AnalisesDesignEditorial2019 dez.19

 

 

É difícil olhar a produção e deixar de lado as lentes de um período turbulento, de poucas expectativas, muitos cortes e incertezas. Em momentos assim, tentar estranhezas, desvios, acabamentos rebuscados naquilo que é a primeira leitura (a imagem) é quase uma roleta russa. Explico: O que é mais fácil e rápido de julgar? Sobretudo por quem não é da área de design? Para onde apontam questões rasas como bonita ou feia, clareza ou confusão? Para a imagem, para a capa. Logo, muito do sucesso ou infelicidade pode ser atribuído a ela. Sei que vão dizer “mas não leiam o livro pela capa”. Bem, justo agora quando as imagens predominam e nenhuma delas é inocente? Então, designers, esse ano foi feito para os corajosos que puderam ser corajosos.

O ano de 2019 foi das ilustrações. De todas as técnicas possíveis. Cartuns, colagens, ilustrações digitais e claro, das tipografias fortes, grandes, sobre cores primárias ou sobre o preto e branco. Muito pouco uso das fotografias e dos formatos fora da convenção editorial. O que me faz pensar em dois pontos dentro de um rápido panorama:

>> As pequenas editoras, desde os anos 1970/1980, tentam explorar novos caminhos ao buscar poéticas inovadoras na relação texto-imagem. Daí tantas ilustrações, por facilitar e permitir maior fineza nessa relação. Foram dessas editoras boa parte do pontapé da exploração da estranheza.

>> Nos anos 1990/2000, a tecnologia gráfica e o tal pontapé das décadas anteriores trouxeram acabamentos diferenciados e uma espécie de “carta branca” para o design editorial. Foi o momento dos softwares de imagens, das tipografias fora do comum, da linguagem visual livre e impressa em grandes tiragens.

Parece que fomos empurrados para ficar no meio desses dois pontos. Orçamento enxuto, equipes enxutas, tudo enxuto e a obrigação do retorno ao que funciona, sem grandes riscos. Dentro dessa visão que apresentei, entendo o uso das ilustrações como um dos caminhos mais acertados para quem quer inovar – pode dar errado, como tudo, mas essa linguagem tem a premissa da liberdade. Em 2019, parece que todos quisemos isso. Mas quando todos querem, surge o alerta de uma textura unificada.


DESOBEDIÊNCIAS & OUTRAS ESTRATÉGIAS

É claro que temos os desobedientes, sempre. A gente desvia onde dá: se não no formato, ao menos na imagem, que tem forma, apesar de alguns estudiosos dizer que é imaterial. Sou da corrente de que a aparência tem forma e de que esta é uma questão da nossa pós-materialidade. Alguns exemplos:

AntonReiser analiseJaineCintra 2019

>> Começo abordando uma capa que caminhou pela aparência da melancolia: Anton Reiser: um romance psicológico (Carambaia) vem no formato comum (14,5 x 21,5 cm), mas numa capa dura com baixo-relevo e hot-stamping. Recursos caros do ponto de vista gráfico que são interessantes por trazerem o dilema do personagem. Seu uso não foi à toa. O Estúdio Arquivo, que fez o projeto gráfico do livro, trabalha com uma base cinza, vinda dos dias de muita pobreza do personagem, e crava na letras douradas o desejo por reconhecimento e dias melhores, apesar de tudo. Internamente, fica com Pedro Franz as ilustrações abstratas, que captam a essência da narrativa.

 

Desterro analiseJaineCintra

>> Saio de um livro que custa R$119,90 e sigo para um que custa R$ 17,50 para provar que é possível ser feliz com pouco, no sentido de recursos mínimos para impressão, sem sofisticação de materiais. Falo do Desterro (Macondo). O livro discute a cidade e os corpos femininos que são atravessados por ela. Este trecho da autora Camila Assad quase que obriga a ter uma ilustração na capa: “O desenho das ruas e das casas, das praças e dos templos, além de conter a experiência daqueles que os construíram, denota o seu mundo. Por isso as formas e tipologias arquitetônicas podem ser lidas e decifradas como se lê e se decifra um texto.” As ilustrações feitas por Anna Brandão são excelentes por representarem muito bem o desajuste, as inadequações que nós, mulheres, enfrentamos numa cidade construída por e para homens. Percebemos um casamento perfeito de narrativas. O livro teve tiragem de 500 exemplares, papel Pólen 80g/m2 e capa em Cartão 250g/m2. Simples o acabamento, rebuscado o tratamento visual. A Edições Macondo tem mostrado um olhar atento e feito tentativas acertadas.

>> As editoras de pequeno e médio porte continuam sendo um respiro. A Caleidoscópio lançou Vlado, que vale destacar por ser um ótimo exemplo de fazer muito com pouco (se pensarmos em recursos exíguos). O miolo impresso em duas cores (ciano e magenta) trouxe uma folga de investimento extra para a textura na capa, e também um ar de modernidade às xilogravuras internas. É difícil trabalhar com xilogravura e não parecer um cordel. Parecer um cordel não é um problema, mas foi inteligente a solução encontrada por Gabriela Araújo e Eduardo Souza para alcançar outras possibilidades.

UmaLiteraturaNosTropicos analiseJaineCintra

 

>> Da Cepe Editora veio um 3x4 recente do Brasil: Uma literatura nos trópicos, de Silviano Santiago, mostra na imagem da capa, feita por Fabio Seixo, o Rio de Janeiro e, por extensão, o país dos últimos tempos. Os papéis molhados parecem dizer “Corram, jogaram os documentos na água. Vão sumir os registros!”. Taquicardia.

>> Sei que foi bem comentada a capa de O jogo da Amarelinha (Companhia das Letras), mas não o menciono aqui por ela. Interessa-me a diagramação interna porque tenta facilitar a vida de quem resolve encarar um volume grande. A repetição dos capítulos nas margens da direita e da esquerda e as cores marcando cada seção foram ótimos recursos de ajuda para quem decide enfrentar as quase 600 páginas.

SobreOAutoritarismo analiseJaineCintra

>> Cito outra obra da Companhia das Letras, desta vez operando no campo da estranheza: Sobre o autoritarismo brasileiro. A obra que aparece na capa foi feita pela artista plástica Sônia Gomes e se chama Memória. Gomes é conhecida por costurar retalhos que encontra, ou que recebe, e transformá-los em esculturas. Destaco essa escolha porque texto e obra costuram memórias e pensam tensões e imposições. Numa olhada rápida vemos um varal colorido, então lemos o título e começam os questionamentos. Olhe mais de perto e veja o que está pendurado, uma não-forma, meio conhecida, meio desconhecida, de alguma maneira quase afetiva. Não é assim quando nos acostumamos aos abusos, por exemplo? Foi muito bom se apropriar de um discurso inicialmente externo às narrativas textuais de Lilia M. Schwarcz, autora do livro, e perceber a possibilidade de parceria.

AMorteEOMeteoro analiseJaineCintra

>> A Amazônia (que está quase acabando) acabou de vez no livro A morte e o meteoro (Todavia). Índios revolucionários, ancestralidade, ficção, violência: a capa impactante feita por Pedro Inoue traz uma figura sem rosto que derrama uma aquarela num corpo de mexicano/coronel/caçador de uma foto antiga.

ArevolucaodasPlantas analiseJaineCintra
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Em A revolução das plantas (Ubu), as ilustrações de Andrés Sandoval e os textos alinhados à esquerda mostram que o orgânico, a fluidez e o ritmo contribuem para reforçar a proposta do autor: tirar das plantas um modelo para pensar o futuro da tecnologia, da ecologia e dos sistemas políticos por meio da cooperação, da adaptação, sem centros de comando.

 

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Sinto agora que, diante das adversidades, sobretudo das econômicas, o design editorial requer ainda mais um esforço para se alcançar degraus mais altos. Nesse momento, há vários de nós fazendo o que temos que fazer na nossa mesa digital, no computador. Com as técnicas que funcionam hoje e que a gente sabe – colagem, ilustração vetorial, ilustração de Pinterest, cores fortes, textos em escalas subversivas etc. O ponto é: precisamos sair das técnicas que funcionam, as disponíveis, as de referência, e voltarmos pro campo das ideias. O problema está no descompasso entre tempo e ideia, pois o pensamento demora e nem sempre esse tempo é respeitado. E quando nos damos conta, acabou o ano. A década se aproxima do fim.

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