Artigo Itamar Luisa Vasconcelos ago19

 

O texto de Bernardo Oliveira, reduzido no impresso por questões de espaço, aqui segue na íntegra.

 

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Para Juçara Marçal e Negro Leo

Eu tenho cabelo duro, mas não o miolo mole!


1. "DEUS TE PRETEJE!"

Quem viveu os anos 1980 tem todo o direito de assistir com ironia toda a deferência contemporânea à música de Itamar Assumpção (1949–2003). Podemos até fantasiar uma cumplicidade extramundo, o próprio Itamar devolvendo o olhar irônico, emendando com um jogo de palavras, uma tirada fina, uma provocação. Por este motivo, pode-se afirmar, sem temer o risco da presunção, que a obra de Itamar Assumpção vive e pulsa sob o signo do inacabado.

Suas considerações, experiências sonoras, musicais e performáticas, indicam uma prescrição inconveniente: a música que ele produziu implica, ainda hoje, em uma atividade ativa de escuta, capaz de identificar uma rica e estranha contra-imagem da tradição cancional brasileira. Revela a consistência desse inacabamento ao prolongar os traços inconvenientes de uma negritude que, mesmo à mercê dos códigos e das condições territoriais marcadas pela insegurança, sempre esteve habituada a manejar a informação e as tecnologias do corpo, do som e da festa.

É conhecida a história de sua prisão em meados dos anos 1970, ainda em Londrina, portando um gravador emprestado, o que levantou suspeita de policiais que provavelmente nunca tinham visto um negro portando um gravador. Este episódio, que lhe acarretou cinco dias na prisão, foi o estopim para que tomasse a derradeira decisão pela vida artística. Sabe-se que, daquele instante em diante, decidiu ser músico e saiu de Arapongas, cidade do Paraná, para São Paulo.

A obra de Itamar prolonga o curto-circuito antropofágico por outras linhas, desta vez associadas aos enfrentamentos e desafios das populações negras urbanas e periféricas no fim do século. Uma obra que é, simultaneamente, invenção e crítica das escolas e tendências correntes da música popular, utilizando, como método de filtragem, a “oralidade cinética” do samba sincopado, do samba de breque, do funk e do rap, do reggae jamaicano, e, por vezes, do rock norte-americano.

No panorama amplo e diverso da música feita no Brasil de hoje — que está longe de se resumir à sigla MPB — Itamar está vivo também por contextualizar um espaço pluralista para as populações negras, evitando identificar-se definitivamente com os papéis pré-concebidos pela sociedade aos músicos negros — além de sambista, funkeiro e malandro, Itamar também tomava como horizonte a vanguarda da experiência pop de seu tempo. Sua atualidade advém das linhas potenciais liberadas por suas realizações, como também por entrar em sintonia com alguns dos traços da cultura negra jovem atual, antenada aos arroubos irônicos e combativos do Rap e do Baile Funk, habituada com a combinação de formato pop e discurso crítico determinado por artistas como Prince, e, hoje, o “negro drama” de Mano Brown e Kanye West.
Assumpção e sua banda, a Isca de Polícia, foram revelados junto ao grupo de artistas que, entre o final da década de 1970 até 1985, fizeram do teatro Lira Paulistana a casa da chamada Vanguarda Paulista, um dos grandes centros de experimentação musical da época. Desde sua aparição no final da década de 1970, desenvolveu um estilo próprio de tocar, cantar, compor e se apresentar. Na época em que saíram os dois últimos volumes da trilogia Pretobrás, ressaltou-se a peculiaridade da experiência póstuma, tão poderosa e evocativa de sua presença. Mesmo em seus dois discos póstumos, Itamar parecia fustigar os vivos. Ainda hoje, não há o que nos impeça de afirmá-lo sob variadas formas. Por exemplo, para a resistência de uma juventude negra, a reafirmar o estatuto vanguardista de artistas populares como Mano Brown, os funkeiros Rennan da Penha e Iasmin Turbininha, o mestre de maracatu Anderson Miguel, o bregafunk de Shevchenko & Elloco.

Ouvir Itamar hoje é submeter sua audição a uma espécie de Saci que, com seu “lirismo objetivo”, prega peças em ouvidos distraídos, mestre dos enigmas à moda de Bob Dylan, deslocando-se no contrapé dos ditames da MPB. Evidentemente, a repercussão de uma voz negra altiva e consciente de sua potência criativa, apta a provocar um curto-circuito entre faixas culturais e se comunicar por enigmas, não seria capaz de evocar uma compreensão unânime em um País que conserva o indelével traço escravocrata.

Mesmo lançando seus primeiros trabalhos de forma independente — Beleléu Leléu Eu (1980), Às Próprias Custas S/A (1982) e Sampa Midnight — Isso não vai ficar assim (1983) — e conquistando prêmios de Revelação do Ano, concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1981, e Pesquisa de Música Popular Brasileira, concedido pela Shell, em 1982, Itamar caiu no estigma do “artista maldito”. Como escreve Maria Betânia Amoroso, “o mito romântico do artista genioso, difícil, irascível e marginal insiste em manter o inquieto Itamar preso ao clichê. As várias dimensões de Itamar [...] só poderão se mostrar se as máscaras inventadas pelo próprio autor, no exercício da arte, e as demais, sugeridas e reforçadas pela imprensa, forem abandonadas”.

A despeito de todos os poréns que a mediocridade e o racismo à brasileira interpuseram entre Itamar Assumpção e o grande público, ainda hoje é reconhecido como um poeta, compositor e instrumentista central na música paulistana deste e do século anterior. Artistas negros enfrentaram e ainda enfrentam as barreiras de um mercado seletivo: espera-se do negro que cante, não uma música híbrida e experimental, mas samba ou funk em uma linguagem popular acessível. Seria necessário, então, não nos fiarmos mais nos estigmas que a mídia e as corporações culturais apregoam, para buscar na própria matéria musical, sonora, o que há de gigante no artista em questão. 

Para tanto, a primeira tarefa seria desvinculá-lo, ainda que provisoriamente, do termo “cancionista”. Do período particular de consolidação da chamada MPB até meados dos anos 1980, alguns poucos artistas manteriam, em diferentes graus de confrontamento, uma posição de reverência e desconfiança simultâneas em relação à “linha evolutiva” da música brasileira. Percebe-se no trabalho desses autores, que a reverência espontânea à canção brasileira se confrontava com uma desconfiança acerca da seletividade com que alguns caíam nas graças da Indústria Cultural, enquanto outros caíam nas malhas do isolamento. No momento em que, sob o rótulo genérico MPB, consolidou-se um grupo mais ou menos delimitado de trabalhos musicais a serem promovidos, o estigma de “maldito” pairou sobre aqueles que destilavam posturas provocativas em relação ao gosto médio vigente e às exigências do mercado fonográfico e das rádios. Um projeto de filtragem estética, que admitia certas poéticas e sonoridades em detrimento de outras, entrelaçava-se a um projeto de dominação política e econômica.

A atividade do “cancionista”, restrita ao labor da canção, indica a predeterminação de um lugar e de características às quais devem se submeter todos os compositores que pretendem reservar seu lugar no Panteão da Canção Brasileira. Preconcepção que parece operar para além dos movimentos de apreensão teórica, atuando como força motriz para estabilização e hegemonia exegética da atividade artística. 

De maneira divergente daquela estabelecida pelo panteão — a canção como força motriz, como epicentro de toda uma cultura sonora e musical — artistas como Itamar, mas também Os Mutantes, Tom Zé, Arrigo Barnabé e Maurício Pereira, tomaram-na como um elemento, entre outros, a serem manejados em uma órbita rica em possibilidades, tendo por finalidade a expressão estética, mas também moral e política — pois se referem à construção de personalidade e estilo em posição de divergência com a tradição e sua “linha evolutiva”.

Para além de um “cancionista”, quero dizer, de um artista cuja principal atividade se delimitaria à construção de uma dicção, de uma “gestualidade oral”, me parece que Itamar buscou imprimir pelo menos três outros aspectos em sua trajetória artística. Primeiro, reforçar, através de técnicas de composição e performance, o vínculo entre a invenção e a crítica do movimento cancionista ou da visão cancionista da Música Brasileira. A necessidade de se posicionar como um artista pop (e popular) — “agora eu quero cantar na televisão!”, bradava em seu terceiro disco — e, como os popstars negros norte-americanos, vincular a atividade de compositor, intérprete e instrumentista a um elemento de performance que não se restringia à interpretação, mas à ideia de instauração. Mais do que um crooner, o intérprete deve abrir caminho para um acontecimento, um instante, um espetáculo. Gravado ao vivo, seu segundo álbum (Às Próprias Custas S/A), constitui um exemplo dessa capacidade de estabelecer um campo de tensões dramáticas, cênicas, durante a apresentação das canções. 

Justapondo-se ao aspecto performático, a base da sua música consistia em alguns elementos identificáveis. O vínculo direto com a rítmica banta do Batuque de Umbigada, característico de sua terra natal, Tietê, interior de São Paulo, hoje representado pela grande cantora Anicide Toledo. A acentuada polifonia da Umbigada de Tietê constitui, sem sombra de dúvida, um dos traços afro-brasileiros na música de Itamar, caracterizada por uma sonoridade particular da formação instrumental — constituída por tambu, quinjengue, matraca, guaiá e apito. Em seguida, as notórias derivas da tradição cancional, a começar por Tom Zé, Jards Macalé, Walter Franco e Arrigo Barnabé. Completam o quadro: uma liberdade em experimentar as formas do reggae de Bob Marley e Gilberto Gil, o funk/soul/pop negro norte-americano e, de maneira muito particular, o samba sincopado de Geraldo Pereira e o samba de breque de Moreira da Silva. 

Talvez pelo fato de ser contrabaixista, uma estratégia comum em suas canções é concebê-las não a partir da harmonia, mas de uma linha de baixo, um ostinato que opera como centro harmônico.  A roupagem instrumental — contando geralmente com guitarra, baixo, bateria, percussão, piano elétrico e, mais tarde, sintetizadores — evolui para formas menos assimiláveis a algum gênero específico. Composições e arranjos irredutíveis a algum gênero mais objetivo, invenções que pareciam mais preocupadas em criar um trânsito entre urbanidades diaspóricas, sem recorrer a fórmulas gastas e previsíveis. Tudo isso envolto em uma concepção de arranjo e instrumentação, que não se parecia com absolutamente nada no cenário musical brasileiro da época: arranjos mais dramáticos do que propriamente musicais, trilhando caminhos expressivos entre recursos cênicos e performáticos, relatos delirantes do cotidiano e observações mordazes da mediocridade brasileira.

A partir desse método, surgem, por exemplo, muitas da faixas de Sampa Midnight, como E o Quico, Prezadíssimos ouvintes e Navalha na liga, parceria com Alice Ruiz, a linha de baixo servindo de epicentro, enquanto vários episódios instrumentais e onomatopaicos rondam a estrutura, os versos oscilam entre algo próximo ao rap e ao jogral, num formato próximo do funk norte-americano, mas com características próprias do seu versejar falado e performático. “Valha navalha na liga: nada na barriga!”
Sua poética é marcada por uma lógica do estranhamento, pelo reaproveitamento disjuntivo de diferentes ordens de informações — o que nos remete à tirada certeira de Paulo Leminski em Catatau: “Informação é expectativa frustrada” — isto é, driblar o excesso de previsibilidade, deslocar a expectativa no contrapé de tudo o que seja excessivamente previsível — pois, por exemplo, nos aspectos rítmicos, algum grau de previsibilidade é até desejável. O verso articulando uma cinética oral que usa a palavra para criar saltos e sobressaltos, entre a canção tradicional e a cantiga de rua — ou, como afirma Tom Zé, a “descanção”:

Justo você Berenice
que não chega nem aos pés da Vera Fischer
me sai com essa sandice
De que meu som não chega
Nem no calcanhar de Aquiles
do som do Sting, ex-The Police

Ou ainda:

Vem, ó minha amada
Me dê a mão
E vamos sair por aí
Para ver os preços.

Ao conduzir o olhar romântico para um passeio no supermercado, Itamar extrapola a ironia e descortina uma visão cáustica do consumismo urbano, provocando a eclosão de um lirismo intempestivo, uma emoção criada mais pelo estranhamento disjuntivo do que pela harmonia da forma poética. Itamar levou adiante uma associação igualmente problemática entre a coloquialidade espontânea da dicção malandra — concentrando formas fragmentárias, entoativas e onomatopaicas — com as visões de uma poesia sonora que, tal como o rap, poderia ser de rua e de vanguarda. A interpretação e, por vezes, as próprias canções, assimilavam mais o caráter falado do que o cantado. A voz articulando frases inteiras ou recortando-as tanto pelo diálogo frenético com os backing vocals femininos — em forma de pergunta-e-resposta ou em jogral; ou ainda justapondo vozes em overdubs para extrair um efeito de textura vocal, como, por exemplo, em faixas como “Sutil”. Itamar parecia evitar, cada vez mais, a alternância de alturas, a tessitura dolente da voz, o aspecto emocional da grande canção brasileira, mais centrada no apuro das articulações melódicas. Em termos de timbre, sua voz passeou por diversas possibilidades, ressaltando sempre o aspecto textural, o grito, o sussurro.

Ao mesmo tempo em que seu estilo primava por uma subjetividade decisiva que a tudo recobria, havia algo de pluralista em suas ideias, táticas e personagens. Convém aqui problematizar a própria ideia de autoria: Itamar corresponde hoje a um território tomado por muitas subjetividades, topologias e espacialidades. Um artista cercado de cantoras, músicos, poetas e produtores que atuaram, de forma decisiva, na elaboração de sua produção.

Outros parceiros chegariam aos poucos através das canções, entre eles um tipo muito especial: Benedito João dos Santos Silva Beleléu, vulgo Nego Dito, “cascavel”. Personalidade forte, cujas características vão sendo ressaltadas nas canções, Nego Dito é perigoso: fica louco, faz cara de mal, fala o que vem à cabeça, não gosta de gente, não gosta de pente; não deduz, portanto, uma postura mínima para satisfazer regras de convívio de uma sociedade racista. Nego Dito antecipa a personalidade artística de Mano Brown. Por vezes, é melancólico, mas sua melancolia é também um jogo de cena com o olhar da branquitude: o banzo como linha de fuga, como estratégia de deslocamento e recusa aos modelos vigentes. O artista se coloca em posição de guerra, assimila a postura de uma nobreza negra que expõe sua melancolia devido a razões políticas. Como em Us (2019), filme mais recente de Jordan Peele, o jogo de espelhos não se concretiza entre indivíduos opostos pela diferença, mas entre as disposições conflitantes que habitam um mesmo indivíduo: o artista negro tematiza a grandeza de sua posição, tanto racial-coletiva quanto individual-subjetiva, em sintonia com sua posição enquanto indivíduo concreto, enfrentando cotidianamente os constrangimentos e a violência emanada pela sociedade na qual está submerso.

O compositor pode, então, se utilizar como matéria-prima das inflexões corporais e sociais acarretadas por uma psicopatogênese da colonização, por um autoestudo do sentimento de subalternidade psicológica e social dos negros diaspóricos, sublinhada pelo filósofo e pensador martinicano Frantz Fanon. Como Mano Brown, Itamar foi um artista apto a empreender a mutação do sentimento psicopatológico, transformando o prejuízo psíquico em uma vigorosa política de autoafirmação. 

Provocado por uma ordem social e cultural, frágil do ponto de vista das relações raciais, ele exacerbava os aspectos de sua atividade considerados problemáticos. Constantemente provocado por uma atividade oscilante entre a busca experimental e a necessidade de participar do circuito vigente, entre uma pesquisa experimental e uma vocação pop, entre muitas tradições (o samba carioca, a música paulistana) e tradição alguma, Itamar era um artista em processo de individuação acelerada, recusando-se a assentar seu estilo e sua busca sobre as necessidades do grande público, nutrindo-se entre potenciais poéticos, performáticos e sonoros muito específicos; ao mesmo tempo, criando uma imagem sonora aparentemente incompatível com as exigências mercadológicas dos anos 1980. Essa característica refletia uma posição crítica, não somente em relação à mídia e ao music business, mas a qualquer processo de banalização e uniformização do gosto, contrário aos sedentarismo das probabilidades e das estimativas. Muitas vezes, essa característica se coadunava estranhamente com uma potência autoconsciente que, através de artifícios conceituais, cancionais, teatrais e instrumentais elaborados com rigor e estratégia, buscava inscrever seu nome na história da música brasileira como um pop star afro-brasileiro urbanizado. 

2. TUDO É RASCUNHO!

O artista estático diante do entorno, olha concentrado para a massa de barro. Seu corpo (cérebro, nervos olhos, braços, mãos, dedos) está prestes a lançar-se sobre a matéria inerte, disforme, de onde deverá procurar extrair uma obra de arte.

O exemplo, banal por excelência, parece referir-se a um percurso datado, que suporia um trajeto seguro entre a “realidade espiritual” — a realidade ideal platônica, o modelo abstrato na cabeça do autor — até o encontro, o ajuste dessa realidade à matéria moldável, dócil, passiva. E isso de tal maneira que, do caos, surja uma obra de arte, quiçá uma bela forma. Sob esse esquema, a realização da obra corresponderia à concretização de um projeto marcado pelas contingências do percurso, do modelo original até à obra (a “cópia” do modelo), os reajustes do real e as resistências da matéria, condicionando os resultados até que, um e outro, coincidam em uma forma acabada. O acabamento da obra será dado no mesmo termo em que coincidirem a imaginação modeladora e a sua realização material.

A partir de tal esquema, é possível recolocar algumas conclusões consagradas. Primeiramente, como afirmam Isabelle Stengers e Bruno Latour, explicando "a obra por fazer" de Étienne Soriau, “a todo instante, tanto a obra quanto o artista podem dar errado. A obra está em perigo, tanto quanto o artista — e o mundo mesmo! Sem atividade, sem inquietude, sem erro, não há obra, não há ser”. O que é, então, a obra de arte, se não uma esfinge que submete o artista a um interrogatório, aquilo que Soriau chamava “a esfinge da obra”? E o percurso de construção da obra, não seria marcado também por um grau de "errabilidade" fundamental a todo processo?”

Sorte não haver o que segure
Som…
Senhores e senhores
Mas quem é que me garante
Que mesmo esses microfones
Sempre funcionarão?

É preciso encarar a matéria da canção, consciente dos perigos que ela oferece: perigo de não corresponder às expectativas, de não tocar nas rádios nem nas novelas, de oferecer uma experiência estética banal, perigo de que o microfone não funcione. Autor, obra, mundo: tudo corre perigo. O autor corre o risco de ser preso ou morrer de fome; a obra corre o risco de “dar errado”, e mesmo o Mundo, em louca instabilidade, tende a acabar todos os dias. Mesmo a relação entre intérprete (emissor) e ouvinte (receptor) pode falhar do ponto de vista da assimilação. Emissor, receptor e obra estão imbricados em uma relação de inacabamento existencial, de composição e decomposição incessante, capaz de se reposicionar a cada nova experiência.

E se a experiência se desdobrasse no percurso, — não no projeto? A obra sendo trajeto corresponde à dúvida, ao erro e à luta por extrair algo que justifique a labuta. Adiante, a obra também libera outras linhas experienciais, transformando não somente aquele que a escuta, como também a si mesma. A "errabilidade" do percurso, o seu caráter de busca e rascunho, corresponde mais à trajetória de uma composição agônica do que propriamente ao resultado, aparentemente final, do trabalho. Trata-se de uma ética do rascunho, do experimento, da tentativa:

“Tentei musicar um drama, tentei inventar poemas, tentei música urbana, tentei mais do que imaginas…”. 

A precisão do rascunho corresponde a uma ética da tentativa. “Tudo é rascunho!” — mas encarar o percurso implica em correr o risco, expor-se à "errabilidade" fundamental de todo processo. Criar é rascunhar; não porque a obra é rascunho — a obra de Itamar é, inclusive, bastante precisa. Mas porque “sem atividade, sem inquietude, sem erro, não há obra, não há ser”. Titubear, hesitar, baratinar: palavras se transformam em ferramentas. Um olho no peixe, outro no gato: o ato criativo corresponde a não levar tanto em conta o projeto, mas o trajeto.

A experiência de criador, com toda a sua carga de possibilidades trágicas, almeja a precisão do rascunho — não como esboço, mas como obra aberta —, indicando que precisamos predispor o corpo à experiência que Itamar nos propõe. Em suma, para rascunhar outros mundos a seu lado. 

Apesar de sua morte, a trajetória de Itamar Assumpção se mantém em curso. Não somente pela instabilidade visionária de sua música — foi Itamar quem introduziu uma dicção específica para o rap no Brasil ao compor os versos irônicos de Noite de terror, uma das faixas de seu segundo disco (Às Próprias Custas S/A), como também pela deriva na máxima cantada em uma das grandes canções de seu primeiro disco: “Espero ouvir você dizer que gosta de viver em perigo”. Itamar parece nos reenviar a provocação: O que faz a música da juventude negra contemporânea, se não ostentar o perigo à espreita? Como o rap, o funk, as músicas periféricas — tendências que ainda negociam sua assimilação e legitimação com a mentalidade nacional-folclorista e cancional brasileira — sua antiobra é mais vertigem do que forma e expressão; mais sonho do que circuito ou mercado, máquina que avança em direção a uma visão muito franca do (des)conhecido. Não é melancólica, mas carrega o impulso à libertação, corolário de um país que precisa iniciar o processo de superação da escravidão, que precisa sair do papel. 

Como o Brasil, uma obra por se fazer.