Ensaio Karen Blixen Eduardo Azeredo julho2020

 

Como seria o mundo de onde fossem extintas as histórias, ficções, mitos, o desdobrar das fábulas que retornam sempre iguais e diferentes? Como seria o mundo onde só existisse a história dos historiadores, mas não mais a memória crispada e vivificada pelos contos e romances, a memória ancestral que atua sobre cada um e que permitiu a um poeta como Yehuda Amichai escrever: “Todas as histórias da Bíblia aconteceram conosco quando estivemos juntos”? Como os habitantes da Alphaville de Godard, aos humanos desse mundo, privados de educação sentimental, faltaria vocabulário afetivo. E todos os livros escritos se limitariam a dar conta do que existiu, do que existe ou do que virá a existir, e tudo seria registro e descrição, a ficção desapareceria, e com ela o leitor que somos. Antonio Candido, ao falar do papel formativo da literatura, toma a imaginação literária como condição primária para uma atividade espiritual humana. Para Candido, a função da literatura não seria educativa nem didática ou catequista, mas humanizadora num sentido mais vasto e menos funcionalista do que a escola tenta fazer crer. O que a literatura tem de próprio é a capacidade de “confirmar a humanidade do homem”. Em vez de edificar e ensinar, a literatura seria uma “força indiscriminada de iniciação na vida”, uma força que “humaniza em sentido profundo, porque faz viver”.

Toda a literatura da escritora dinamarquesa Isak Dinesen — pseudônimo de Karen Blixen (1885–1962) — é uma afirmação tenaz do narrar histórias e de seu encanto desestabilizador. No conto A história imortal, ela revela precisamente os modos de pensar, sentir e as atitudes de um homem sem contato algum com a experiência literária, para quem a fabulação era algo inconcebível e totalmente tolo, porque irreal. Por essa via negativa, criando um personagem que só se relaciona com o mundo através da denotação e do registro concreto, o conto mostra a importância da literatura como fundamento cultural do humano. Mas o personagem Mister Clay, ao se aproximar da morte, é tomado de inédita curiosidade e pergunta a seu fiel empregado, Elishama, se existem livros que não sejam arquivos de contabilidade como os que este costuma ler para ele, e, caso existam, pede que lhe diga como são. Elishama recita então um trecho do profeta Isaías. Mister Clay pergunta se a profecia de Isaías havia se realizado e, ao saber que não, irrita-se profundamente. Indignado, contrapõe à falsidade de Isaías o relato de um acontecimento que lhe foi contado por um marinheiro. A certa altura do relato, Elishama interrompe o patrão e pede para continuar a contar a história. Prossegue perfeitamente a partir de onde Mister Clay interrompera a narrativa, para espanto do velho homem. Ao concluir, Elishama diz que aquele é um velho causo de marinheiros que todos conhecem e narram uns aos outros, mas que a história nunca aconteceu de fato. Novamente indignado, Mister Clay sentencia:

Se essa história nunca aconteceu antes, vou fazer com que aconteça agora. Não gosto de fingimento, não gosto de profecias. É absurdo e imoral ocupar-se de coisas irreais. Gosto de fatos. Vou transformar esse artigo de profecia em fato sólido. [nota 1]

Para tornar fato a narrativa, ele precisa fazer com que ela aconteça pelo menos uma vez. E a história é sobre um marinheiro que, ao desembarcar, é interpelado na rua por um senhor rico que propõe contratá-lo para passar uma noite com a esposa. O marinheiro alimenta-se bem, dorme com a mulher e ainda sai com um bom dinheiro da aventura. Assim, Mister Clay contrata um jovem marinheiro para fazer o papel do protagonista do relato, uma senhora em dificuldades econômicas para interpretar a esposa, enquanto ele mesmo se ocuparia do papel do rico mercador.

Mas o plano de Mister Clay para tornar a ficção realidade falha. Depois de viver a história ele pretendia poder ouvi-la como um conto real, entretanto, depois de viver a história, o marinheiro real que dela participa se nega a contá-la porque o encontro com a mulher foi tão excepcional e assombroso que ele não consegue nem quer de modo algum ver semelhança entre o que viveu naquela noite e a história que todos os marinheiros transmitem uns aos outros. Blixen mostra aí que a verdade da literatura não está ancorada numa verdade prévia ou exterior ao narrado, mas depende dessa impossível coincidência entre o vivido e o narrado; e, ao mesmo tempo, para a autora, a vida que vale a pena é aquela que pode ser vivida como uma história.

Nos contos de Blixen é bastante comum a presença de personagens que ouvem histórias e, por vezes atônitos, percebem que o que estão a ouvir é a sua própria história devolvida como lenda. Esse trânsito entre a narrativa que circula publicamente e a escuta individual é fonte de tensão em seus enredos. Porque o contar histórias é sempre um ato em que algo é posto em risco, um ato de revelação, mas de uma revelação mais profunda que a de um acontecimento pessoal circunscrito, são verdades estranhas porque cruzam continentes e épocas, ecoam a célebre frase da autora: “Eu tenho três mil anos”. Essa capacidade narrativa de conjurar as formas convencionais do tempo e da verdade são marcas de sua obra, na qual, como escreveu Hannah Arendt, “o contar histórias revela o sentido sem cometer o erro de defini-lo”. O sentido sempre aberto à escuta de cada um, é isso que a literatura oferece, e por isso sua extinção significaria um mundo insuportável, pois que reduzido à assimbolia, um mundo imediato, sem ressonância, sem eco, sem leitura possível.

As Anedotas do destino respondem ousadamente à própria ideia de destino, sem negá-lo. O destino existe na repetição, na repetição diferencial das histórias. Seus personagens não são heróis trágicos, que ignoram seu destino e se precipitam sem saber numa ação inevitável; seus personagens são conduzidos pelo narrar como marionetes manejadas por seus títeres, eles recolocam em circulação uma espécie de sonho imóvel, poderoso, que desata as contingências do presente e revela uma temporalidade mais ampla e irrecusável. As histórias de certo modo também salvaram Blixen do seu destino e do seu amor perdido — sobre esses temas escreveu Hannah Arendt ao incluir a autora dinamarquesa entre o conjunto de Homens em tempos sombrios.

Se tradicionalmente vemos o narrador como aquele que sobrevive para contar e o poeta como aquele que escreve para sobreviver, em Blixen essa distinção se perde. E não porque recupera a narrativa épica do poeta antigo, mas porque, na determinação do seu estilo preciso, límpido e sugestivo, a poesia sibilina encontra a transparência profética da prosa que anuncia seus mecanismos sem perder o encanto. Blixen criou desse modo estruturas narrativas vertiginosas que tematizam a relação entre a humanidade e suas histórias, explorando a forma encantatória da ficção como algo que, diferente da interpretação e da explicação, plasma o sentido em experiência reconhecível. Nas Sete narrativas góticas — e o aspecto gótico é chave de acesso para o passado disfórico dos românticos —, uma espécie de passado medieval de uma modernidade que nunca se realiza a não ser como pesadelo tem a ver, claro, também com uma desconfiança em relação à temporalidade progressiva e evolutiva.

A história da escritora é a história das vidas múltiplas de uma mulher que nasceu Karen Dinesen, em 1885, numa família burguesa da Dinamarca, ao casar-se com Bror von Blixen-Fineche tornou-se baronesa e fazendeira de café no Quênia, e só em 1934 surgiu como a escritora Isak Dinesen, estreando nos Estados Unidos com o livro Seven gothic tales. É interessante observar que Blixen só começou a escrever depois da falência de sua fazenda africana, depois de uma luta frustrada de catorze anos. Em 1931, o casamento com Bror Blixen tinha acabado, deixando-a apenas com uma sífilis, lembrança do marido infiel. Karen Blixen tinha perdido o homem que amou, Denys Finch-Hatton, num acidente de avião e estava de volta à casa da família em Rungstedlund, na Dinamarca, sem contar com meios econômicos próprios. Iniciar a carreira literária na idade de 47 anos era, assim, também um modo de lidar com uma situação econômica precária. E se, de uma perspectiva editorial contemporânea, isso parece bastante irracional, era-o ainda mais nos anos 1930, em plena ressaca da crise econômica mundial. Quando em 1932 ela começou a enviar o manuscrito inicial escrito em inglês para as editoras, as respostas foram todas negativas. Talvez isso não fosse nada estranho, tratando-se da antologia de contos de uma escritora estrangeira desconhecida e debutante. Foi somente com a mediação da escritora Dorothy Canfield que ela conseguiu fazer chegar o manuscrito a Robert Haas, da editora norte-americana Harrison Smith and Robert Haas. Finalmente, depois de várias respostas negativas, os editores mudaram de ideia e aceitaram publicá-la, com a condição de que Blixen não recebesse adiantamentos e só houvesse algum pagamento depois da venda de “a few thousand copies”.

Curiosamente, Karen Blixen insistiu no pseudônimo masculino Isak Dinesen, apesar do conselho contrário de Haas, que via ali mais um obstáculo para o sucesso do livro. Depois da recepção positiva dos leitores norte-americanos, sua verdadeira identidade acabou revelada, mas mesmo assim o pseudônimo acabou se fixando nos Estados Unidos, enquanto na Europa ela era traduzida e editada com o próprio nome. Assumir um pseudônimo masculino não foi uma necessidade do ponto de vista editorial. É mais provável que fizesse parte de uma reinvenção consciente da própria vida, da biografia e do seu destino através da arte de narrar. O sobrenome Dinesen vinha de seu pai, e o nome de batismo, o primeiro nome, Isak, de inspiração bíblica, do "Velho Testamento". Isak em hebraico significa “gargalhada”, e se refere à reação da esposa de Abraão, Sara, quando escuta a predição trazida pelos anjos ao marido, de que ela teria um outro filho. Sara tinha noventa anos, e talvez fosse motivo para rir o fato de que Blixen tentava parir um livro em idade avançada para iniciar uma nova carreira.

Nos contos de Blixen entendemos que somos todos marionetes, no sentido de termos a obrigação de dar espírito e forma aos papéis predeterminados por um enredo dificilmente percebido. Quer dizer, temos, como personagens, por um lado, a tarefa de interpretar a ordem e a lógica de que formamos parte no mundo e, de outro lado, precisamos nos engajar de modo esteticamente ou artisticamente adequado nessa relação. Sobre isso nos fala a bruxa na peça “A Vingança da Verdade” descrita dentro do conto Os caminhos entorno de Pisa:

A verdade, meus filhos, é que nós estamos, todos nós, a representar uma comédia de marionetes. O que é importante; o mais importante de tudo numa comédia de marionetes é manter a clareza das ideias do autor. É essa a verdadeira felicidade; e eu, que finalmente entrei numa peça de marionetes, desejo nunca mais sair dela. E vós, atores meus irmãos, mantendo a clareza das ideias do autor. Ah, levai-as até as últimas consequências. [nota 2]

O trecho mostra que cada um de nós deve estar atento à escrita da autora ou do autor superior, ou seja, ao plano traçado para nós por essa autoria superior, não importa se de fato existe ou não. Devemos participar nesse plano, entendê-lo como o nosso destino e buscar a sua realização esteticamente superior num ato de assimilação radical. Cada indivíduo deve cumprir o seu papel com a maior sabedoria, estilo e graça. O que só consegue se for capaz de entender o desenho do seu destino individual e cooperar com o preenchimento da imagem realizada. Os personagens de Blixen estão de certo modo e tenazmente tentando cumprir essa missão, mesmo que isso signifique trocar de identidade e assumir o destino de um outro, que se possa elevar esteticamente.

No conto O dilúvio de Norderney, o cardeal em realidade não é o cardeal, é Kasparsen, o empregado do antigo cardeal. Depois da morte acidental e pouco digna do seu patrão, Kasparsen resolve assumir a identidade do cardeal para dar-lhe uma nova vida com mais grandeza e dignidade. Na noite fatal do dilúvio catastrófico que ameaça todos os envolvidos no conto, o falso cardeal põe em cena um encontro dramático entre os seus “atores”. Todos começam a contar suas respectivas histórias, e chegam por esse caminho à compreensão de seus destinos.

Ao cardeal verdadeiro, lhe faltava algo. Apesar de ser considerado um honrado homem de Deus, lhe faltava, segundo Kasparson, um grão de charlatanice, pois, como disse em outra ocasião a Senhora DiaeNoite: “A charlatanice é uma qualidade indispensável na corte, no teatro e no paraíso”.

Kasparson, que antes de ser empregado do cardeal era ator, resolve então atribuir à vida do cardeal um último ato grandioso, pondo a própria vida em jogo para salvar uma família de camponeses. Mas além disso pretende dar aos seus “atores” uma nova consciência do papel deles nesta vida através da experiência de narrativizar os seus destinos e, assim, apreender o seu próprio destino à luz da experiência estética.

NOTAS

[nota 1] Em Anedotas do destino, Cosac Naify, 2006. Tradução: Cássio de Arantes Leite.
[nota 2] Sete novelas fantásticas, Ed. Civilização Brasileira, Rio, 1978. Tradução: Per Johns

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