Artigo Kelvin Filipe Aca

Não é só o Brasil que está vivendo o caos de um retrocesso.

Recebemos diagnósticos e reflexões dos mais variados pontos, muitos deles englobados por uma mesma percepção de fundo: é cada vez mais difícil imaginar um futuro.

Segundo as categorias do historiador Reinhart Koselleck, todo “espaço de experiência” pressupõe um “horizonte de expectativa”, ou seja, toda vida que se desenrola no presente precisa de um futuro hipotético no qual se projetar. Nosso presente, contudo, vive um curto-circuito na relação entre experiência e expectativa. Vivemos em uma época na qual o horizonte não é mais sinônimo de progresso ou progressão, construção ou formação, pelo contrário: as promessas para o futuro que escutamos envolvem sempre violência, intolerância, destruição e ignorância.

O detalhe fascinante dessa dinâmica é que toda experiência do presente e toda projeção de futuro envolve, sempre, uma reconfiguração do passado. O passado não cessa de passar, está sempre aberto e disponível. Três livros recentemente lançados buscam dar conta desse detalhe, de formas radicalmente diversas e igualmente interessantes.

Franco Berardi, filósofo italiano, lançou em 2009 seu livro Depois do futuro – agora publicado no Brasil pela Ubu Editora com tradução de Regina Silva. No prefácio, escrito 10 anos depois do lançamento, Berardi aponta que sua intenção “era comparar o Zeitgeist depressivo deste novo século ao espírito futurista que permeou profundamente a cultura do século XX, marcado pela crença no futuro”. Seu livro se lança 100 anos no passado – em direção ao primeiro manifesto do futurismo italiano, de 1909 – para pensar as bases de nossa contemporaneidade “depressiva”. Entre um ponto e outro, entre 1909 e 2009, encontra uma série de balizas e pontos de referência, sendo o principal o Maio de 1968: até aí, escreve Berardi, “o futuro era imaginado de forma eufórica”; depois, a percepção do futuro é de algo que “ameaça o programa humanista”.

Wolfram Eilenberger, por sua vez, também filósofo e autor de Tempo de mágicos, faz um movimento semelhante ao de Berardi, como indica o subtítulo de seu livro: “a grande década da filosofia: 1919-1929” (traduzido por Claudia Abeling e lançado pela Todavia). Eilenberger resgata quatro grandes nomes da filosofia europeia, Walter Benjamin, Ludwig Wittgenstein, Martin Heidegger e Ernst Cassirer, costurando suas trajetórias umas às outras e aos eventos históricos do período. A década separada por Eilenberger, que se inicia com o imediato pós-Primeira Guerra Mundial e se encerra com a crise econômica mundial de 1929, também foi marcada pelo surgimento de obras que ressoam ainda hoje: o Tractatus Logico-Philosophicus, de Wittgenstein, Ser e tempo, de Heidegger, Origem do drama barroco alemão, de Benjamin, e os três volumes da Filosofia das formas simbólicas, de Cassirer.

Existe uma questão de fundo que aproxima Eilenberger e Berardi: são dois filósofos contemporâneos empenhados em pensar o presente a partir da releitura das camadas complexas do passado. Esse movimento, contudo, ainda é feito a partir de um sentimento de hegemonia nacional – Berardi, italiano, busca o futurismo italiano de 1909; Eilenberger, alemão, busca a grande década da filosofia alemã, com autores que escreveram em alemão. É inegável que uma série de elementos suaviza essa ênfase na hegemonia nacional – Berardi comenta extensamente as vanguardas russas; Eilenberger comenta a influência do cenário francês sobre Benjamin, ou do cenário britânico sobre Wittgenstein –, e é inegável também que são trabalhos nascidos da especialização de seus autores a determinados campos disciplinares.

O terceiro livro em questão, contudo, é eloquente em sua fuga deliberada de uma série de categorias que parecem limitar o pensamento há gerações – nacionalidade, autoria, disciplina etc. Trata-se de Contribuição para a guerra em curso, escrito pelo coletivo Tiqqun e agora publicado no Brasil pela n-1 edições, com tradução de Vinicius Nicastro Honesko.

Tiqqun é o nome de um coletivo fundado em 1999 e encerrado em 2001, depois dos ataques às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001. Além disso, Tiqqun foi o nome dado pelo coletivo à revista que produziram, também de vida curta, com apenas dois números: o primeiro em 1999, com o título geral de Exercícios de metafísica crítica; o segundo em 2001, com o título Zona de opacidade ofensiva. Por fim, Tiqqun é também a denominação de um conceito filosófico com origem no misticismo judaico: significa algo em torno de reparação, restituição e redenção. Nenhum dos artigos publicados nos dois números lançados de Tiqqun é assinado, não há qualquer indicação específica de autoria – ela é coletiva.

Contribuição para a guerra em curso apresenta dois dos artigos: “Introdução à guerra civil”, dedicado a desenvolver a ideia de que vivemos sob permanente estado de exceção cuja lógica é a da guerra civil, e “Uma metafísica crítica poderia nascer como ciência dos dispositivos”, dedicado a aprofundar uma teoria da relação entre dispositivo e subjetividade. A edição brasileira conta ainda com um posfácio de Giorgio Agamben, cuja obra é declaradamente um ponto de partida para o coletivo Tiqqun – junto com a de outros autores como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Guy Debord.

Berardi e Eilenberger revisitam momentos precisos do passado e incidentalmente refletem sobre a contemporaneidade – de um lado, o “tempo de mágicos” nos faz melhor observar a pluralidade e multiplicidade de ideias circulando no presente; de outro lado, a retrospectiva do “futurismo” nos faz melhor observar (e desconfiar da) a tecnologia onipresente dos dias atuais. Os textos de Tiqqun, no entanto, ao também revisitar nomes e textos do passado (Hobbes, Tocqueville, Hegel, Marx, Benveniste, Pierre Clastres…) buscam incidir direta e criticamente sobre o presente, propondo ações e movimentos de consciência: “a necessária solidariedade entre fichados e não fichados, entre aqueles que têm documentos e os que não os têm, só pode se fazer contra o princípio do fichamento, contra o princípio dos documentos. A luta presente quer, taticamente, que todo mundo tenha documentos, e, em seguida, de forma estratégica, que estes sejam, enquanto tais, abolidos”.

A palavra-chave que permite costurar os três livros é, sem dúvida, “dispositivo”. Recuando ao ponto mais distante desse breve panorama desenhado até aqui, encontramos o manifesto futurista italiano de 1909: Berardi enfatiza o fascínio dos futuristas pela máquina, pelo automóvel, pela industrialização, seus processos e resultados – Deus veemente de uma raça de aço / Automóvel embriagado de espaço, escreve Marinetti. Duas décadas depois – já nos domínios do livro de Eilenberger –, Benjamin e Heidegger já estão inseridos em uma reflexão sobre a técnica e a captura das subjetividades pelos artefatos desenvolvidos na industrialização (não só fotografia e cinema, mas também a impressão, o rádio, o sistema postal e, fundamentalmente, a linguagem): “Progresso”, escreve Eilenberger, “palavra de ordem que, segundo Wittgenstein, mais ofusca e confunde nossa cultura”.

Em primeiro lugar, “dispositivo” é um termo amplo que indica tanto práticas quanto artefatos, fundando sua existência em um conjunto heterogêneo de articulações entre saberes e poderes. O dispositivo tem a capacidade de estimular respostas, verbais ou não verbais, determinando e controlando gestos, palavras, comportamentos, fazendo com que a subjetividade seja explorada pelo exterior, posta em público, ao mesmo tempo em que garante que os estímulos do exterior sejam devidamente introjetados. Na época moderna dos futuristas, escreve Berardi, “a máquina era máquina externa que agia fora do corpo e da mente”. A máquina de hoje, contudo, é radicalmente diversa: trata-se da “máquina interiorizada, máquina biopolítica: a máquina psicofarmacológica, a máquina que age no interior do corpo graças a potências de tipo químico, biotécnico”. Ou seja, “os corpos não podem se relacionar nem a mente se expressar sem o suporte técnico da máquina biopolítica”.

Nessa perspectiva, a relevância de se informar acerca da década de 1919-1929 – a partir da análise de Eilenberger ou de livros como Em 1926, de Hans Ulrich Gumbrecht, por exemplo – reside não apenas na constatação de que esse foi o período de preparação da grande década fascista dos anos 1930. A abordagem de Eilenberger nos permite observar como seus quatro mágicos fundaram pensamentos sobre a relação entre técnica e pensamento, frisando sobretudo a fragilidade da subjetividade diante dos dispositivos. Quando Wittgenstein declara que os limites de minha linguagem são os limites de meu mundo, é possível reconhecer parte do horror que nos assola cotidianamente – uma linguagem formada de ignorância e violência gera um mundo equivalente. O mesmo vale para as ideias de Cassirer sobre as “formas simbólicas” e o modo como a vida em sociedade se baseia em padrões arcaicos – reconhecemos de imediato a tragédia de uma concepção equivocada e doentia de “mito”.

A empolgação futurista com a tecnologia se tornou nosso pão de cada dia: redes sociais, plataformas, ferramentas de contato que tornam a vida cada vez mais múltipla na superfície e cada vez mais reduzida em sua efetividade, em sua autenticidade. Escreve Tiqqun: “cada dispositivo possui uma pequena música que é preciso desafinar ligeiramente, distorcer acidentalmente, fazer entrar em decadência, em perdição, fazer sair de seu prumo. Aqueles que fluem no dispositivo não se dão conta dessa música, seus passos obedecem em demasia à cadência para escutá-la em sua clareza”. Algo dessa percepção pode ser resumido em uma frase recorrente nos últimos tempos, transformada por Bregtje van der Haak em documentário em 2016: Offline Is The New Luxury.

A guerra civil é permanente porque o controle é permanente, porque todo cidadão é controlado, analisado e vigiado com o uso de técnicas concebidas inicialmente para criminosos. Berardi: “A segurança não pode proteger ninguém porque produz exatamente o contrário do que promete. A segurança é o pânico”. Tiqqun: “Aqui reside o caráter próprio e a pedra de toque do Estado moderno: ele só se mantém por meio da prática daquilo que quer conjurar, pela atualização daquilo que reputa ausente”. A subjetividade contemporânea se declina sempre em uma posição complementar: consumidor, usuário, cliente. Não há dimensão da vida – diversão, alimentação, trabalho – que não seja atravessada por dispositivos que oferecem a ilusão de autenticidade enquanto mascaram a estrutura que padroniza gestos e afetos. Os robôs do Twitter, decisivos nas eleições de Trump e Bolsonaro, se parecem a cada dia menos com uma caricatura risível do comportamento humano e mais como o anúncio daquilo que será a resposta comportamental padrão do futuro. “Creio que é preciso dizer”, escreve Agamben no posfácio ao livro assinado pelo Tiqqun, “não somos e jamais seremos terroristas, mas o que vocês acreditam que talvez um terrorista seja, isto nós o somos!”.