Depois de montar Grande sertão: veredas nos palcos, a diretora Bia Lessa agora explora outro clássico da literatura brasileira: Macunaíma, de Mário de Andrade. A peça – um musical – estreia hoje (28) no Centro Cultural Banco do Brasil de Belo Horizonte (MG). O texto foi adaptado pela escritora Veronica Stigger. O artigo abaixo, escrito pelo crítico Silviano Santiago, pertence ao catálogo do Macunaíma de Bia Lessa.
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Inspirada pela leitura que Gilda de Mello e Souza faz de Macunaíma, Bia Lessa toma ao pé da letra o ensinamento dado pelo seu autor, Mário de Andrade. Macunaíma não é um romance, no sentido tradicional do termo. É uma rapsódia. O dicionário Houaiss ajuda: “rapsódia é peça musical de forma livre que utiliza geralmente melodias, processos de composição improvisada e efeitos instrumentais de determinadas músicas nacionais ou regionais”.
Forma livre. Composição improvisada. Efeitos de músicas nacionais e regionais.
Aguardem, portanto, uma encenação de Macunaíma em que fala e som se imbricam na língua nacional que estiver ao alcance da boca do personagem, ao mesmo tempo que os corpos humanos – em cena aberta − se tornam gregários e tão sensualmente íntimos quanto dançarinos nietzschianos.
Macunaíma − a peça − é mito e é rito. O mito indígena, coletado pelo etnólogo alemão Koch-Krünberg, e o drama órfico, encenado por Bia Lessa e o grupo Barca dos Corações Partidos.
A longa jornada da rapsódia segue o paradigma narrativo da demanda do Santo Graal, transformado em busca da muiraquitã, em mãos do gigante paulista Venceslau Pietro Pietra. Mas a trama é escrita pelo bibliotecário da torre de Babel. Mário, literato e musicólogo, tudo leu, tudo escutou. Tudo copia. Tudo aprende e tudo ilustra com o bom humor e a risada.
Fundamento da obra que se improvisa por tomar empréstimos de mil e uma fontes, a liberdade é a maior garantia da naturalidade dos atores dançarinos. Estão no palco como estariam num salão de baile, num bloco de carnaval, numa alcova. Deixam seus corpos atuarem livres das coações impostas pela civilização ocidental.
A dança, escreve Carlos Drummond, não é movimento. É a consagração num momento da humana graça natural.
Ao lado do romance machadiano e da epopeia de Guimarães Rosa, Macunaíma propicia um conhecimento da nação e da nação no mundo que não pode ser apreendido pelo conceito enciclopédico de saber. O saber brasileiro não é apenas o derivado das bibliotecas europeias.
Busque-se uma palavra que recubra esse saber. Mário a encontra com a ajuda da amiga Tarsila do Amaral. É a sabença, talvez corruptela caipira de sapiência. Sabença não é só saber, diz ele, é saber saber. Macunaíma é uma rapsódia escrita por um intelectual que sabe saber. Sabe saber a cultura brasileira pré-cabraliana, colonial e pós-colonial, subtraída da cultura universal e a ela somada.
Se ouvido e repetido de cor, sem a liberdade de compor e recompor, Macunaíma é fala de papagaio. Purutaco tataco, a mulher do macaco, ela pita, ela fuma, ela toma tabaco...