caetano.odara.Fred Coelho

 

 

Abaixo você lê a íntegra do ensaio Caetano Veloso enquanto superastro, de Silviano Santiago. O texto pertence ao livro Uma literatura nos trópicos, clássico da crítica de cultura e de literatura relançado pelo Selo Suplemento Pernambuco/ Cepe Editora em edição ampliada. 

O ensaio, escritor em 1972, mostra o interesse de Silviano pelo lugar da escrita e da palavra no âmbito da cultura jovem urbana do país, algo incomum à época; e, no conjunto da obra, mostra a dessacralização da ideia de "alta cultura". 

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***

 

Caetano Veloso enquanto superastro

 

Para Alôncio

 

 

O tema da diferença anulada ou invertida se encontra no acompanhamento estético da festa, na mistura de cores discordantes, no recurso ao travesti [...].
(René Girard, La violence et le sacré)

O missionário mostra-se alarmado com esse desprezo pela obra do Criador: por que os indígenas alteram a aparência do rosto humano? [...] O que quer que ele imagine, trata-se sempre de enganar.
(Lévi-Strauss, Tristes tropiques)

 


1.

A revista norte-americana Confidential procurou mostrar, na década de 1950, que os astros de Hollywood eram diferentes na vida real “para pior”. Piores do que parecem. Os astros tinham uma vida no palco ou na tela, e outra bem, mas bem diferente na vida real. O bom repórter do escândalo, da imprensa marrom, como se dizia então, era aquele que, pulando cercas e atravessando muros de ciprestes, lutando contra guarda-costas e cães treinados, conseguia surpreender o astro fora do altar e do seu comportamento ritual. Entrar no lar com ouvidos e câmara para capturar a vida privada, mesmo que no final das contas apenas recebesse em troca um processo judicial. Louis Malle fez um filme com Brigitte Bardot sobre isso. Dizem que Fellini também.

Ou então: o espectador via um filme de Ray Milland em que ele fazia papel de pinguço. Começavam a dizer que sua interpretação era tão realista que ele tinha de ser pinguço na vida diária também. O estúdio então convidava os repórteres das revistas cor-de-rosa para entrar sem cerimônia na casa de Ray: precisava-se de fabricar uma versão “para melhor”. Na intimidade do lar Ray é um excelente pai de família, extremado e carinhoso, amante da esposa e dos filhos (e tome fotografias de abraços e ternura). Isso foi por ocasião do sucesso de um filme chamado Farrapo humano.

O título do filme pegou e agora se transforma, em nosso texto, em metáfora para o astro de então: farrapo humano. Uma revista dizia e provava que Tony Curtis tinha sido delinquente infantil. Outra dizia que ele levava vida de cidadão honrado e cumpridor dos deveres. Marilyn posou nua para uma folhinha — era a manchete. Ela precisava então de dinheiro, corrigiam. Marlon Brando, suado e de camisa de meia, interpretando um polaco bestial, agredia um repórter
mais indiscreto. Nas boates era visto de smoking ao lado de delicadas e angelicais filhas do Oriente.

Imprensa marrom ou cor-de-rosa: qualquer das cores, baseada que estava cada uma em critério estabelecido pela verdade da comunidade, isto é, pelo código de comportamento e de valores ditado pela middle class americana e que as revistas reafirmavam, ou pelo elogio ou pela crítica, ao homem ou ao ator. Não se podia sair das convenções sociais e profissionais, com perigo de ser desprezado muito mais pela máquina publicitária do que pelo público propriamente dito.
A imprensa especializada tomava as rédeas da informação e da pressão, da repressão comunitária. Diziam: arte é ilusão e artifício, de acordo, mas o homem por detrás tem de ser diferente do ator. Para melhor ou para pior: nunca propunham um retrato do ator/homem ou um retrato do homem/ator; nunca procuravam uma identidade entre o ator e o homem, identidade que extravasasse os contornos definidos ou pela chamada vida real ou pela chamada vida artística, configurando finalmente uma pessoa que pudesse ser artificial em toda sua simplicidade. A imprensa agia como se o artifício fosse uma máscara que devia ser assinalada, que precisava ser constantemente descolada do rosto. Tirar a maquiagem do rosto do homem para poder lhe entregar a responsabilidade do cidadão atuante dentro da comunidade. Pôr a maquiagem no rosto do ator para indicar o começo da ilusão, da miragem. Luzes! Câmara! O ator não pode continuar homem. O homem não podia continuar ator fora do estúdio.

 

2.

O superastro é o mesmo na tela e na vida real, no palco e na sala de jantar, na TV e no bar da esquina, no disco e na praia, porque nunca é sincero, sempre representando, sempre deliciosa e naturalmente artificial, sempre espantosamente ator, sempre se escapando das leis de comportamento ditadas para os outros cidadãos (e obedecidas com receio). Porque ele é diferente dos outros é sempre o mesmo. Para indicar que o espaço instaurado pelo superastro é o do mesmo, Caetano Veloso no seu último show está dando uma interpretação bem especial a Partido alto, de Chico Buarque, representando-a no palco como se ele fosse o próprio Chico. Comenta a revista Veja: “Há um grande impacto na versão do samba Partido alto, de Chico Buarque, cantado como se Caetano
estivesse bêbado [...]”.

O superastro vive em toda sua plenitude e contradição comunitária os 365 dias do carnaval e da máscara alheia. Esse é o sonho de Caetano, para ele e para os outros: “em que medida essa explosão [o carnaval] pode se generalizar, pode se estender para o ano inteiro” (Bondinho, nº 34). Ser a fantasia de Carmem Miranda todos os dias e todos os minutos, em todas as ruas e em todos os palcos. Ser 365 dias a festa e o sagrado, interromper de súbito o cotidiano, descerrar as suas mandíbulas de monstro, criando um clima perpétuo de fantasia e de mistério religioso. Fazer do mundo o templo, o “templo do caetanismo” — como gostam de falar os repórteres. Ser a fantasia de Carmem Miranda, com constância e alegria, liberando os sentidos e sentimentos aprisionados pela vida social, pela chamada vida séria, de trabalho e relógio de ponto. Carmem Miranda é a que levava a não seriedade ao extremo do paradoxo (a não seriedade é a seriedade) e ao extremo da realidade ilusória da arte (o real é o artifício), pois ela, nos diz Caetano: “tem o ar mais debochado possível e não há nada de mais profundo e sério, e mais terrível, que a frase que ela tá dizendo” (Bondinho, nº 34).

O público não quis aceitar que terminassem de repente com o jogo da diferença, entre o ator e o homem, entre o sério e o artificial, entre a responsabilidade e a fantasia, entre o farrapo e o humano — e protestou. Protesto que se ecoou pela imprensa. O superastro respondeu com seu jargão: “Sem essa, bicho, a época é a do desbunde”.

 

3.

O desbunde não pode ser definido como se fosse um conceito e muito menos como se tratasse de uma regra de comportamento. É antes um espetáculo em que se irmanam uma atitude artística de vida e uma atitude existencial de arte, confundindo-se. Levar a arte para o palco da vida. Levar a vida para a realidade do palco. Representar no palco a realidade da vida. Representar na vida a realidade do palco. O superastro pode atuar de graça para o público das ruas, pode atuar na rua, para poder se apresentar despojado diante dos espectadores que pagam caro para ver o espetáculo do superastro em boates ou teatros. Ele simplesmente traz para o palco aquela mesma figura artificial e fantasiosa consumida nas diversas aparições públicas e documentadas com carinho pelos fotógrafos. Tanto na rua como no palco o superastro é um elemento catalisador: é ele o significante que indica, dentro do grupo social de que se aproxima, que vai começar o espetáculo, que chegou a hora do carnaval. Como em uma colagem surrealista, ao vê-lo se abrem no peito as cortinas e se acendem os spot-lights. O relacionamento entre as pessoas se desloca do plano da vivência diária e passa a ser pura representação. O superastro é o significante em que os olhares se encontram para a metamorfose carnavalesca. Difícil é definir então o conteúdo deste significante, pois o significado é vário e distinto, polissêmico. Geraldo Mairink, na revista Veja (19-1-72), em uma mesma frase recorre a três definições distintas para Caetano, todas justas e contraditórias, todas condizentes só com o momento e só com ele: “Aplaudido na entrada como um deus, Caetano saiu sob os aplausos que não se dedicam às divindades, mas aos artistas; e, acima de tudo, às pessoas de quem se gosta”.

É deus, é artista, é pessoa: é superior, é diferente, é semelhante. Tudo ao mesmo tempo.

Porque Caetano é sempre o mesmo, é que ele pode ser “espontâneo” no palco. Essa foi a primeira dificuldade que teve Caetano para entrar no mundo artístico: “No estúdio não acreditavam nele [...] O Caetano tinha de cantar daquela maneira mesmo, espontâneo [...]” — disse Guilherme Araújo, relembrando as vacas magras (Rolling Stone, nº13). Já sabia Caetano que o espontâneo do palco se paga com o extravagante na vida real, pois só o extravagante desperta o comentário, que é o alimento diário do superastro, seu néctar e sua ambrosia, seu pano de prato onde limpa as mãos sujas das canções. O superastro é notícia sem o querer, é seguido sem o saber. A patota do Pasquim não pode compreender isso: quando anunciaram que Caetano ia ser pai, transcreveram a notícia do Jornal do Brasil e comentaram na margem: “E da mãe, ninguém fala? Caetano vai ser pai sozinho? Viva o prafrentismo de bilheteria!” Os jornais disseram que Caetano voltou de Londres com suas peles, envolto nelas. O superastro já o é fora do palco, da tela, do vídeo, do disco, e não precisa provar mais nada para poder ser superastro no palco, na tela, no vídeo, no disco. Precisa ser espontâneo, ser o mesmo. Necessita apenas de acessórios. Muitos acessórios. Um deles, o mais difícil, é o mais custoso: a boa gerência.

 

4.

Tárik de Souza fala que chamam Guilherme de Araújo de “maquiavélico criador de mitos”. Roberto Freire lhe pergunta, em entrevista para Bondinho (nº 34), não escondendo certa malícia e bisbilhotice: “Dizem que você influenciava no comportamento cênico, no comportamento diante do público. Você criava uma imagem, as roupas?” Responde Guilherme de Araújo em entrevista semelhante para Rolling stone (nº 13): “Foi tudo muito simples. Passei numa loja e comprei [cafetãs] para eles. Era uma maneira das pessoas comentarem e Caetano logo se sentiu bem com o novo traje”. Acrescenta ele mais abaixo em um tom difícil de ser definido, se modesto ou arrogante: “Na época da revolução de maio na França [...] eu disse a ele [Caetano] que ele devia fazer uma música com a frase É proibido proibir”. O mesmo Guilherme Araújo, no início da carreira de Caetano e Gil, “procurava, para as colunas sociais, colocar [retratos com] roupas que pudessem ser descritas”.

Com este último truque do empresário, o superastro saía do espaço reservado das colunas chamadas artísticas e entrava no espaço realista das colunas sociais, que comentam sem discriminação alguma tanto o espetáculo da vida diária como o do palco. O público se interessava não tanto pela maneira como Caetano se apresentava no palco, mas como representava na vida real. Isso porque ele ia para o palco com a mesma roupa que vestia no dia a dia. O repórter de Veja (19-1-72), que cobria a chegada de Caetano ao aeroporto do Galeão e o seu show no João Caetano, percebe isso, através de um significativo “como” que grifamos na transcrição abaixo:

[...] o Caetano Veloso de 1972 vestia uma modesta calça cor de areia, estilo “tomara-que-caia” e um blusão Lee muito curto, desabotoado com o umbigo de fora. Uma roupa no mínimo “diferente”, como a jardineira que usava ao desembarcar no aeroporto do Galeão [...].

Depois de ter descoberto que não podia continuar para sempre com os blue jeans que a tornaram conhecida em “Carcará”, e passou a cantar os sambas satíricos do soçaite, Maria Bethânia começou a se vestir com a elegância da haute couture. Marcos André, em O Globo, de 18 de novembro de 1968, afirma: “No almoço do Museu de Arte Moderna, por mais incrível que pareça, a mulher mais elegante era Maria Bethânia [...]”.

Para o colunista social era incrível que uma artista que se vestia até então com desbotados blue jeans pudesse se apresentar muito bem vestida em um almoço elegante. Ele não tinha compreendido que tanto o blue jeans quanto o vestido haute couture são artifícios do e para o mesmo espetáculo, e querer caracterizar uma pessoa, o superastro, pelo mais exterior do artifício e o mais passageiro — a moda — é sempre querer levar susto. Não se pode usar blue jeans para todo o sempre, nem roupas de plástico, descobriu Caetano. Muda-se de roupa, aliás, como se muda de decoração no apartamento. Um jovem colunista de Rolling stone (nº 2) se entusiasma com a variação de cores nas sucessivas decorações da cobertura de Ipanema onde mora Maria Bethânia, assim como Marcos André tinha se entusiasmado com as mudanças de traje: “Uma decoração que ela muda pelo menos três vezes por ano (agora está, tudo vermelho, antes era azul)”.

E anota em seguida um detalhe que já se tornou famoso: uma motocicleta no canto da cobertura, uma Yamaha. “Atenção, garoto, amanhã ela poderá estar num Rolls Royce [...] não se assuste”.

 

5.

Muitos acessórios caros, estamos vendo, que têm de ser obtidos em termos puramente econômicos. O superastro é um objeto caro por definição. Esta afirmativa, aparentemente óbvia e que nem devia merecer maior atenção de nossa parte, sofre, no entanto, objeções por parte de uma geração que vem questionando, ao som da própria música de Caetano e de Gil, que vem questionando teoricamente e pelo próprio comportamento social, os valores do mundo capitalista, da sociedade de consumo. Apesar da macrobiótica, apesar da simplicidade (sofisticada, é claro) dos jeans e das jaquetas Lee, apesar da vida diária se desenrolar no mais das vezes dentro da banalidade (artificial, é claro) do cotidiano, apesar de tudo, Caetano e Gil são objetos que necessitam dinheiro para se mover, para representar na vida real e no palco. E porque precisam e porque são ouvidos e seguidos pelos que não tem dinheiro, aí surge uma constante fonte de mal-entendidos que tanto Guilherme Araújo, quanto Caetano e Gil, procuram aclarar em todas entrevistas. Transcrevemos este significativo trecho da entrevista com Guilherme Araújo (Rolling Stone, no 13):

Pergunta — Não existirá uma contradição, artistas do underground, que se apresentam para um público quase sempre duro, cobrarem ingressos?
Resposta — Não, em toda parte do mundo eles cobram. Só não consegui aqui uma coisa que vi lá fora, que era variação bem grande dos preços conforme os lugares dos ingressos. O que aconteceu, por exemplo, neste programa da TV Globo, foi que os grã-finos do Rio se sujeitaram a pagar 90 cruzeiros para serem figurantes de um tape.

Guilherme de Araújo engrossa com um jovem mais afoito e hippie na porta do Teatro João Caetano: “Aí eu tinha que dizer, se você comprou esta túnica indiana, tá de bolsa, tem cigarros, pode muito bem pagar os 10 cruzeiros do ingresso”.

E salienta ainda que não pode existir qualquer tipo de discriminação no comportamento financeiro do empresário: “Na Bahia, 15 parentes de Caetano quiseram assistir e tiveram que pagar ingresso [...]”.

E as informações desse estilo e tom são constantes. Por exemplo, Caetano fica com cinquenta por cento da renda líquida e os músicos com os outros cinquenta, enquanto Guilherme recebe os seus vinte por cento da renda bruta. Assim, a profissão de músico acompanhante, que é mal paga no mundo inteiro, recebe um tratamento decente por parte do superastro brasileiro, pelo menos é o que dizem. O famoso show para a TV Globo teve as suas cifras citadas e recitadas por todos os jornais e revistas e foi comentário dos jovens mais radicais.

Pouco a pouco, no entanto, essa contradição vai sendo resolvida, pois os caetanistas de 1972 já não são mais os tropicalistas de 1968. Houve uma transformação no espírito do grupo que transpareceu logo no poema de boas-vindas que Luís Carlos Maciel escreveu para Caetano no primeiro número de Rolling stone: “O trio elétrico está nas ruas, o sol está forte, o mar está calmo e a preguiça resvala na rua Chile [...]”. Com bastante acuidade a revista Veja descreve:

Os tropicalistas de 1968 faziam longos discursos e defendiam-se com teorias nem sempre exemplarmente claras. [...] O impacto da música de Caetano Veloso e Gil sobre o público jovem tinha forte molho de contestação.

Depois a viagem. Já os caetanistas de 1972 estão em uma “outra”, como diz ainda a citada revista: “a música como sonoridade, a disponibilidade com relação a vida, as experiências pessoais, o aprendizado do corpo, a macrobiótica”. Aquilo que se convencionou ser o estado de “curtição”, e que tentamos definir no texto Os abutres, sobre a literatura de Waly Sailormoon e Gramiro de Matos, e que leva epígrafe de José Vicente: “Somos a procura, a entrega, a fome e somos também os abutres do lixo americano”. Aliás, é José Vicente que tem uma frase definitiva sobre o problema monetário, apelando com propriedade para o caráter mesquinho desse tipo de crítica: “No caso de Caetano, dizer por exemplo que o Caetano virou consumo. Eu acho que ele está além disso, entendeu. A gente não pode amesquinhar a esse ponto” (Bondinho, nº 39).

Outra coisa também é certa: o superastro não sabe lidar com a sociedade de consumo. Parece sempre querer insinuar que existe uma diferença radical entre a música no momento em que é divulgada pela primeira vez e, depois, quando já não tem mais dono, já tendo entrado de cheio na “deterioração” das interpretações dos cantores e das orquestras mais diversos. Talvez tenha sido Chico Buarque quem mais tenha sofrido os danos de tal fenômeno (A banda, Carolina etc.), e é dele que vem um grito de desabafo na entrevista estampada no programa distribuído durante a encenação de Roda viva:

E que tristeza é assistir meses depois, seu trabalho desbotado num programa de domingo à tarde na televisão, bailarinas cansadas balançando as pernas, pra lá e pra cá, em ritmo de protesto. É por isso que me incluo no rol dos debochados. Um mês depois de composto meu samba já não é meu. É mercadoria exposta ao consumo, desgaste, ridículo e rejeite.

 

Parêntese

Gerência e acessórios e problemas econômicos, diga-se do superastro tupiniquim, em termos de país em desenvolvimento. Pois no caso do conjunto inglês Rolling Stones as coisas se passam de maneira semelhante, mas em escala majestosa, requinte só dispensado hoje em dia aos grandes estadistas e aos poucos grandes milionários como Onassis. Robert Hughes, em recente ensaio para a revista Time (17-7-72), “The Stones and the Triumph of Marsyas”, comenta o aparato técnico que cerca os Stones durante a sua excursão pelos Estados Unidos:

Há as providências de transporte, envolvendo a chegada pontual de pesados caminhões, os jatos particulares de apoio em campos de aviação reservados, a sincronização instantânea daquelas limusines pretas e discretas, que evidenciam e escondem o Superastro; a ultrassofisticada tecnologia de montagem do palco, com seus elevadores hidráulicos portáteis, espelhos de controle remoto e arcos ondulatórios; além disso, os correspondentes oficiais, Truman Capote, da Rolling stone, e Terry Southern, da Saturday review.

O superastro é também um estilo de vida; é o envolvimento com este estilo que visa a dar ao artifício a nota tônica da artificialidade. Como não se pode ter controle do público (ver as agressões ocorridas no show de Altamont, com pânico e morte), assume-se o controle da imagem. E quando esta imagem vai ser divulgada pelo cinema, maior controle ainda, como nos indicam as diversas sequências do Gimme shelter que se passam diante da moviola, no momento dos arranjos da montagem. Nenhum defeito técnico. Nenhum descuido na encenação da vida diária, do cotidiano e do espetáculo no palco. De tal forma que o superastro possa viver em continuidade a perfeição do ilusório e a ilusória perfeição do devaneio. O redondo e o acabado dos contos da carochinha. O superastro e a tecnologia envolventes são olhados de perto (como Norman Mailer olhou os astronautas para nós na viagem à Lua), inspecionados, analisados pelos correspondentes especiais, que darão ao espetáculo o carimbo da verossimilhança, da autenticidade, pois foi ele presenciado por minisuperastros, os badalados escritores Capote e Southern. É preciso que a ilusão seja escrita e divulgada para que se possa acreditar nela, como no caso da viagem à Lua. Para que ela passe a realmente existir no dia a dia dos outros. Fotografado para proclamar que Jagger e seu grupo são figuras de carne e osso, pois sua existência é sempre posta em jogo pelo público em razão de não seguirem as convenções estabelecidas para todos os outros. Isso o fazem graças a uma estratégia altamente ideológica, percebe Hughes, estabelecendo a diferença entre eles próprios e os Beatles: “[...] em vez de criar a ilusão de trabalhar dentro das convenções sociais inglesas como os Beatles faziam, eles [os Stones] simplesmente ignoraram as regras”.

 

6.

Façamos um pouco de história. Para poder, depois, se descartar dela. Desde 1967, Caetano já estava preocupado com um novo tipo de personalidade, de aparência, que precisava criar para poder enfrentar a TV e o disco. Tinha se dado conta de que o talento musical não é tudo, não é suficiente. Agora, não só teria um público ativo diante dele, na plateia, como também outro, bem mais vasto e exigente, sentado nas poltronas das salas de estar e que preencheria os minutos de silêncio dos comerciais com comentários e piadas caseiras. Para agradar aos dois públicos elegeu (ou elegeram, ou elegeram para ele) como imagem a figura de Chacrinha, sem, no entanto, idealizar a imagem do homem da buzina, tomando-a antes em toda sua ambiguidade promocional. Assim como os antropófagos de São Paulo, em 1928, tinham eleito o palhaço Piolin como imagem da própria agressividade burlesca, oferecendo-lhe um almoço no Mappin Stores, os tropicalistas buscavam em Chacrinha, em um primeiro e definitivo gesto de desautomatização cultural, o elemento que poderia criar uma atmosfera ideal e proliferante de não seriedade, de descompromisso com as forças da intelectualidade oficial brasileira.

Gilberto Gil, no célebre Aquele abraço, situou bem essa ambiguidade: Chacrinha “velho guerreiro” / “velho palhaço”. A imagem de Chacrinha e a descoberta da TV foram acompanhadas por um significativo movimento de valorização do Brasil, Brasil inzoneiro, como dizia Ari Barroso, movimento este que, em última instância foi o responsável por um estranho e inédito movimento cultural. De repente, descentralizou-se a cultura brasileira da cultura institucionalizada, da cultura aceita e aplaudida pelos intelectuais e pelas universidades, pelas academias de letras e pelos suplementos literários. Transferiu-se o interesse para o humilde e o marginalizado até então pela cultura sofisticada dos grandes centros. Assim é que, de um primeiro momento de vergonha diante do “bárbaro e nosso” (Oswald de Andrade), passou-se, em seguida, a engrandecer aquilo mesmo de que se tinha vergonha — o Brasil tropical e pitoresco, o Brasil do folclore e dos cartões postais, Brasil para estrangeiro, exportado em forma de palmeira, bananeira, terno branco, Carmem Miranda, Zé Carioca etc. Esse primeiro momento foi salientado por Caetano em entrevista concedida à Realidade (dezembro de 1968):

Nós vibrávamos com Buñuel e nos envergonhávamos do prazer que nossos patrícios sentiam ao verem as chanchadas da Atlântida e os filmes de Mazzaroppi, muito embora não perdêssemos um só.

Logo depois, portanto, seguindo já as lições de um Federico García Lorca na Espanha e de Guimarães Rosa e João Cabral entre nós, o grupo já estava trabalhando com “motivos folclóricos e temas de Ciranda de Santo Amaro”, mas sempre — frisemos — “da maneira mais moderna”.

Esse entrecruzar do mais moderno e do mais tradicional do Brasil, já salientado pelos críticos do Tropicalismo como Affonso Romano de Sant’Anna e Roberto Schwarz, determinou de maneira precisa o eixo em que se organizou o movimento, acarretando uma concepção de gosto artístico que de modo algum coincidia com o gosto modernista, salvo, é claro, no caso exemplar de Oswald de Andrade. Não havia um desejo de escolha entre isto e aquilo, entre bom e mau, e a dicotomia dos opostos era estabelecida mais para precisar racionalmente os dois lados do que para conduzir a uma opção, a uma solução ou preferência. No mesmo número de Realidade que consultamos, escreve Décio Bar: “Glauber Rocha não parou para se perguntar o que era bom gosto. Entre uma usina hidrelétrica e o luar do sertão, não há dúvida possível — fica-se com os dois”.

Caetano percebeu esse caráter contraditório e sintético que estava sendo apresentado pela arte de Glauber ou de José Celso Martinez, de Hélio Oiticica ou de Rubens Gerchman, e quis que seu corpo, qual peça de escultura, no cotidiano e no palco, assumisse a contradição, se metamorfoseasse na contradição que era falada ou encenada pelos artistas, mas nunca vivida por eles. Quis que seu corpo, pelo seu aspecto plástico, cativasse o público e que fosse ele a imagem viva de sua mensagem artística: “[...] partindo exatamente do elemento ‘cafona’ da nossa cultura fundido ao que houvesse de mais avançado industrialmente, como as guitarras elétricas e as roupas de plástico”.

Palhaço e artista, cafona e roupa de plástico, chanchada e ficção científica, Chacrinha e a jovem guarda, sintetizados por esta bela frase: “Não posso negar o que já li, nem posso esquecer onde vivo”.

 

7.

Caetano trouxe para o palco da praça e para a praça do palco o próprio corpo, e deu o primeiro passo para ser o superastro por excelência das artes brasileiras. O corpo é tão importante quanto a voz; a roupa é tão importante quanto a letra; o movimento é tão importante quanto a música. O corpo está para a voz, assim como a roupa está para a letra e a dança para a música. Deixar que os seis elementos desta equação não trabalhem em harmonia (o que sucede muitas vezes com Roberto Carlos), mas que se contradigam em toda sua extensão, de tal modo que se cria um estranho clima lúdico, permutacional, como se o cantor no palco fosse um quebra-cabeça que só pudesse ser organizado na cabeça dos espectadores. Mudando e recriando a imagem de número para número, Caetano preenchia de maneira inesperada as seis categorias com que trabalha basicamente: corpo, voz, roupa, letra, dança e música. O artista se desdobra em criador e criatura. Deixando aquele na penumbra da enunciação, exibe-se a si mesmo, criatura, artifício, arte, como enunciado. Ler a criatura é ler o artista. Ler é penetrar no espaço das intenções oferecidas e das proposições camufladas.

Falando das suas primeiras experiências na TV, Caetano salienta que desde o início funcionou bem porque tinha dois detalhes quase circenses na sua personalidade, que atraíam o público: a facilidade que tinha para decorar letras de música e o seu “aspecto plástico — minha magreza e meu cabelo que finalmente tinha recebido a independência do pente e da tesoura”.

A primeira participação da plateia no número de Caetano não está tanto ligada à sua função de cantor, ou seja, manifestação de agrado ou desagrado quanto à música que interpretava, mas é antes reação ao seu corpo, à sua plástica: “Para mim jogavam pentes aos montes” — confessa ele a Décio Bar. Queriam pentear o cantor que estava diante deles oferecendo-lhes cabelo e música. Queriam participar do ato, participando primeiro do ritual do superastro, da sua toalete. Caetano não tem descurado dessa áurea de sexo e insinuação, de flerte e agressividade, de mistério e santidade, de desacato e fragilidade com que trata os espectadores. No seu mais recente show o público não pôde esconder o espanto. Mesmo os repórteres insistem na descrição do aspecto plástico do cantor, quando não são as colunas sociais ou as de mexerico. Veja (1-11-72) abre seu artigo sobre o show com as seguintes informações: “O astro principal usa batom, maquilagem, veste roupas cintilantes e rebola-se sem comedimento”.

Mas logo em seguida tem necessidade de assinalar a receptividade com que recebem o cantor, seu ato, a tal ponto que chegam a participar literalmente do show no palco:

Eventualmente o número de crooners pode ser menor ou maior, conforme os voluntários disponíveis, o mesmo acontecendo com improvisadores e frenéticos bailarinos que se intrometem no palco.

Essa aproximação sensual da plateia, que tem sido a grande característica de Mick Jagger, também o foi desde o início de Caetano. Robert Hughes, no artigo já citado, analisa o relacionamento de Jagger com o público nos seguintes termos:

An essential part of Jagger’s act is his vulnerability. He is a butterfly for sexual lepidopterists, struting and jackknifing across the stage in a cloud of scarf and glitter, pinned by the spotlights. [...] Jagger’s act is to put himself out like bait and then flink himself away just as the jaws are about to close and the audience comes breaking ravenously over the stage. [nota 1]

 

8.

No entanto, essa atitude de superastro que, à primeira vista, visa apenas à gratificação de um narcisismo desenfreado (é esta, infelizmente, a conclusão do raciocínio de Hughes), corresponde, pelo menos no exemplo brasileiro, a determinada situação a que chegou o impasse das artes plásticas no Brasil e o discurso teórico de críticos e artistas que se situam na vanguarda. Ferreira Gullar, o magnífico poeta da Luta corporal, em um dos seus últimos artigos sobre artes plásticas, insistia no “espetáculo da rua”, indicando que artistas de vanguarda procuravam transgredir, pelo seu trabalho, a diferença entre arte para museu e espetáculo público, saindo dos recintos fechados e das galerias para as ruas, seguindo as pegadas das escolas de samba. Outro crítico, Frederico Morais, procura negar a diferença entre obra e corpo, entre homem e artista, propondo o corpo como o novo propulsor de uma revisão da atualidade do artista plástico entre nós. Esclarece Ferreira Gullar, na Revista Vozes, novembro de 70:

Fala-se muito em integrar a arte à vida, que a arte não deve ser alguma coisa fora da vida. Com toda a razão. Mas para os integrantes das escolas de samba, a sua arte está misturada à sua vida e a vida da cidade.

Eis o exemplo a seguir. Frederico Morais na mesma revista:

O corpo contra a máquina. [...] Se for necessário, usaremos o próprio corpo como canal da mensagem, como motor da obra. O corpo, e nele, os músculos, o sangue, as vísceras, o excremento, sobretudo a inteligência.

A integração arte-vida, arte-cidade, arte-corpo, alarga as possibilidades do objeto artístico, pois o próprio corpo se oferece como criação, o corpo do artista ou o corpo dos outros, dos participantes (não mais simples espectadores). Tudo passando a ser parte integrante do “grande espetáculo”, do happening, da obra que se abre então para o tempo e pelo acaso no ocaso, na invenção passageira e espontânea, no desabrochar descomprometido com as regras e o academismo institucionalizado. Nesse sentido, seria necessário não só se referir às experiências do teatro de agressão, comandadas por José Celso Martinez, como também às proposições coletivas de Rubens Gerchman e Vergara, como ainda às luvas, por exemplo, de Lygia Clark, ou os parangolés com que Hélio Oiticica enfeita nossos corpos. Todos esses espetáculos, todos esses novos objetos, requerem uma comunhão estreita entre o corpo e a matéria, entre os corpos, entre as epidermes, se entregando então artista e espectador a uma experiência que ultrapassa os limites prescritos pela passividade com que se olham quadros em um museu ou em uma galeria.

O superastro, ou mais precisamente, Caetano, se despregou em determinado e específico momento do movimento tropicalista e se enveredou só por entre os caminhos tortuosos da arte brasileira. Expondo-se, expondo seu cabelo e suas fantasias, seu corpo e sua voz, tornando-se ao mesmo tempo criador e objeto, criador e criado, criado-obrigado de uma plateia cada vez mais exigente, cada vez mais eminente, pois seus espetáculos extrapolavam o círculo da música popular e se propunham como a síntese que estavam procurando os artistas brasileiros. Síntese que serviria para definir o caos de um momento que não sendo mais de contestação pura (política, por exemplo), se oferece, no descompromisso e na ligeireza, como manifestações paradoxalmente criativas de crianças “alienadas”. Manifestações apocalípticas dos “mortos da primavera”, como os classificou Glauber Rocha em artigo polêmico, resumindo as críticas que 1968 (e o cinema novo) fazia a 1972:

O pé descalço não bate fundo na terra, o olho deslumbrado não vê o céu: o inconsciente liberado das vanguardas dos povos pobres viam nos últimos dois anos o infinito azul de Hollywood, as eletrônicas discrepâncias de Jimi Hendrix, o balançar complacente dos Beatles e outros signos liberais de civilizações colonizadoras (O pasquim, 29 de fevereiro de 1972).

A cultura jovem de hoje não depende mais de uma reflexão organizada e controlada por princípios ideológicos, certo — é antes um oferecer aos mais velhos e mais bem situados aquilo mesmo que menos esperam dela. Nesse segundo de decepção, momento passageiro de um espetáculo, de um show, é que instaura o poder de uma arte que, sendo de intenso consumo (ao contrário da anterior, órfã de público), consegue desviar uma geração para o gozo e o deleite, para o som e a ausência, e talvez estabelecer uma ligação maior, além de fronteiras e de credos, em uma utopia da não presença, do espírito, onde “legal”, “curtir”, “grilo”, “desbunde”, são os pilares da língua franca.

A linguagem, no estágio atual do superastro, compõe sua figura tanto quanto a roupa, ou os acessórios. Linguagem, roupas, acessórios: forçados, violentamente artificiais, igualados para todos, todos se comunicando no mínimo esforço pois todas as figuras da aparência se encontram regidas pelo código da semelhança. Entre jovens que se vestem igual, se comportam igual, e já falam igual, pouco se pode pedir a não ser que se definam como um grupo. O superastro funciona, finalmente e para este grupo reduzido, como modelo: a jardineira que Caetano vestia ao chegar ao Galeão de repente se prolifera pelos quatro cantos da cidade, como que reproduzida por mãos de fada. Os jovens, consumindo o superastro, carnavalesca e antropofagicamente, passam a receber, no ritual e na festa, seus fluidos de encanto e de inebriante vida. Esperam, assim, prolongar aquela continuidade a que nos referíamos entre o palco e a rua, entre o espetáculo da vida e a realidade do espetáculo, contaminando com sua presença, sejamos precisos, seus corpos, uma cidade que, sem eles, se apresentaria sob forma de trabalho, crescimento tecnológico e gravata. Instauram eles aos montes, em grupos ou individualmente, pequenas ilhas de cabelos e sandálias, de colares e bijuterias baratas, de calças Lee e camisas de malha Hering, de bolsas a tiracolo e anéis de prata.

 

[1972]

 


[nota 1] “Uma parte essencial da exibição de Jagger é sua vulnerabilidade. Ele é uma borboleta para lepidopteristas sexuais, rebolando e contorcendo-se sobre o palco, numa nuvem de écharpes e brilho, fixada pelos refletores. [...] A exibição de Jagger joga-o pra fora como isca e então repesca-o para longe, bem na hora em que os tubarões estão prontos para aproximar-se e a plateia irromper vorazmente no palco.”