O que pode a literatura para dar conta de acontecimentos históricos traumáticos? Segundo o filósofo Jacques Rancière, o real precisa ser ficcionalizado para ser pensado, de modo que, a despeito do enorme trabalho realizado por historiadores, só a literatura é capaz de recriar o ambiente de terror vivido por personagens afetados pela arbitrariedade, pela tortura, pela humilhação. Através da imaginação e da liberdade composicional, os romancistas narram não aquilo que realmente aconteceu, o que é impossível, como já apontava Walter Benjamin no seu seminal texto sobre os conceitos da História, mas algo que possa evocar o vivido. A literatura, em sua capacidade de captar o singular da natureza humana, representa o único meio de transmitir a experiência dos outros e provocar a identificação do leitor, suscitando a emoção e a compreensão ao mesmo tempo. Para o pesquisador Antoine Compagnon, a literatura desconcerta e incomoda mais que os discursos filosóficos porque ela percorre regiões da experiência que os outros discursos negligenciam. Em suma, a literatura pode produzir a figuração do Outro, do diferente, daquele que não podemos conhecer se não sairmos de dentro de nós mesmos. Através da literatura vislumbramos o Outro que nos habita, porque a identidade só se perfaz no encontro com a alteridade, inclusive com nossa própria alteridade. Ao escreverem sobre a ditadura, autoras e autores dão testemunho, permitindo, assim, que outras gerações compreendam as consequências do cerceamento das liberdades democráticas. Na interação que se produz no ato de leitura, o leitor torna-se também testemunha porque aceita acolher narrativas insuportáveis (como as da tortura), formando um elo na cadeia memorial.
A ficção não é sinônimo de fantasia e de imaginação: trata-se, antes, de uma estratégia ordenadora da linguagem a fim de reinventar os fatos numa narrativa legível, compreensível, que promove a empatia dos leitores. B. Kucinski, autor de K., relato de uma busca, que trata do desaparecimento de sua irmã Ana Rosa Kucinski da Silva e de seu marido, Wilson da Silva, ambos militantes da ALN (Ação Libertadora Nacional), escreve: “Tudo nesse livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”. O casal foi sequestrado pelo delegado Sérgio Fleury em 22 de abril de 1974 e levado para a “Casa da Morte” em Petrópolis (RJ), onde foi torturado e executado. Durante anos, o governo não admitiu nem a prisão nem a morte deles; o reconhecimento oficial só se deu após a promulgação da Lei 9140/1995, que considerou como mortos os desaparecidos em razão de participação em atividades políticas no período de 1961 a 1979. Só então as famílias receberam o atestado de óbito. O ex-delegado Cláudio Guerra, em depoimento aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros para o livro Memórias de uma guerra suja, disse que transportou os corpos dos dois para a Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes (RJ), onde foram incinerados. A mulher apresentava sinais de violência sexual.
Dentre tantas obras que tematizaram a última ditadura brasileira (1964-1985), a escolha desse livro se justifica não só pela sua qualidade estética mas também porque, ao dar voz a diferentes narradores, ele recria, de maneira fragmentária e lacunar, a tensão que reinava no país quando pessoas eram presas clandestinamente, torturadas, assassinadas e desaparecidas. O fio narrativo que dá continuidade e sentido ao romance é assegurado por K, o pai em busca da filha, porém outras vozes ecoam e desvelam os meandros do funcionamento do sistema repressivo: a versão dos torturadores, seus agentes, empregadas e amantes, o relato do militante torturado que delata e se torna um “cachorro”, as cartas enviadas pelos dois militantes, Ana Rosa e Wilson, que exprimem seus conflitos existenciais e políticos quando percebem que estão cercados, sem rota de fuga. Apesar de seu nome ser pouco citado, a figura do delegado do DOPS-SP, Sérgio Fleury, ligado ao Esquadrão da Morte, está presente em vários fragmentos: ora é sua amante, ora a faxineira da Casa da Morte, ora seus agentes. Em um dos capítulos é sua própria voz que se faz ouvir: esbraveja contra aqueles pais que, tendo acesso a organizações internacionais, não param de procurar notícias dos filhos. Além de K., Fleury menciona a estilista Zuzu Angel, assassinada em 1976, num falso acidente de trânsito. Ele exerce tortura psicológica contra K., enviando informações desencontradas, assim como fez com a família do deputado Rubens Paiva. No momento da abertura política do governo Geisel, Fleury recebeu pressão até dos Estados Unidos, durante a presidência de Jimmy Carter (1977-1981). Eles exigiam explicações sobre os desaparecidos, porém não havia nada palatável, todos estavam mortos, enterrados em cemitérios clandestinos, incinerados ou jogados no mar ou em rios.
Ao se deparar com um personagem chamado K., o leitor é levado a evocar o clima tenso e absurdo do romance O processo, de Kafka, em que o protagonista não entende acusações indecifráveis, e se sente culpado. Busca, sem sucesso, a ajuda de vários personagens. De modo semelhante, aqui reina a perplexidade do pai, sufocado por fatos que estão além de sua compreensão. Mas, à medida que o tempo passa, ele “não é mais ele, o escritor, o poeta, o professor de iídiche, não é mais um indivíduo, virou um símbolo, o ícone do pai de uma desaparecida política”. No entanto, alguns anos mais tarde, ele já não será mais ícone, será “o tronco inútil de uma árvore seca”, “vencido pela exaustão e pela indiferença”. K visita presos políticos que conheceram sua filha, leva para eles cigarros e barras de chocolate; nesse local, 14 meses depois do desaparecimento da filha, é sugerida sua morte.
Escrito sob o signo da metonímia, o livro em fragmentos remete a vestígios de um dilaceramento: a cachorra do casal preso que não para de latir, a faxineira que não se esquece do sangue que lavou na Casa da Morte, o cianureto na boca de Ana Rosa, as fotografias da filha que K. olha, são muitos os elementos incisivos que tocam profundamente o leitor. Observe-se que incisivo significa cortante, ou seja, ao ferir, penetra a casca dura com a qual os homens se protegem das emoções dolorosas.
No geral, os acontecimentos históricos aparecem no romance já transmutados, transfigurados. O capítulo mais factual é “A reunião da Congregação”, que narra a vergonhosa expulsão de Ana Rosa da USP, em 23 de outubro de 1975, “por abandono de função”, quando ela já estava morta. Essa injustiça só foi corrigida 40 anos depois, por pressão da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, quando houve um pedido de desculpas formal à família. Um outro dado que aparece no romance é a atribuição dos nomes de 45 desaparecidos a logradouros. Quando o pai visita o local que recebeu o nome da filha, (como em Antes do passado, de Liniane Haag Brum), sofre uma grande decepção porque essas ruas situavam-se em loteamentos longínquos, lugares que estão longe de constituir referência memorial. O que o revolta ainda mais é constatar que nomes de militares e torturadores foram dados a ruas, pontes e viadutos nas regiões centrais das grandes capitais. K fica amargurado. Como observa Marc Augé, a instituição de marcos simbólicos numa cidade instaura o “lugar antropológico”, incorporado por seus habitantes. A necessária revisão da concessão de nomes de pessoas ligadas à ditadura a fim de entronizar outros nomes, dar outra versão da História, começou a ser feita mas, com a recente ascensão ao poder da extrema-direita, de tendências negacionistas, a tendência se inverte perigosamente.
A questão do corpo é fulcral no caso dos desaparecidos pois os familiares não conseguem elaborar o luto através da ritualização da morte. A não devolução do cadáver representa um desrespeito porque é próprio da morte humana a cerimônia do enterro, como no mito de Antígona. Em vários momentos do livro, K tenta, inutilmente, dar à filha uma lápide, um livro, uma oração fúnebre. Ao escrever o romance, Kucinski faz essa homenagem, encerra seu luto e transmite, ao mesmo tempo, a imagem viva da irmã morta, uma ausente que estará para sempre presente no espírito de seus leitores. A obra literária que B. Kucinski iniciou já na maturidade, destaca-se no panorama da produção brasileira pelo seu valor estético, que é um suplemento ao seu teor testemunhal. O estilo conciso atinge a emoção do leitor sem apelar para o melodramático, pelo contrário, nota-se o uso da ironia e do despojamento da linguagem para criar o clima absurdo, claustrofóbico e apavorante em que se viu o pai diante do sumiço da filha.
O livro levanta tantas questões éticas, que o autor sentiu necessidade de publicar, em 2016, Os visitantes, em que tenta responder ou, ao menos, debater, alguns desses aspectos. O paralelismo entre o passado mais remoto da família – a imigração, a Shoá, assim como o sentimento de culpa e a melancolia dos sobreviventes – e o passado mais recente – o desaparecimento da irmã pela repressão – dá maior profundidade temporal à tragédia que se abateu sobre a família. Nesse sentido, a obra de Kucinski tem as características das narrativas de filiação, o narrador vislumbra uma crise na transmissão da herança até porque a irmã, morta jovem, não teve a oportunidade de ter filhos aos quais legaria uma tradição.
Ao despojar o livro dos elementos mais claramente biográficos, o autor consegue atingir dimensão universal. Kucinski, que só aparece no prólogo e no capítulo final, denuncia a permanência do aparato repressivo, considera que a indenização das famílias sem o esclarecimento dos fatos e sem a punição dos responsáveis só aumentou o sentimento de culpa e o mal-estar. Se a história do Brasil é uma sequência de conflitos, em que a violência sempre foi exercida contra os mais fracos, a não apuração dos desmandos cometidos pelos agentes públicos reforça a amnésia nacional, o que possibilita a repetição de governos autoritários. Desse modo, a literatura que tematiza a ditadura contribui para despertar alguma consciência crítica.