Capa Interna 3 Eduardo Azeredo maio2020

 

Os vários papéis profissionais assumidos por Florestan Fernandes colocam um desafio a ser superado quando se fala de sua obra. São muitas as facetas que apresenta: o docente, o orientador, o pesquisador, o organizador de cursos, o homem comprometido com o Brasil que não esqueceu suas origens sociais, o político. Os quatro primeiros, que estão ligados principalmente às suas atividades na Universidade de São Paulo (USP), levaram a que lhe fosse atribuído perfil autoritário, homem brusco, professor intransigente, cientista duro, traços simbolizados pelo uso do avental branco. Tal visão ocultou muitos aspectos que compunham o exercício desses papéis os quais alunos e professores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo conheceram quando lá ministrou aulas depois de seu afastamento em 1969 pelo AI-5 de 13 de dezembro de 1968 – aliás, ano que não acabou, pois várias medidas contidas nesse pernicioso ato institucional são lembradas com saudade por nossos governantes. Generoso e amável, Florestan acolhia alunos e colegas, respeitava a opinião dos outros, colaborava no desenvolvimento do curso, sabia ouvir, opinava admitindo diferença de ideias, lembrava a importância do compromisso e da disciplina no trabalho intelectual. 

“Os de baixo”, assim denominava seu grupo de origem, permitiram conhecer um Brasil muitas vezes ignorado pelos analistas, que foi o fundamento de seu compromisso com o país, como cidadão e sociólogo. Esse comprometimento traduziu-se num forte empenho por uma formação rigorosa, pela dedicação ampla à leitura e à pesquisa. Não se contentou com um engajamento individual, tornou-o coletivo via formação de alunos e colaboradores nas pesquisas. A proposta de coletivização definiu sua visão sobre a Sociologia e os caminhos a percorrer. Destaco alguns pontos: indagou como fazer Sociologia no Brasil; estudou com afinco as contribuições teóricas internacionais avaliando a aplicação ou não à nossa realidade; dedicou-se a rigorosa pesquisa empírica e histórica para compreender a sociedade brasileira; aceitou que, diante de aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos específicos, o sociólogo brasileiro deve assumir a tarefa de repensar a teoria. Tendo esses elementos como base, empenhou-se a que o curso de Ciências Sociais da USP viesse a implementar essa direção no desenvolvimento das disciplinas ministradas.

O conteúdo temático dessas funções está na defesa do princípio emancipatório, que supõe a presença de direitos iguais para o conjunto da população e de igualdade de condições para exercê-los. Por isso, a pergunta: porque no Brasil assistimos à permanência de uma sociedade marcada pela pobreza, pela desigualdade, pela exclusão e caracterizada pela concentração de riqueza e má distribuição de bens? Florestan parte de constatação que é visível a todos, mas, de modo original em relação aos estudos anteriores, busca as razões da reprodução dessa situação ao longo da história nacional. Nessa direção instaura um diálogo crítico com a interpretação de autores brasileiros que respeita – refere-se a Alberto Torres, Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, entre outros: eles estariam centrados numa microssociologia que é extremamente importante, mas que não resiste como explicação se não tiver suporte na macrossociologia. Em outros termos, enfatizou a riqueza do estudo dos fatos cotidianos, dos costumes e dos procedimentos locais, mas analisou-os articuladamente à estrutura social e à agência política. Assim, diluiu as fronteiras internas entre as diversas ciências sociais utilizando seus elementos analíticos para estabelecer a sociologia a ser desenvolvida no Brasil. Tanto na pesquisa como na docência, propôs-se a criar conhecimento de forma original e com independência. No cenário específico brasileiro, diante de um projeto de desenvolvimento e de manutenção da dependência aos países centrais, buscou elaborar uma interpretação crítica, admitindo que a experiência teórica anterior, nacional e internacional poderia fornecer elementos positivos à análise, mas somente se adequada à realidade brasileira. Como lembrou Mariza Peirano, em entrevista à revista Sociologia & Antropologia, não visou elaborar uma Sociologia brasileira, mas fazer Sociologia no Brasil.

É como se Florestan percebesse a sociedade como um prisma e diante dele o sociólogo visse a refração da luz, pois a visão depende sempre do lugar em que estamos. Se no Brasil temos uma situação de desenvolvimento do capitalismo e modernização ao lado de reprodução da pobreza e exclusão, estamos diante de ângulos sociais diferentes daqueles com que se deparam os analistas das sociedades centrais. Acentuo o termo reprodução, e não simplesmente a presença daqueles problemas, pois a expressão preserva o aspecto do movimento, do processo social. Essa particularidade aponta que não existem respostas prontas a serem aplicadas indiscriminadamente em todas as sociedades. Temos que ousar pensar para nos atrevermos a conhecer, mesmo que a realidade nos assombre.

Em passagens do livro Revolução burguesa no Brasil na sua edição de 1976, mostra que essa ousadia permite indagar sobre os limites impostos para refletir sobre “o que é uma sociedade de classes na periferia do capitalismo”. Ou reivindicar liberdade de “procurar os tempos internos de uma modernidade tão peculiar, que se desata de fora para dentro e dá origem a uma orgia institucional”. Ainda, colocar-se em perspectiva oposta às “fórmulas da ciência política sistemática, à direita, ou do estruturalismo marxista, à esquerda”.

A temática da mudança social em seus vários aspectos ganha centralidade em sua análise desde o final dos anos 1950, evidentemente porque transformações de grande monta ocorrem na América Latina e num quadro internacional amplo. Nessa direção, pergunta sobre o sentido das mesmas e seu papel na integração do sistema social. Adverte os sociólogos a responderem por que, nos países periféricos, os setores dominantes fazem tanta questão de deter o controle das mudanças sociais. Nos vários textos em que aborda essa questão, adequados aos diferentes momentos da conjuntura sociopolítica brasileira, Florestan Fernandes fala sobre a relação existente entre a direção do processo de mudança e o poder político. Trata-se de um monitoramento sobre quem se vale das vantagens advindas dessas alterações. Ao longo da história brasileira, apontou acordos políticos firmados tendo como objetivo impedir que as opções pela mudança não alterassem os interesses das camadas tradicionalmente acostumadas à estabilidade e à ocultação dos problemas sociais.

Florestan Fernandes preocupou-se em estudar as margens do sistema capitalista representadas pelos países dependentes, mas, principalmente pelas camadas sociais que se apresentam como os elos mais fracos na constituição da sociedade: negros, indígenas, pobres, populações pauperizadas. Analisou, ainda, as condições assimétricas de competição a que esses grupos são submetidos e que os estigmatizam como perdedores. Trata-se de uma análise sobre os limites da democracia no Brasil e pode ser alinhada à atualidade do debate internacional que põe em questão a concepção formal de justiça e de igualdade de condições sociais, políticas e culturais. Hoje se incorporam novos temas, como gênero, imigrantes, refugiados, perseguidos políticos, que podem ser estudados na mesma direção teórico-metodológica desse sociólogo.

Na sociedade brasileira, a atualidade da questão salta à vista: basta constatar o incômodo provocado pelas políticas sociais que “ameaçam” promover uma abertura sociocultural para os historicamente desfavorecidos, como por exemplo, as cotas raciais nas universidades, o Bolsa Família, a criminalização da discriminação racial. Tais reações e seu resultado político escancaram as oposições presentes na definição do sentido de democracia e as possibilidades de seu exercício. Lembro que a sociologia proposta por Florestan, e que se difundiu pela rede de seus alunos, tem como objetivo um aprendizado social amplo. Objetiva um diagnóstico transparente da sociedade, não só enfocando os problemas existentes, mas buscando as raízes que os fazem germinar. Tal aprendizado permite a conscientização sobre essas questões e concorre para promover o apoio da população às políticas sociais direcionadas a solucioná-las. Assume o papel de suporte à legitimação democrática.

O AI-5, que se configurou como uma das intervenções mais autoritárias conhecidas pela sociedade brasileira, ao afastar Florestan Fernandes e seu grupo de cientistas sociais dos cursos na USP através de forçada aposentadoria, rompeu o curso de uma proposta de Sociologia que colocava indagações essenciais sobre a natureza da desigualdade na repartição de bens econômicos, sociais, culturais e de agência política presente na sociedade brasileira. A liberdade de ousar pensar em certa direção foi tolhida. Pergunto: se esse caminho não fosse interrompido e houvesse continuidade daquele aprendizado social, não teriam sido eliminados em grande parte os comportamentos discriminatórios, a aceitação tácita do autoritarismo, o exercício da violência, o descrédito em relação à educação e à cultura, o desrespeito em relação ao outro?

Muitos cientistas sociais debruçaram-se sobre os problemas brasileiros a partir de várias perspectivas, umas mais, outras menos eficazes, para ajudar a refletir sobre o momento presente. Inegavelmente, os pontos de partida da análise de Florestan Fernandes permitem um diálogo válido com problemas debatidos hoje e com as propostas teóricas contemporâneas. É certo que a Sociologia cá e lá fora continua a incomodar, pois mostra desconforto com a desigualdade de gênero, de condições de existência, de oportunidades educacionais e profissionais, de acesso à saúde, a benefícios econômicos e sociais, com a prevalência de interesses de poucos em detrimento de muitíssimos. O sociólogo não pode se sentir tranquilo diante desses problemas. Florestan não se sentia.