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Para o amigo Schneider

 

Relembro um romance publicado em 1987 por Christa Wolf, escritora alemã. Foi escrito no calor da hora. A ação se passa no dia 26 de abril de 1986 e a protagonista vive numa cidade interiorana da Alemanha oriental. Sua casa não fica muito distante de Chernobyl, localizada, por sua vez, no norte da Ucrânia, perto da fronteira com a Bielorrússia. O romance se intitula: Acidente, notícias do dia.

O romance de Christa Wolf coloca de maneira dramática a ambiguidade como a figura de pensamento que, nos nossos dias, açambarca e explica a relação entre o ser humano e a ciência. Entre os desastres da ciência e as artes. Diante da onipresença das conquistas científicas, são as sensações, sentimentos e emoções ambíguos que alavancam duas atitudes sócio-políticas extremas e opostas. A culpa da destruição do Mundo é de responsabilidade da ciência. A redenção do mundo se dará pela salvação da Humanidade pela ciência. O romance de Christa Wolf não deixa a tragédia da ambivalência – o acidente em Chernobyl − congelar-se nas posturas excludentes e extremas. A ciência é destruidora e redentora. A preposição "e" alerta os leitores para equívocos maniqueístas.

Situações dramáticas concretas, aparentemente excludentes se comunicam no interior duma redoma celeste artificial, consequência do vazamento atômico causado pelo desastre na usina nuclear de Chernobyl, em abril de 1986. Somos seres fragilizados pelas circunstâncias posteriores aos desastres técnico-científicos. Morte e vida humana passam a se comunicar ininterruptamente, assim como desespero e esperança, também humanos.

A história narrada pelo romance é simples e vale a pena ser resumida. Na Alemanha oriental, o rádio e a televisão passam sucessivas informações à romancista que, pelas manhãs, se debruça sobre as flores e as hortaliças plantadas com as próprias mãos no quintal de casa. As notícias dizem respeito ao acidente que acaba de ocorrer na usina nuclear de Chernobyl. A escritora cuida das plantinhas e, levantando os olhos, se dá conta de que ela, debaixo das nuvens negras e ameaçadoras que tomam conta do céu, é tão frágil quanto as hortaliças e as flores. Uma chuva ácida pode despencar a qualquer momento.

Desde as primeiras horas do dia, a escritora tem também os ouvidos presos ao tinir do telefone. Aguarda notícias dos familiares. Seu irmão está sendo operado de tumor cerebral em Berlim. Graças à sofisticada aparelhagem técnico-científica do hospital, ele talvez sobreviva. Que na bem equipada sala de cirurgia não se repita o inesperado e temível acidente de Chernobyl.

A contaminação mortífera dos moradores da parte norte do continente europeu pode estar em vias de acontecer, dizem a rádio e a televisão. A qualquer momento, o tinir da campainha do telefone pode trazer a notícia da recuperação cirúrgica do irmão. Só esse fato pode iluminar de alegria a manhã por demais tristonha da escritora e da humanidade. Os ansiosos personagens do romance estão todo o tempo conectados e à mercê das modernas técnicas da comunicação.

Se me fosse franqueada, em parênteses, uma palavra religiosa, concluiria que, na atualidade da pandemia, a ciência é o Deus único, que circula de maneira culpada e redentora. A divindade leiga tanto aponta para os vazamentos homicidas de material atômico, quanto para os sofisticados e vitais instrumentos médico-cirúrgicos. Alimenta, ainda, toda a parafernália comunicacional que está à disposição do homem, seja nos cafundós dos judas, seja nas metrópoles.
Toda e qualquer revolução tecnológica moderna encontra sua matriz de possibilidades infinitas na razão de ser da moderna pesquisa científica. A revolução tecnológica é planetária e, tudo indica, será irreversível. Ambiguamente.

Karl Marx deu o sinal de alerta. Lembrou-nos: já não existe mais uma natureza em si. E ironizava com elegância: talvez exista nalgum paraíso perdido da Polinésia. Antes dele, a ciência já tinha perdido a inocência que poderia redimi-la. Tornou-se filosoficamente culpada com René Descartes. O conhecimento técnico-científico pode e deve ser instrumentalizado pelo homem, transformando-se em manifestação de poder, seja sobre ela ou, acrescenta Marx, sobre os outros homens.

A circulação do saber técnico-científico deve se fazer acompanhar da circulação de outro saber − o das ciências humanas e sociais. Ele pode fornecer ao cidadão as ferramentas de avaliação crítica das vantagens e desvantagens do progresso técnico-científico. Fornece argumentos para se avaliar quando o progresso é forma mentirosa ou dissimulada de dominação de multidões por poucos.

O romance de Christa Wolf alerta para o equívoco que conduz ao maniqueísmo. Isolar um só dos polos da ambiguidade que Chernobyl dramatiza. Ao fazer de conta que quer trazer benefícios para a humanidade, qualquer nação que controle a pesquisa e a indústria atômica quer, na verdade, é entrar em competição de controle da energia do planeta e, para tal, não se constrange se estiver a destruir a natureza e a humanidade. Os horrores causados pelo acidente em Chernobyl são responsáveis por atitude fóbica do ser humano. Personalizam nosso medo pânico da ciência. Medo do poder destrutor da máquina se e quando em mãos de líderes políticos mal-intencionados, verdadeiros genocidas.

Em situações-limites, a alta tecnologia pode ser incontrolável pelo homem. Vejam-se alguns filmes e leiam romances e poemas, em especial quando relatam experiências de guerra entre nações. Leia-se o hoje clássico Catch 22 (1961), de Joseph Heller. Assista-se ao filme Hiroshima, mon amour (1959), de Alain Resnais. Leia-se o poema A bomba, do nosso Drummond.

Ao analisar o “mal-estar da cultura”, Sigmund Freud afirmou que a civilização produz a anti-civilização e a reforça progressivamente. Como comenta Theodor Adorno em outro, diferente e semelhante, contexto: “Se no próprio princípio da civilização está implícita a barbárie, então repeti-la tem algo de desesperador”.

Dos gases usados na Primeira Grande Guerra aos campos de concentração de Auschwitz, seguindo-se da explosão da bomba atômica em Hiroshima e chegando ao grave acidente de Chernobyl, são tão fortes as marcas civilizacionais da destruição operada pelo uso inescrupuloso do conhecimento científico, que o pavor do ser humano diante da morte sem-sentido e inesperada, absurda, guiará nossos futuros passos na luta em favor da Vida no planeta Terra.

A sequência inicial do filme Hiroshima, mon amour repete que a verdade sobre a bomba atômica chega à consciência humana pelo olhar obsessivo dos mínimos detalhes das “atualidades” filmadas pela câmara dos jornalistas. Os autores do filme exigem do espectador mais do que vivência, reflexão ou compaixão. Exigem o olhar obsessivo. Exigem mais do que a introjeção de sentimentos culpados. Exigem a contemplação diuturna das imagens.

A indiferença, nos diz a boa literatura sobre os tempos modernos, é mais monstruosa que o esquecimento. Como escreveu Adorno em páginas luminosas sobre o genocídio nazista: “Para a educação, a exigência que Auschiwtz não se repita é primordial. Precede de tal modo qualquer outras [exigências] que, creio, não precisa ser justificada. [...] Justificá-la teria algo de monstruoso em face da monstruosidade que ocorreu”.

Como não lembrar da espécie de ladainha que termina o belíssimo poema Os homens ocos, de T. S. Eliot. Leiamos: “Assim expira o mundo / Assim expira o mundo / Assim expira o mundo / Não como uma explosão, mas com um suspiro” (tradução de Ivan Junqueira).

No entanto, é preciso evitar o maniqueísmo. A figura da ambiguidade, anunciada e explorada por Christa Wolf, não deve sucumbir sob o efeito do apocalipse maniqueísta. Internado em hospital de Berlim, o irmão da escritora aguarda a ressurreição graças ao uso por cirurgião de aparelhos ultrassofisticados na extração de tumor cerebral. No século XX, nem sempre foi razão para a imaginação artística trabalhar cenários do fim absurdo do mundo. O século passado se inicia pela crença nos valores altamente civilizatórios da ciência. Traria ela a sonhada utopia para a humanidade?

Em países tropicais como o Brasil, como esquecer o papel desempenhado pelos médicos sanitaristas em campanhas populares, cuja melhor tradução está nos livros de Monteiro Lobato, que denunciam o estado miserável em que vive o caboclo brasileiro, o Jeca Tatu. Como esquecer as pesquisas feitas em laboratórios rudimentares por cientistas como Carlos Chagas. Como esquecer a revolução causada pela descoberta da penicilina e de muitíssimas vacinas.

Nos primórdios do século XX, a ciência é condição para o otimismo das classes menos favorecidas, que encontram nos sanitaristas, melhores condições de higiene, e nas fábricas modernas, o trabalho assalariado que, devidamente instrumentalizado por partidos políticos progressistas, pode conduzir os marginalizados da pobreza à liberação da exploração capitalista.

Pertencente à Escola de Frankfurt, Walter Benjamin vai dar direitos de cidadania ao papel do progresso técnico no campo das artes. Leia-se o célebre e complexo ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Chamo a atenção para a diferença que estabelece entre a reprodução manual e a reprodução técnica. A foto, afirma ele, pode selecionar detalhes do original que não são acessíveis ao olho humano. De forma contundente exemplifica: “A catedral abandona seu lugar para instalar-se no estúdio de um amador; o coro, executado numa sala ou ao ar livre, pode ser ouvido num quarto”. A obra de arte perde sua “aura”, para ganhar a possibilidade de circular autonomamente por todo o planeta.

Nesse sentido, o filósofo alemão pôde concluir que “a arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais se orientar em função da sua reprodutibilidade e, portanto, quanto menos colocar em seu centro a obra original”. A obra de arte perderá o “valor de culto” para ser reconhecida pelo “valor de exposição”. O valor de culto, mantido pelos antigos rituais sagrados, obrigava as obras a se manter secretas.

Chegado é o momento em que este escritor pede direito à palavra. Pede direito à palavra para contar-lhes uma fábula, que deverá fazer pendant com a fábula de Christa Wolf.

Em determinado momento da sua vida, Freud falou das três feridas narcísicas que marcam a história do homem ocidental. A primeira foi imposta por Copérnico quando retirou a Terra do centro do sistema planetário. A segunda foi infligida por Darwin quando disse que o homem descendia do macaco. E a terceira é de responsabilidade do próprio Freud. Afirma que a consciência repousa no inconsciente.

Estamos próximos de uma quarta e decisiva ferida narcísica.

Ameaçada de morte prematura, a humanidade está se preparando para sair do palco em que protagoniza o papel de único dominador da natureza. Está para sair do palco a fim de entregar à natureza o direito exclusivo de atuação em cena. A quarta-feira de cinzas da história da humanidade na Terra será bem outra, não tenhamos ilusão.

Só em cena, moribunda e exaltada, a Natureza, com lances e gestos de grande dama ofendida, se dirige à Humanidade, agora sua espectadora. Diz-lhe que abomina o trabalho que a destrói. Faz-lhe uma súplica: quer abandonar a condição de objeto privilegiado das suas boas e más intenções. Mas sua cura − se há condições para a cura da Natureza na presente situação − só virá no momento em que o ser humano dela se retirar. Quando? Nunca. Ou amanhã. De uma maneira ou de outra, a Humanidade, como o entendemos, terá então desaparecido. Vale dizer, terá sofrido uma quarta e definitiva ferida narcísica.