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É de uma carta frágil a pergunta de Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982; foto): "Que destino terá a obra de um escritor de nossa época quando raiar o século XXI?". A indagação foi postada numa máquina do tempo há 50 anos rumo ao agora. Destinada a nós, "donos do mundo vertiginoso que vai nascer", a carta foi recuperada pela crítica Bella Josef (1926-2010) e transcrita pela pesquisadora Claudia Thomé. O que podemos responder hoje a Dinah?

Antes de tudo, o destino é fugidio. A escritora temia que os livros virassem raros no futuro. Bem, isso não se realizou. Embaraçoso mesmo seria admitir a Dinah: sua obra sofreu um apagamento. Para uma escritora tão conhecida outrora, fica até estranho explicar a situação atual.

É mesmo inacreditável que o nome Dinah Silveira de Queiroz seja tão pouco mencionado. Seu primeiro livro, Floradas na serra (1939), esgotou-se em 20 dias, segundo a pesquisadora Ana Cristina Steffen, e foi adaptado ao cinema por Luciano Salce com Cacilda Becker no elenco. A muralha (1954) ganhou cinco adaptações para televisão: pela Record, Tupi, Cultura, Excelsior e Globo. O livro Margarida La Rocque (1949) foi lançado no Canadá, Coreia do Sul, Espanha, França, Itália, Japão e Portugal. Além dos quase 20 livros, esteve sempre no rádio e jornal com crônicas.

Hoje é lembrada pela militância de mulheres na Academia Brasileira de Letras, sendo uma das principais vozes a favor da mudança. Lygia Fagundes Telles considera-a "uma das pioneiras no trabalho persistente de quebrar o antiquíssimo tabu do ingresso da mulher na ABL", segundo Michele Fanini na tese Fardos e fardões: mulheres na Academia Brasileira de Letras (2009).

Apresentou candidatura duas vezes, ambas negadas. Em 1977, a ABL elegeu Rachel de Queiroz, prima não consanguínea de Dinah: embora a entidade finalmente tenha cedido às pressões feministas, não instituiu uma escritora com perfil militante. Somente dez anos depois da primeira tentativa, Dinah torna-se imortal (note-se que, em 2018, a ABL negou a cadeira de número sete à Conceição Evaristo, a mesma antes ocupada por Dinah, cujo patrono é Castro Alves).

Paulistana, mulher branca de família de posses, nascida em 1911, frequentou o colégio feminino Des Oiseaux, onde estudariam Marta Suplicy e Ruth Cardoso. Com o segundo marido diplomata, residiu em Moscou durante a Guerra Fria e em Lisboa no período das guerras de independências de países africanos, acontecimentos que marcam sua produção.

Na imprensa, dialogando com donas de casa e trabalhadoras, entre dicas de beleza e propagandas de flanelas, Dinah não usava pseudônimo: na época, esconder o nome era um modo de poupar a face social das aparições na indústria cultural, considerada menos prestigiosa.

Com seu jeito direto, Dinah não se escondia. Ao contrário, era amante das formas narrativas mais populares: praticou da ficção científica ao romance histórico, da crônica ao livro infantil. Uma prosa com dramas cotidianos, reviravoltas, seres fantásticos e alienígenas. Talvez essa paixão por uma dicção mais acessível na literatura nos dê pistas para entender os motivos do esquecimento de sua obra.

COMBA MALINA: A MORAL NO TERRITÓRIO DO INSÓLITO

“No século XVIII se brincava, se diziam grandes verdades por intermédio dos animais. Hoje nós dizemos essas verdades usando marcianos e outros seres que nós mesmos sabemos que não podem existir” — assim, Dinah sugere que sua ficção científica esteja próxima à fábula, em conversa com David Dunbar, da Universidade do Arizona, em 1972.

Com uma observação aguda sobre a vida privada, a escritora desmonta engrenagens de processos coloniais, chegando a uma constante: a violência. Mais do que analisar tecnologias novas, sobrepõe camadas de estranhamento para sugerir questionamentos morais. A tecnologia é dúbia, veneno passível de enlouquecer e devastar, visão de quem analisa inovações a partir da periferia do capitalismo. Utiliza-se de referências conhecidas da ficção científica — Júlio Verne, H. G. Wells até Alfred Bester — para propor uma perspectiva sul-americana.

Publicado em 1969, durante os anos de chumbo da ditadura, o livro de contos Comba Malina vinha com o selo "Dinah Fantástica" na capa da editora Laudes. Contém oito contos, três constavam no livro Eles herdarão a Terra (1960). O título refere-se à personagem do primeiro conto, uma cigana do Rio de Janeiro no século XVIII, cujo encontro é possível somente por meio da viagem no tempo.

Apesar do exotismo problemático ao retratar a mulher cigana, o conto denuncia fatos reais — na historiografia, houve perseguições e deportações de ciganos: em 1718, D. João V afirma que lhe aprouve banir "vários ciganos – homens, mulheres e crianças – devido ao seu escandaloso procedimento neste reino", documento levantado por Lourival Andrade Júnior em Os ciganos e os processos de exclusão (Revista Brasileira de História, n° 66, 2013). Na ficção, Comba Malina inicialmente será solta, pois "o dono da bodega deu dinheiro aos guardas e tirou a mulher do Campo dos Ciganos", atual Praça da República (RJ). Depois será perseguida pelo populacho até ser morta queimada.

A história da cigana é narrada por um faxineiro trabalhador no século XX. Veio a conhecer um professor excêntrico, que consegue espiar o tempo passado por meio da música. O faxineiro, aos poucos, compreende o experimento, pois não consegue tirar a melodia de cabeça e, assim, conhecerá Comba Malina. Aqui se percebe a filiação democrática da escritora: quem irá se assenhorear da máquina do tempo é o faxineiro, com menos estudo formal que o professor, revelando a tensão sobre acesso à tecnologia nos países em desenvolvimento.

O Rio de Janeiro, "a grande Meca do Brasil" segundo Queiroz, aparecerá outras vezes em seu livro. No conto A universidade marciana, a cidade é destruída e, então, reconstruída com transporte silencioso, calando "alegres e rumorosos veículos de outrora", na lógica do progresso que apaga as sucessivas camadas de história do país.
Em perspectiva crítica ao neocolonialismo, no excepcional Eles herdarão a Terra, um irmão assiste, sem poder reagir, ao estupro da irmã por um alienígena — a violência é traduzida de forma avassaladora em certeza inexorável: "Em tudo pareciam planta — uma árvore que fosse metade seca, metade viva. O vulto dele pendia, imenso, encarquilhado, a cabeça entornada sobre os cabelos castanhos de Tuda pequenina".

Na técnica de elaborar uma pergunta moral, as camadas de estranhamento são sobrepostas até que se arme a fábula. Em Os possessos de Núbia, o protagonista Bruno abandona a mulher e dois filhos, escolhendo ser colono no planeta Núbia. Nesse admirável mundo novo, as pessoas dopam-se com fixêmio e o general responsável investe no controle orwelliano da mídia: somente notícias horríveis sobre a Terra para que ninguém queira regressar.

A constituição de Núbia é toda estranha: a psicóloga local medica pacientes para regredirem a oito anos de idade e, após a catarse, beija-os na boca. O planeta esquenta, contra previsões de que não haveria ondas de calor em mil anos (ou era notícia falsa?). No ápice, surgem ameaçadores povos originários do subterrâneo do planeta. A colônia humana, fechada em redoma, assiste aos outros seres morrerem torrados pelo sol, apocalipse semelhante ao de O problema dos três corpos, de Cixin Liu. Armada a fábula, a narrativa pergunta: podendo salvar um desses seres, o que Bruno fará?

Se a superfície das fábulas de Dinah traz a crítica moral, de forma mais profunda também se anunciam o passado colonial escravocrata e o genocídio indígena. Afinal, é com personagens imperfeitas, imersas em circunstâncias desfavoráveis, sem nenhum espaço para ações heroicas, que a escritora nos devolve um retrato realista e complexo do país. Um diálogo no território do absurdo, em que poucas coisas fazem sentido além da certeza da violência.

JOGOS DE FORÇAS NO SÉCULO XXI

A escritora participa do que se convencionou chamar de Primeira Onda da Ficção Científica Brasileira. Já era autora bem publicada. Em comparação, em 1960, data do seu Eles herdarão a Terra, André Carneiro (1922-2014) era ainda poeta e Fausto Cunha (1924-2004) iria estrear com As noites marcianas. Os mais experientes seriam Jeronymo Monteiro (1908-1970), com publicações desde 1933, e Rubens Scavone (1925-2007), com O homem que viu o disco voador, de 1958.

Embora não seja possível afirmar que foi a primeira mulher a publicar ficção científica no Brasil, seu pioneirismo é inegável. Antecedente notório é A rainha do ignoto (1899), da cearense Emília Freitas (1855-1908) uma utopia fantástica. Adalzira Bittencourt (1904-1976), Cassandra Rios (1932-2002), Lúcia Benedetti (1914-1998), Rachel de Queiroz (1910-2003), Ruth Bueno (1925-1985) e Zora Seljan (1918-2006) são mencionadas no livro Fantástico brasileiro: o insólito literário do Romantismo ao Fantasismo, de Bruno Matangrano e Enéias Tavares (2018).

Se há algo democrático na história da literatura brasileira é que tanto homens quanto mulheres são legados ao esquecimento, caso se dediquem ao insólito ficcional — fantasia, ficção científica, horror etc. "O principal produto da cultura brasileira é o esquecimento", sentencia Roberto Causo, apontando o "jogo de forças por trás da seleção efetiva realizada pelos atores do sistema literário" (posfácio a Fantástico brasileiro). A dicção mais acessível ou popular ainda é uma afronta à mentalidade elitista nacional, pois corporifica uma proposta por democratização da leitura em forma literária. Mas isso explica o desaparecimento da obra de Dinah?

Hoje, no raiar do século XXI, assistimos a uma mudança, antes impensável, nesse jogo de força. Florescem grupos de pesquisa, como o "Vertentes do insólito ficcional" (ANPOLL) e há tradução de obras críticas como Distopia, de Tom Moylan, por Ildney Cavalcanti e Felipe Benício, da Universidade Federal de Alagoas. No mercado, além da estabelecida Aleph, surgem editoras na última década, como Avec, Damme Blanche, Draco, Morro Branco, Monomito, Plutão; chegam nomes internacionais às prateleiras, como Ann Leckie, China Miéville, Cixin Liu, Jeff VanderMeer, N. K. Jemisin, Octavia Butler e Ted Chiang.

Se na história da ficção científica foram leitores apaixonados que fizeram os estudos vingarem até se consolidarem, esse ingrediente hoje não nos falta. Numa época em que eleições são disputadas em versões da verdade em aplicativos de celular, é preciso eleger, com sabedoria, as histórias que nos antecedem, quais perguntam sobre o uso de tecnologia e controle social, quais trazem as perguntas incômodas e sem respostas.

Há 50 anos, Dinah nos enviou uma carta comovida. Por ora, não há resposta senão o afeto em recebê-la. O destino é fugidio, inesperado e imenso.

 

[nota da edição]: O livro de contos Eles herdarão a Terra (1960), de Dinah Silveira de Queiroz, terá nova edição pela Plutão Livros ainda em 2019. Três contos desse livro integram o Comba Malina