruga no nariz, à gargalhada histérica da bruxa má ou ao figurino sexy de uma feiticeira gótica falando de poções e banimentos mágicos no Instagram. O assassinato em massa de mulheres na decadência da Idade Média é de uma violência simbólica tão terrível, que nos acompanha até hoje em nosso imaginário sobre o feminino, alienando-nos da verdadeira identidade do que ficou popularmente conhecido como feitiçaria.
A feiticeira, ou bruxa, como a cultura contemporânea difundiu pelo cinema e literatura, não é sexy, malévola ou diabólica; é uma mulher pobre, com a roupa cheia de sangue. Sangue da menstruação que transparece. Sangue dos animais abatidos em casa para subsistência da família. Sangue dos partos que acompanhou. Sangue dos filhos que teve. E sangue dos abortos induzidos no século XV, período de um dos maiores registros de morte em massa – ocasionada pela peste bubônica e outras doenças contagiosas consequentes do aumento populacional. E sangue das feridas tratadas de doentes, leprosos, no espaço em que a mulher construiu e definiu o seu poder e foi arrancada dele: a casa.
A violência simbólica é arbitrária por não se tratar de uma imposição baseada numa lógica racional que empurrou a mulher para o espaço doméstico em virtude de uma característica biológica, como a nós foi ensinado. Mas por um controle do corpo com o fim instrumental de tornar o feminino como função procriadora por uma razão óbvia, mas dificilmente acessada: a econômica. E não sou eu, mulher pernambucana, que estou falando. Nem a antropóloga e feminista Rose Marie Muraro, que assina o prefácio da edição brasileira (Editora Record) do best-seller Malleus maleficarum – livro cuja circulação massiva foi responsável por demonizar a mulher no seu domínio doméstico. Engels, teórico que analisou a origem e desdobramento da propriedade privada, é figura seminal para se entender o poder extraído da mulher ao longo do processo civilizatório.
Depois da Bíblia, não é exagero dizer que Malleus maleficarum foi responsável por tornar o feminino “demoníaco”, a fim de confirmar e instigar a passividade da mulher no espaço público, doméstico e social. Hoje, o trabalho é fundamental para se entender tanto o corpo da mulher quanto o direito legítimo dela sobre o próprio corpo. Paralelo a um entusiasmo crescente em práticas de magias – isto é, relação com o mundo mágico, com o uso de ervas, calendário lunar, observação dos ciclos cósmicos –,vemo-nos diante de atividades e profissões que devem ser entendidas dentro de um contexto de repressão e submissão do feminino ao longo dos séculos. Entre elas, a cura pelo que consumimos naturalmente e a doula, responsável por preparar a mulher para o parto e atividade relegada à superstição pela imposição da dominação masculina em instituições médicas.
No Brasil, o livro foi traduzido como O martelo das feiticeiras e no mundo ajudou a torturar e matar milhares de mulheres com acusações que aparentemente pareciam de um delírio persecutório coletivo. A obra catalogou práticas, atividades, marcas no corpo e rituais com uma argumentação que podemos chamar hoje de “cortina de fumaça” – quando se desvia o olhar das massas do poder central exercido pelas classes dominantes ao destacar fenômenos sociais passíveis de se tornarem bizarros, mágicos e encantadores. Objetivo? Alienar. Uma dessas cortinas de fumaça foram os chamados sabás, descritos no Malleus como reuniões orgiásticas nas quais mulheres dançavam e cantavam nuas copulando com os demônios, tendo filhos com eles que viriam, pela visão coletiva paranoica, dominar o mundo e destituir o universo da única religião possível para a salvação do corpo: o cristianismo.
No período de lançamento do livro, várias religiões coexistiam paralelas à hegemonia da doutrina cristã. Os cultos que se realizavam fora de um núcleo central (igrejas, mesquitas e sinagogas) não seguiam os calendários juliano ou gregoriano, responsáveis por centralizar o tempo humano (essa abstração) nos meses de janeiro a dezembro com festas, ritos, sanções e regras atribuídos a cada celebração religiosa. O chamado paganismo, por outro lado, era a adoração dos ciclos da natureza, das fases da lua e da relação do humano com o céu acima das leis mundanas. Os rituais pagãos dos quais faziam parte as chamadas “feiticeiras” seguiam o direito natural à festa e à comemoração aos ciclos de plantio e colheita, influenciados pelas estações. O solstício de verão e de inverno são algumas delas.
Como toda festa, há desordem. As pessoas se deslocavam de seus núcleos para as regiões onde os planetas e outros astros, principalmente a Lua, pudessem ser melhor avistados; onde pudessem erguer seus totens – às vezes, bem distantes da aldeia. A ideia de um local, de um templo específico onde os fiéis possam se ligar ao sagrado vem do judaísmo, com a construção de um templo pelo rei Davi. O objetivo era simples: não dispersar, mas vigiar e punir.
Os templos teriam seus sacerdotes responsáveis por organizar e inspecionar socialmente os cultos e seus fiéis. Mas, enfim, os sabás existiram ou não? Sim. Mas eram festas realizadas por homens e mulheres de religiões politeístas.
Os sabás guardavam um espaço especial para o corpo livre, em danças e cantos hipnóticos. O filósofo da linguagem, Bahktin, inclusive cita as danças e cantos populares do medieval como um recorte da diferença de classes, já que o cristianismo era mais acessível aos alfabetizados, portanto aos mais ricos. Os rituais pagãos destacavam as danças em que o ventre era movimentado; e o ventre, na busca cristã pela evangelização do corpo, era pra ser contido, depositário do sêmen masculino, ideal apenas para a procriação.
A feiticeira descrita pelo Malleus é, como disse acima, a mulher pobre. As ricas estavam sendo vigiadas por aias, escravas e damas de companhia, quando não estavam trancafiadas ou com cintos de castidade, impossibilitando seu próprio movimento. Durante todo o texto, é possível identificar que o conteúdo induz à instrumentalização do corpo para fins de procriação. Mas, antes do que entendemos por patriarcado, a mulher tinha uma importância fundamental nas sociedades primitivas e não existia um nivelamento de gênero definidor do relacionamento coletivo. O corpo feminino era considerado sagrado pelo sangramento menstrual, pelo parto e descendência. A mulher era especialmente respeitada e de alguma forma temida, por ser entendida como um mistério.
No chamado sistema matriarcal, a descendência só contava por linha feminina. Os clãs herdavam bens e territórios de seus parentes por linhagem materna. Em algum momento, o pensamento sagrado que associa a fertilidade do feminino aos astros e à natureza é substituído pela crença da dominação masculina, amplamente apoiada nos primeiros escritos que associam a mulher à queda do homem pela sua lascívia e desejo.
O espaço doméstico, portanto, se transforma no principal domínio do feminino nesse processo e muito do que o Malleus maleficarum coloca revela a ambiguidade entre o privado e o público, quando as mulheres, detentoras de conhecimentos ancestrais sobre a comida e a bebida da casa, passam a ser consideradas uma ameaça à medicina ensinada nas universidades. Outro “perigo” é o que hoje chamamos de sororidade, a integração e vinculação das mulheres umas às outras.
A mulher passa a ser vigiada para se evitar a possibilidade de um filho fora do casamento, o que comprometeria à herança e a posse da terra. Quanto mais filho tivesse, maior era a força de trabalho e assim se origina um corpo condenado à escravidão sexual e servidão, impondo uma degradação social no decorrer dos séculos, dentre os quais o Malleus é uma das mais humilhantes.
E por que tudo isso?, pergunta Rose Marie Muraro. “Desde a mais remota antiguidade, as mulheres eram as curadoras populares, as parteiras, enfim, detinham saber próprio, que lhes era transmitido de geração em geração. Em muitas tribos primitivas eram elas as xamãs. Na Idade Média, seu saber se intensifica e aprofunda. As mulheres camponesas pobres não tinham como cuidar da saúde, a não ser com outras mulheres, tão camponesas e tão pobres quanto elas. Elas (as curadoras) eram as cultivadoras ancestrais das ervas que devolviam a saúde, e eram também as melhores anatomistas do seu tempo. Eram as parteiras que viajavam de casa em casa, de aldeia em aldeia”.
Malleus maleficarum foi lançado em 1487, na Alemanha, pelos monges Kraemer e Sprenger. Ganhou notoriedade por diversas razões. Pelo conteúdo do livro não é difícil entender o fascínio que o fez logo se espalhar pela Europa, sobretudo em regiões de maior disseminação do cristianismo, Portugal, Espanha, Escócia, Irlanda e Alemanha.
Os monges reuniram relatos e práticas assombrosas, além de hipotéticas confissões das supostas feiticeiras, geralmente induzidas por tortura. Às mulheres que estavam nesse campo doméstico eram atribuídas mortes de animais, raptos de crianças, lares desfeitos e toda sorte de sedução, provocada por pactos com o diabo e o uso de poções.
O período é singular na história do pensamento sobre o mágico e o sagrado. A Europa vivia um boom populacional dentro de uma realidade cotidiana pautada pela proximidade das cidades com zonas rurais, florestas, campos, locais a ideia de universo ainda era explicada pelo sobrenatural. A explicação para os desastres, pestes, doenças e males sociais eram atribuídas à ira de Deus ou ao castigo dos deuses. Seja qual fosse a crença, a magia ocupava um papel importante nas relações sociais, delineando o medo e a ideia fixa acerca de um inimigo (fosse o lobo, fosse a bruxa).
O primeiro capítulo do livro descreve como os demônios se apoderam do corpo das mulheres e como as mulheres se unem aos demônios para conquistar os homens, em orgias realizadas em locais afastados da aldeia. Resista à ideia de perceber as chamadas feiticeiras com roupas pretas e chapéus pontiagudos. Na representação gráfica e plástica sobre as chamadas bruxas, só vamos encontrar referência aos chapéus no século XIX, quando um pensamento esotérico demarca confrarias e agrupamentos clandestinos que praticavam o ocultismo. O chapéu, como pêndulo e outros objetos, passam a significar o pertencimento dos membros desses grupos (não muito diferente da saga Harry Potter). Alguns autores referem-se à adaptação pelas camadas populares do chapéu henning, em formato de cone com um véu na ponta (bem- representado na princesa de contos de fada) Mas, na verdade não existia uma indumentária específica porque não existia uma congregação oficial.
Como tem sido falado desde o início do texto, a feitiçaria é apresentada primeiro como a possibilidade das mulheres realizarem encantamentos para a sedução, mas ao longo do livro tudo que encontramos é referência ao modo de agir na vida doméstica e a relação da casa como o local do poder feminino. O objetivo do Malleus maleficarum é, de fato, tornar qualquer mulher suspeita de encantamento, semeando a dúvida, incitando a perseguição e delegando à mulher um corpo passivo. Escrito no século XV, é assustadoramente contemporâneo.