Capa LimaBarreto.jul19 Luisa Vasconcelos

 

 

Lima Barreto teve uma infância sobressaltada. Perdeu a mãe com 7 anos, viu seu pai, João Henriques, cair no desemprego com a queda da Monarquia, bem como mudou-se com a família para a Ilha do Governador em 1890, onde seu pai passou a trabalhar como administrador nas Colônias de Alienados. A essas alturas, a vida até parecia tranquila e finalmente assentada. Nenhum problema de saúde na família, com os filhos mais velhos completando os estudos em Niterói.

Mas na vida dos Barreto nada parecia estável e “para sempre”. Um pouco distanciado do cotidiano pacato da Ilha, o governo da República enfrentava problemas. A essas alturas o regime republicano sobrevivia pelo uso da força. Até 1894, o país experimentou a tutela militar em seus dois primeiros governos. Em 1891, eclode a primeira Revolta da Armada. O estopim para o levante foi um ato do governo, que, em flagrante violação da Constituição de 1891, ordenou o fechamento do Congresso. A conta caiu na atitude da oposição que manifestava seu descontentamento diante da crise econômica dos primeiros anos de República, marcados pela especulação vertiginosa, fraudes e inflação galopante. E foi então que, comandados pelo almirante Custódio de Mello, boa parte da frota fundeada na Baía de Guanabara sublevou-se: a Armada – como a Marinha era chamada – exigia a reabertura do Congresso ou então bombardeariam a cidade do Rio de Janeiro. Para não ter de enfrentar a provável derrota ou uma guerra civil, Deodoro da Fonseca renunciou em 23 de novembro.

Seu vice, Floriano Peixoto, assume o posto interinamente e dá um golpe: ao invés de convocar eleições, como estabelecia a Constituição, o marechal resolve seguir à frente da nação. O auge do movimento aconteceu entre 1893 e 1894, no Rio de Janeiro, e significou uma das primeiras manifestações contra o autoritarismo da Primeira República. As elites controlavam as eleições, o voto, a escolha de candidatos, os partidos – a política formal. Mas as formas de exercitar a política na cena pública – greves, protestos, panfletos, jornais operários – começavam a pipocar em diferentes cantos do país.

A Marinha continuava, porém, indócil e, em setembro de 1893, um grupo de oficiais exigiu a convocação de eleições presidenciais – era a segunda Revolta da Armada. Com significativa folha de serviços prestados ao Império, a Marinha e seus oficiais sentiam-se negligenciados pela República. Custódio de Mello, por exemplo, acreditava que rebelar a Armada significava a melhor estratégia no sentido de recuperar o prestígio da Força. Floriano, que já andava enfrentando a Revolução Federalista no sul do país, reprime a Armada, governa em estado de sítio, e acaba ganhando a alcunha de “Marechal de Ferro”. Abria-se uma grave crise política.

O movimento dos almirantes seria contido em 1894, mas a ferida continuou aberta. Novas manifestações manteriam a agenda da Primeira República muito conturbada. As revoltas da Armada revelavam, também, a existência de dissenções nas cúpulas militar e civil: enquanto a Marinha se sentia desprestigiada diante do Exército, São Paulo rompia com a hegemonia carioca. Com isso, Floriano Peixoto passou a governar ditatorialmente.

Mas a Revolta não se restringiu à capital. Os insurretos desembarcariam na Ilha do Governador, tirando a segurança do aflito João Henriques. As primeiras notícias vieram do próprio Lima, que, garoto, enviou carta ao pai no dia 28 de novembro de 1893, lamentando o fato de não poder visitar a família durante um mês inteiro. E botou a culpa na Revolta. “Meu pai, (...) As aulas estão funcionando muito mal, isto é, com falta de frequência (...) Correu o boato que a Escola Naval estava lá na ilha ... Eu já estou aqui há um mês sem ir lá ... Se o senhor tiver alguém que venha a Niterói por necessidade, mande me buscar (...) Diga a dona Priciliana que eu desejava vê-la aqui, para ver as balas passar e arrebentar como eu as tenho visto daqui do Colégio (...) As granadas rebatem por todos os lados de Niterói...”. [nota 1]

A Ilha seria invadida pelos homens do Segundo Contingente da Armada que desembarcou por lá no dia 23 de outubro de 1893. No dia 24, um sofrido João Henriques envia mensagem ao diretor das Colônias, a essa altura longe da Ilha. Na missiva, relatava o desembarque dos revoltosos e o fim da paz que reinava por lá. Praticamente sozinho na Ilha, João Henriques dava sinais de desespero: “A minha posição é horrível não sei o que fazer. Vou retirar os alienados e empregados para S. Bento (...). Não posso ir para a Cidade com minha família pois não conto com recursos. (...) Agora não é mais possível trazer gêneros para aqui pois é o mesmo que entregar a eles. O que há de ser de mim!”. [nota 2]

No 15 de janeiro a situação parecia, porém, serenada, quando as forças até então acampadas na Ilha finalmente deixaram o local. A calma voltaria a reinar e, passada a agitação e organizado o cotidiano das Colônias, parece que o funcionário dedicado mereceu até promoção. Na memória do menino, sobraram apenas lembranças fragmentadas da Ilha e do embate. Lima recorda a flora local, o riacho que partia o sítio em dois, o pântano nas terras de fundo, os pássaros de várias espécies. Tudo é descrito com tal emoção, que, ao final do texto Lima conclui: esse é um sítio que “me animo a chamar meu”. [nota 3]

Lima, que mais tarde escreveria muito sobre seu passado, lembra como foi ingênua a sua primeira reação ao chegar a esse local, que, mesmo em meio à revolta, continuava a lhe parecer encantado. Trazido pelo pai, que fora lhe apanhar lá em Niterói, mal se deu conta da situação tensa: “logo tratei dos meus pássaros, dos meus laços, pouco se me dando com o duelo que se fazia de terra para o mar e do mar para a terra, a tiros de canhão e de carabina”.

Mas o escritor rapidamente tomaria consciência da situação de seu pai, que lutara para prover os seus mais de 200 internos. Escreve ele na crônica Estrêla: “Dentre os episódios da revolta de 93, assistidos por mim, aquele que mais me impressionou foi sem dúvida o desembarque dos revoltosos no Galeão. (...) Eu tinha doze anos e acabava de chegar do colégio onde era interno...”. Lá chegando, logo se dá conta da solidão do pai: “Meu pai, meu grande e infeliz pai, era dos funcionários da administração superior o único que tinha permanecido na ilha. O diretor, o médico, o escriturário se haviam retirado para a cidade. O senhor Ernesto Sena, que se picava de historiógrafo no Jornal do Comércio, tratando das Colônias, nos dias de revolta, chamou a meu pai de ‘Fujão’ Barreto. Não sei se havia entre eles qualquer desavença, mas o certo é que o que se deve exigir de um historiógrafo é a exatidão dos fatos ...”.

Após defender a honra do pai, continua: “Estava eu assim descuidado quando, uma manhã, aí pelas oito horas, meu pai mandou-me chamar à Colônia de São Bento...”. O texto segue descrevendo como no caminho o menino notou uma série de armas enfileiradas, uma porção de marinheiros e o pai “metido entre todo aquele apresto militar e guerreiro”. A princípio, o garoto não mostrou espanto, observando o pai que “parecia calmo”. Todavia, temendo sofrer algum de violência, João Henriques pretendia, com a presença do menino, “enternecer o comandante da força”.

O escritor lembra como viu seu pai e o comandante subirem ao mosteiro “para tratar lá dos negócios”. Enquanto isso, o menino conversava com os marinheiros, desejoso que um deles o ensinasse como manejar uma carabina. É possível evocar nessa cena o futuro patriotismo do personagem Policarpo Quaresma, que também enfrenta a Revolta da Armada alistando-se no Exército nacional. Nesse caso, como em outros, vamos perdendo as pistas do que é fato e do que é ficção, e mais: do que é armadilha da memória, que muitas vezes recria e faz da realidade sua própria ficção. Também fica fácil reconhecer o escritor que lutava pela igualdade e se opunha à violência praticada durante a Primeira República.

Agora começava o verdadeiro drama que dá nome à crônica: Estrêla. “Desceram, meu pai e o comandante. De repente, eu vejo ser tirado do curral o ‘Estrêla’, um velho boi-de-carro, negro, com uma mancha branca na testa. O ‘Estrêla’ fazia junta com o ‘Moreno’, outro boi negro; e ambos, além de carreiros, lavravam também. Foi o boi conduzido para junto da estrebaria e vi que um marinheiro, de machado em punho, o enfrentava e ia desfechar-lhe um golpe na cabeça. Tive a visão rápida dos seus serviços e dos seus préstimos, pois era de ver a paciência, a resignação do ‘Estrêla’, quando, atrelado com o seu companheiro de junta, cavavam, com auxílio do arado, na encosta íngreme do morro, por detrás do convento, fundos sulcos que iam receber as manivas dos aipins e a rama da batata-doce. (...) Sob o aguilhão do condutor, cavava resignadamente, docemente, tristemente, os sulcos no barro duro, para fazer render mais as sementes que a terra ia receber. Quando vi que o iam matar, não me despedi de ninguém. Corri para casa, sem olhar para trás.”

Lima tinha apenas 12 anos, “estava naquele instante da vida em que se gravam bem as dolorosas impressões”. Para ele, anos depois, o período florianista mais lembrava um terremoto, “com seus fuzilamentos, encarceramentos, homicídios legais”. [nota 4] Já o pai, por mais que tenha conseguido negociar com os revoltosos, saía do episódio abalado.

O episódio é distante da publicação do romance Triste fim de Policarpo Quaresma, que sairia pela primeira vez como livro em dezembro de 1915. Mas tudo lembra o ambiente da obra: o sítio onde Lima vivia; a fauna e flora locais, a Revolta da Armada e, sobretudo, seu pai. Ele era nacionalista e injustiçado como Policarpo. Homem cheio de ideias e de ideais, mas que acabou afundado como burocrata de uma repartição menor. Quaresma, como João Henriques, merecia mesmo era a patente de “patriota”; daqueles que só defendem produtos nacionais e da própria terra.

Foi essa, também, a primeira vez que Lima notou um pai diferente: mais inseguro e que precisava dele – o filho mais velho –, para “conter” os militares. “Meu pobre pai”, escreve Lima, não prevendo, claro, mas de certa maneira anunciando, a demência que quase migrou da cabeça dos internos para a do administrador.

A Revolta surge, assim, como um episódio singular na memória do adulto garoto que fez dela um mote para a sua própria revolta. Revolta contra o fim da sua meninice, contra a República que não era aquela dos seus sonhos, e contra as injustiças perpetradas contra os homens, mas também contra os animais. Esse já era Lima Barreto, sem tirar nem pôr.

* Este texto é pautado em livro de minha autoria chamado Lima Barreto, triste visionário. São Paulo, Companhia das Letras, 2017.

[nota 1]. Citado por BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: José Olympio, 1952, pp.56-57. Como Seção Manuscritos da Biblioteca Nacional (documento não encontrado).
[nota 2]. Ibidem.
[nota 3]. O depoimento transcrito após esta nota foi retirado da crônica O Estrêla, publicada no Almanaque d’A Noite, em 1921. In: Lima Barreto. Feiras e Mafuás., pp.61-66.
[nota 4]. Lima Barreto. Numa e a Ninfa. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1989. p.61.