Artigo Dorotea Filipe Aca

 

 

Passei a infância e a adolescência no departamento de El Quiché, na Guatemala. Esse período da minha vida foi marcado por um conflito armado interno que eclodiu no início da década de 1960 e afetou a sociedade guatemalteca durante 36 anos. Esse conflito teve origem na profunda insatisfação de importantes setores da sociedade civil, que optaram por se organizar militar e/ou socialmente, transformando-se numa oposição social contra o caráter autoritário do Estado da Guatemala, com a intenção de extinguir a exploração da população rural, principalmente indígena.

Fenômenos como a injustiça e o racismo estrutural, o fechamento dos espaços públicos, o aprofundamento de medidas institucionais excludentes e antidemocráticas, assim como a resistência à promoção de reformas substanciais voltadas para a redução dos conflitos estruturais, figuram entre os fatores que determinaram a origem e a consequente eclosão do conflito.

Durante o período mais violento e sanguinário desse conflito (1978-1985), as operações militares concentraram-se em El Quiché, Huehuetenango, Chimaltenango, Alta e Baixa Verapaz, na Costa Sul e na capital. As vítimas foram principalmente a população maya e, em menor proporção, a ladina/mestiça. O exército da Guatemala definiu que pessoas descendentes de mayas eram guerrilheiras, em resposta à expansão do campo de operações da guerrilha e também por inspiração na Doutrina de Segurança Nacional, no seu conceito de inimigo interno. A consequência disso foi a agressão maciça e indiscriminada contra as comunidades mayas.

Foram mais de 626 comunidades de origem maya exterminadas, mais de 200 mil pessoas assassinadas, aproximadamente 900 mil pessoas refugiaram-se em outros países, milhares desapareceram e mais de 1 milhão se deslocaram pelo país. O departamento de El Quiché foi um dos mais afetados. O relatório da Comissão de Esclarecimento Histórico (CEH) indicou que, do total de vítimas identificadas, 83% era maya e 17%, mestiço. Ao mesmo tempo, apontou que o Estado, através do exército, cometeu 93% desses atos de barbárie durante o conflito.

O exército guatemalteco realizou operações de contrainsurgência entre as quais se destacam massacres comunitários, política de terra arrasada, estupros coletivos de mulheres, sequestros, desaparecimentos e execuções extrajudiciais para desarticular as bases sociais da insurgência, mas também para desestruturar os mecanismos de identidade das e dos mayas e a coesão social que facilitou a realização das ações comunitárias.

Quanto a minha atribuição étnica, por muitas razões uso o termo maya, em vez de “indígena”, para me identificar como descendente dos povos mayas. Entre as razões mais relevantes, cito as seguintes: a) é uma decisão político-pessoal para contrariar a ideia predominante no imaginário social guatemalteco, de que nós, os mayas, não existimos mais, ou então a ideia de que nossos ancestrais foram para Marte; b) para reafirmar minha consciência política em relação aos direitos étnicos diante do Estado e da sociedade da Guatemala.

Por outro lado, pela importância política que a reafirmação da consciência política em relação aos direitos étnicos perante o Estado e a sociedade guatemaltecos adquire, muitas mulheres e homens descendentes dos mayas assumem esse termo para sua identificação étnica. Porém, existe uma grande maioria que se identifica como indígena ou com o nome da aldeia a que pertence, por exemplo: mam, q’anjob’al, ixil, k’iché, q’eqchi’, tz’utujil etc. Para os fins deste texto, esclareço que farei uso das palavras maya ou “indígena” para me referir às e aos descendentes dos povos maya. Na Guatemala também vivem os povos garinagu (afrodescendentes) e xinca, menos numerosos que os mayas.

POR QUE NOMEAR MEU CORPO COMO TERRITÓRIO POLÍTICO? 

Em sintonia com a feminista dominicana Yuderkys Espinosa e a feminista chilena Margarita Pisano, assumo meu corpo como território político porque o entendo como histórico, e não biológico. E, consequentemente, assumo que ele foi nomeado e construído a partir de ideologias, discursos e ideias que justificaram sua opressão, exploração, submissão, alienação e desvalorização. A partir daí reconheço meu corpo como um território com história, memória e conhecimentos, tanto ancestrais quanto próprios, da minha história íntima.

Ao mesmo tempo, considero meu corpo o território político que neste espaço-tempo posso realmente habitar, a partir da minha escolha de (re)pensar-me e de construir uma história própria dos pontos de vista reflexivo, crítico e construtivo.

Esse processo de habitar meu corpo ganhou uma dimensão holística, uma vez que o faço, cada vez mais, a partir de uma perspectiva integral, entrelaçando as dimensões emocional, espiritual e racional. Não considero que existam hierarquias entre as três dimensões, todas são igualmente importantes para valorizar o sentido e a maneira como quero tocar a vida através deste corpo, como coloca Margarita Pisano, especialmente para renunciar aos mandatos impostos pelo sistema patriarcal, racista e heterossexual dominante na sociedade guatemalteca e no mundo.

Essa consciência holística do meu corpo é o resultado de um longo e profundo processo de introspecção que tenho vivido há vários anos, especialmente para entender a raiz das doenças que me afetaram, das quais citarei alguns exemplos neste artigo. Esse processo também me permitiu entender os medos que me paralisavam e identificar os mecanismos que me fortaleceram para correr atrás dos meus sonhos.

Entre os seis e os 18 anos de idade – período que coincide com os anos mais violentos do conflito armado interno –, uma alergia me brotou na pele e se expandiu de maneira insuportável e desconfortável praticamente por todo o meu corpo. Todos os médicos aos quais minha mãe e meu pai me levaram diagnosticaram a alergia como sendo produto da intolerância do meu corpo a alimentos irritantes e gordurosos, como café, pimenta, carne de porco etc., bem como aos raios de sol. Assim, decidiram suprimir da minha dieta diária inúmeros alimentos que eu adorava, como o café, e sugeriram cobrir meu corpo exageradamente para que os raios de sol não incidissem direto sobre ele.

Nesse meio-tempo, a ideia de estudar em vez de ter filhos e casar amadurecia dentro de mim. Durante os três anos de estudos básicos me senti pressionada e controlada pelas atitudes agressivas dos homens jovens para comigo, a fim de que eu aceitasse estabelecer relacionamentos “amorosos” com eles. Alguns inclusive me xingaram nas ruas porque os rejeitei.

Muitas colegas de escola engravidaram e foram forçadas a se casar. A ideia de interromper a gravidez nem sequer foi aventada. Fiquei muito triste ao ver seus sonhos de estudar atropelados por terem de se casar tão jovens. Além disso, eu percebia que quase nenhuma mulher casada era feliz. A maioria vivia sob o controle do marido, eram muitas as histórias de mulheres espancadas por ciúme, por não servirem a comida a tempo, porque os filhos adoeciam, porque os filhos se tornavam alcoólatras ou porque as filhas engravidavam. Enfim, muitas razões eram usadas como justificativa para socos e xingamentos.

Diante dessa realidade, desisti de ser mãe e do casamento. Parecia-me mais interessante e desafiante continuar estudando; assim, aos 15 anos consegui convencer minha mãe e meu pai a me ajudarem a migrar de Santa Cruz de El Quiché para a capital da Guatemala para cursar o ensino médio ou técnico.

Essa experiência na capital foi hostil, agressiva, excludente e discriminadora. No ônibus, na rua e na escola, muitas pessoas mestiças olhavam para mim com desprezo, me xingavam com expressões racistas, tinham olhares e atitudes agressivos. Na escola e na casa onde eu morava, as pessoas me tratavam com desconfiança, queriam saber se a alergia que afetava minha pele era contagiosa.

Frente à hostilidade racista que sofria diariamente, consegui me impor com muita convicção, pois entendia tais atitudes como produto da ignorância e da alienação. Porém, não conseguia lidar com o desânimo e a angústia causados pelas atitudes de discriminação, rejeição e desconfiança de minhas colegas de escola, então muito fortes em relação a mim, devido ao medo que tinham de contrair a alergia que me afetava. O fato de não encontrar uma cura para essa alergia tornava ainda mais pesada a solidão que eu sentia na capital, tão frívola, racista e violenta.

No entanto, aos 17 anos fui a uma dermatologista que, após uma revisão, elaborou uma longa lista de perguntas relacionadas a minha trajetória de vida e à da minha família. Ao finalizar a consulta, ela concluiu que as causas da alergia foram os traumas e rupturas que eu tinha vivido aos cinco anos, causados pelo conflito armado na Guatemala. A partir daí, ela sugeriu que eu buscasse apoio psicológico para processar as tristezas que faziam minha pele adoecer.

Saí da clínica com a grande interrogação sobre como acessar algum apoio psicológico se eu não dispunha de recursos financeiros para pagar por ele nem conhecia profissionais da área em quem confiar. Como estudava Educação, procurei minha professora de Psicologia e pedi sugestões de bibliografia de autoajuda emocional.

Durante os dois anos seguintes, me aproximei de uma grande variedade de textos das diferentes correntes psicológicas e, conforme ia devorando-os, comecei a tocar de forma consciente nas feridas que o conflito armado provocara em mim. Consegui identificar a dor instalada em minha alma, apalpei as tristezas silenciadas forçosamente em minha memória e as escrevi no papel.

Esse processo me conectou com outros tipos de violência que afetaram e continuaram afetando minha vida, violências não relacionadas ao conflito armado, mas às relações de poder – opressão no seio da família, no meu entorno em Santa Cruz de El Quiché e na capital, tudo intimamente relacionado com minha condição de mulher e maya.

À medida que aplicava os exercícios de cura emocional contidos nos livros, fui conseguindo desaguar minhas tristezas. Liberava a dor represada em meu corpo quando escrevia. Assim, entendi que podia lembrar-me dos traumas de migrações e separações familiares forçadas durante o conflito armado sem a carga trágica de dor se me conectasse com minha alegria e meu desejo de viver o presente. Principalmente para correr atrás dos objetivos e metas que me davam mais entusiasmo, mas sem perder a visão crítica com relação aos horrores do conflito armado.

Paralelamente aos exercícios de psicologia, procurei orientação de naturistas, que me sugeriram plantas para tratar as feridas da alergia em minha pele. Fiz amizade com uma professora do ensino médio que mostrava interesse e afeto por mim e com algumas colegas de escola que tinham gestos solidários. Foi com elas que consegui compartilhar essa parte da minha história, e elas também se abriram comigo. Essa troca de vida foi essencial para desafiarmos as limitações e desconfianças que identificávamos e, assim, conseguirmos realizar nossos projetos pessoais.

Descobri que cada uma das minhas amigas tinha sua própria história; ao mesmo tempo, reconheci que, como mulheres, nossas vidas tinham muito em comum. Por exemplo, percebi que quase todas nós éramos objeto de violência familiar por nos recusarmos a servir aos homens da casa; quase todas sofríamos a desvalorização cotidiana no trabalho; em casa nos chamavam de preguiçosas, apesar de sermos as responsáveis pela preparação da comida, por tomar conta dos irmãos mais novos, lavar as roupas dos outros irmãos e limpar a casa.

Embora muitas de nós vivêssemos escondendo o corpo o máximo possível para não sermos tocadas na rua e no ônibus, mesmo assim os homens nos assediavam e apalpavam nosso corpo à vontade. A maioria de nós foi educada para esconder qualquer evidência de menstruação, e quando ficávamos menstruadas sentíamos nojo e vergonha.

Depois das aulas, ficávamos conversado sobre nossa vida, e aos poucos fomos compartilhando nossas rebeldias e aprendendo umas com as outras, escutando e aconselhando. Fazíamos isso para perder o medo do assédio masculino, mas também para negociar projetos com nossos pais e curar feridas de amor, dos relacionamentos com namorados.

Ríamos e chorávamos conversando sobre as ofensas que sofríamos. Pelo menos, quando estávamos juntas, inventávamos um mundo acolhedor que nos motivava a continuar sonhando com uma vida melhor.

Aqueles quatro anos de convivência e troca com minhas amigas foram muito ricos para a busca de autocompreensão, assim como para me reencontrar e renunciar aos fatos do passado que impediam meu fortalecimento. Ter conseguido romper com alguns dos meus silêncios, que me deixavam doente, foi um passo fundamental. Comecei a confiar e compartilhar parte da minha vida.

Cerca de 13 anos depois que as alergias brotaram em minha pele, me conscientizei das tristezas e traumas que o conflito armado instalara em meu corpo, o que me ajudou muito a recuperar a saúde. Terminei o ensino médio disposta a encontrar trabalho remunerado e formal para seguir com os estudos na universidade e poder caminhar com independência econômica e emocional.

Aos 21 anos, com fortes dores no intestino grosso e a gripe crônica que me atacava todos os meses, decidi consultar um clínico geral, pois a medicina natural não me trouxera resultados. Na consulta, tive que responder a uma série de perguntas sobre minha vida. O médico perguntou sobre a relação com minha mãe e meu pai, com quais irmãos eu me afinava e de quais discordava, e por quê. Ele me perguntou sobre a relação com minhas irmãs, sobre as tarefas e responsabilidades entre as mulheres e os homens da minha casa.

Perguntou sobre minhas refeições, o que e como comia, sobre meu trabalho e meus colegas, sobre o lugar onde morava, uma infinidade de dados sobre minha vida que eu não entendia para que serviriam ao médico no sentido de entender minhas doenças físicas. Fiquei surpresa ao ouvir que meus males físicos estavam intimamente relacionados com a forma como eu processava minhas emoções – tristeza, raiva, impotência, medo, incerteza.

Ele indicou que eu chorasse por tudo pelo que não tinha chorado desde que nasci. Também propôs um exercício: observar e sentir a reação do meu corpo à água na hora de tomar banho, uma maneira de dedicar tempo a mim mesma, de aprender a sentir e ouvir meu corpo.

 

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Este texto faz parte do livro Meu corpo é um território político, disponível no site da Zazie Edições (http://www.zazie.com.br/). O download é gratuito.