Escritores voltam a questionar o papel indígena na literatura brasileira

Escrevo este parágrafo no primeiro dia da Bie-nal internacional do livro de Pernambuco, que já terá se encerrado quando o leitor estiver com este exemplar em mãos. Estou sentado em um dos banquinhos do stand da Prefeitura do Recife. Perto de mim, um professor usando cocar, colar de sementes e tocando um instrumento musical tenta contar uma história da mitologia indígena a crianças. Não consigo entender muito bem o que ele conta, pois perto dali acontece uma batucada afro-brasileira; além disso, o stand vizinho toca, bem alto e pela quarta vez consecutiva, um CD do meu conterrâneo Jessier Quirino.

Gostaria de compartilhar com o leitor do Per-nambuco dois exemplos de como nos relaciona-mos, ainda hoje, com a cultura indígena. O primeiro é o depoimento de uma amiga. Quando estudava medicina em Brasília, atendia muitos pacientes índios. “Não gosto de índios”, ela me confessou certa feita, “estão todos bêbados por aí, não se cuidam direito e sempre querem obter vantagem”. O segundo exemplo é uma lembrança da infância. Quando passei férias em São Luis do Maranhão, pedi aos meus pais que comprassem arco, flecha e um cocar, vendidos em um centro de artesanato que visitamos. Semanas depois, já em casa, acordei todo mundo com um pesadelo e um mal-estar que me impediam de dormir. A família toda jogou a culpa naqueles objetos pagãos, que foram, por isso, quebrados e queimados.

Estes dois exemplos nos levam à conclusão de que o preconceito ainda associa a cultura indígena a um elemento diabólico e a figura do índio à de um pícaro preguiçoso, cujos hábitos são poucos recomendáveis. A pergunta que coloco aos leitores do Pernambuco, sendo este um texto de crítica literária, é a seguinte: de que maneira a literatu-ra contemporânea brasileira está lidando com a cultura indígena? A pergunta é relevante, porque livros publicados nos últimos anos, inclusive com sucesso de crítica, público e premiações literárias, como é o caso de Nove noites, de Bernardo Carvalho, ou Galiléia, de Ronaldo Correia de Brito, recolocaram a cultura indígena como importante elemento das histórias que contam. É o caso, também, de dois lançamentos recentes: Yuxin, novo romance de Ana Miranda, e Meu destino é ser onça, de Alberto Mussa.

Associar o índio ao capeta não é novidade e po-demos encontrar esta relação nos primeiros esboços da nossa literatura. Os dois principais objetivos da literatura escrita no Brasil, no século XVI, foram a descrição da terra recém-descoberta e a dou-trinação das almas. Segundo Silviano Santiago, a visão inicial do território brasileiro como o paraíso na terra começou a ser substituída pela do inferno esverdeado. Deste modo, os jesuítas, em sua cate-quese, passaram a associar os índios e sua cultura ao demônio. É o que acontece, por exemplo, no Auto de São Lourenço, do Padre Anchieta: “Sou Guai-xará embriagado/(...) Sou demônio matador”. É curioso que em um dos mais recentes livros de Milton Hatoum, Órfãos do Eldorado (Cia das Letras, 2008), tenhamos uma aproximação a esta ideia. Acompanhamos a trajetória de Arminto Cordovil, personagem típico de uma das histórias que a nossa ficção mais gosta de contar: a decadência das gran-des famílias burguesas diante dos diferentes ciclos de capitalismo da história brasileira. Acompanha-mos a progressiva queda de Arminto em direção à loucura e à miséria, processo este guiado pelo seu amor doido por Dinaura, mulher de sangue índio à qual é associada uma atmosfera mágica e de diabólicas ambiguidades. Repete-se, portanto, a representação clichê da “mulher-súcubo que enlouquece os homens”, mito que merecia uma elaboração melhor do escritor amazonense.

No romantismo, encontramos o índio revalo-rizado. Nos romances de Alencar, por exemplo, personagens como Iracema ou Peri encarnam o que pode haver de mais nobre e puro, em histórias que aproximam o Brasil-colônia dos valores feudais europeus, conforme apontam autores como Alfredo Bosi e Walnice Nogueira Galvão. Em 2004, o roman-ce A sombra dos homens (Devir Livraria), do paulista Roberto de Sousa Causo, trouxe a feudalização de volta. Inscrevendo seu livro na tradição da ficção popular de fantasia, Causo tentou escrever uma espécie de Senhor dos anéis “brasileiro”. No lugar de Aragorn, temos Tajarê, um pós-Peri que sintetiza as forças primitivas da terra, a nobreza de valores e o auge do vigor físico. Ambientado numa floresta brasileira mítica, A sombra dos homens mistura a mi-tologia indígena com elementos da cultura nórdica. A história começa quando esta terra mágica é inva-dida por vikings, alegorias de um suposto caráter diabólico do “estrangeiro”. O plano deles consiste na libertação do maligno deus Loki, adormecido na terra amazônica. Nos seus confrontos com os brancos para defender sua terra do mal, Tajarê acaba se apaixonando pela sacerdotisa viking Sjala e juntos têm um filho, considerado “a união das forças mágicas da terra com os poderes do destino de Loki”. Ou seja: os lugares-comuns românticos da união das raças, da pureza da paisagem brasi-leira e da virtude moral intrínseca dos indígenas são repetidos em prol desta tentativa de encontrar um ethos brasileiro genuíno, que justificaria a im-plantação da ficção de fantasia em nossas letras, quando o mais importante consiste, na verdade, em mudar as nossas ferramentas de interpretação do real: parar com as leituras dicotômicas e inter-romper o processo de diabolização do outro. Seja este branco ou castanho.

As melhores aproximações entre cultura indígena e literatura contemporânea resgatam uma virtude fundamental de todos os bons textos literários: proporcionar uma vivência, através da linguagem, das diferenças, ensinando o nosso imaginário e nossa sensibilidade a reconstruir as pontes degradadas pela violência da história. Às vezes, esta alteridade é levada às últimas consequências, como no já citado Yuxin, cujo bom resultado final é prejudicado não pela ideologia, mas sim porque o projeto de reconstituir a subjetividade de uma jovem índia, mediante a musicalidade e a invenção de uma sintaxe própria, redundaram num maneirismo.

Quem sabe, Ana Miranda quisesse mostrar que fez a “lição de casa”, no sentido de que precisa-va aproveitar todos os dados levantados por uma pesquisa rigorosa, realizada para elaborar o livro: a informação falou mais alto e calou o prazer da leitura. Não é o que acontece na construção do personagem Ismael, de Galiléia, romance no qual ficam bem evidentes os deslocamentos produzi-dos pela tensão entre a cultura indígena, da qual ele descende, e a modernidade. A partir destes deslocamentos, podemos viver junto com Ismael a condição social e familiar de bárbaro, que lhe é imputada pelos outros personagens do romance, sem que caiamos no panfletário, pois Ismael é apresentado sem idealizações e com as devidas contradições humanas.

A abertura à dimensão humana e a imersão na complexidade cultural indígena, tendências bem resolvidas nos exemplos anteriores, são comple-mentadas por Meu destino é ser onça. Seu autor, o escritor carioca Alberto Mussa, reconstrói em forma de verso um mito tupinambá sobre o canibalismo numa edição bem pesquisada, que traz inclusive trechos das fontes consultadas. No início do livro, Mussa afirma que “há 15 mil anos somos brasileiros”: são as histórias e metáforas que trazem nossos antepas-sados de volta e nos surpreendem, pois descobrimos que eles vivem no nosso próprio rosto e carne. Suas vozes continuam a cantar. E tentam sobreviver no meio dos ruídos brancos da indiferença.