Resenha Hamilton Cristian Dessa Divulgacao

 

(Este você não vai ler, honorável pessoa ilustrada. Se terminar a resenha, valeu pela atenção, mas provavelmente vais catar outro livro de ficção sobre favela. Abraçar o que preencha num momento sua lacuna de obra de periferia ou de literatura negra, já mastigada e laceada pro teu paladar e apetite com descrições realistas do miserê, algo de louvores e gritos esperados, de graça pitoresca em laivos de superação individual e faíscas de quebrada empreendedora. Textos que pouco questionam os motivos estruturais da vala. Obras aptas às leituras acomodadas à mera discussão “cultural” pra quem cola aqui, samba, toma uma breja com poesia e camba de volta pra mesada almofadada. Afinal, em nossa literatura parece mais valer o alarde do sintoma do que o exame da convulsão. Você não lerá O livro preto de Ariel (Editora Reaja) porque por aí a circulação dessas lâminas geralmente só gira quando o autor já faleceu. Se debate de subjetividade negra pinga apenas quando a história se passa noutro continente, esse escancara sem massagem a sangria, o abate, seus porões e laboratórios. E o que se intitula antirracista, seguindo a tendência marqueteira e anestesista de 2020, pode até resvalar no pus mas não consegue segurar esse reggae, justamente porque se abraçar essa podreira vai lambuzar de fedentina a própria camisa de cambraia. E você vai reconhecer o seu próprio cheiro no futum. Então com licença)

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Colê, esse livro vai te chegar via correio no envelope caligrafado pelo autor. Talvez te deixado num sábado de visita, passado à meia-noite no último vagão na última estação ou presenteado rasurado de suor com páginas arranhadas pelo arame da biriba. Capaz que venha perfumado de alfazema numa biblioteca comunitária em Camaragibe, Perus ou no Vale das Pedrinhas, como no sonho do protagonista da história. E você verá o escritor tirar vapor e quentura de um chinelo ou de uma cabeçada maldita na cela solitária; pinçar os espinhos e o pólen de objetos corriqueiros e das tremedeiras do gozo. Símbolos. Hamilton Borges Onirê (foto) oferece e rege símbolos. Extrai uma renca de sentidos dos desejos mais delirantes, de revoltas, depressões e da lógica impiedosa do sistema judiciário escravista.

Talvez tu se recorde de uma branca camisa de gola e lacrimeje engolindo quadrado ao fitar o trato de Ariel com sua roupa passada na cela, estiradinha pra audiência no Fórum, e vitamine teu ódio com as pancadas fardadas que, ocultas no corró, arregaçam a roupa e quem ela veste. Talvez tu enterre as unhas nas palmas, percebendo como todo carinho, esperança e beleza humilde da limpeza de um tecido é detonado com prazer e como até o quengo mais convicto também se amua recebendo coturnadas da frustração. E verás algo delicado, cultivado como o zelo da liberdade desejada, ficar sujo e destrambelhado cobrindo calombos enquanto se carimba mais um soberbo veredito dos juízes aos processos penais arrastados. E tu vai sentir o ácido entre as costelas, testemunhando o desdém empoado dos excelentíssimos nascidos em berço de ouro que condenam milhares pela cara e pelo CEP, os mesmos meritíssimos que colecionam tantos crimes de cheirar e de estuprar nas suas próprias mansões. Bem, talvez tu reencontre um miolo dessa história também no armário das escovas de dentes de teu banheiro, com lâminas de barbear e espelhinhos do teu irmão que está na penita, enferrujando. Ou na ternura exausta de uma anciã madrugueira que envolve com panos e plásticos o jumbo no chuvoso ponto de ônibus. Ou ainda no escarro de primos e vizinhas que martelam que a forca existe é pra se usar e que cadeia é custo e luxo num país de marmanjo vagal, amém. Afinal, como a minha e a tua, uma penca gigante de famílias está atada aos frutos dos “Planos Nacionais Contra as Drogas” que multiplicaram em 300% a população carcerária do país desde 2000. E os barões fazem disso uma gamela rachada de votos e negociatas.

No livro, várias personagens são mais que alegorias rasas. Não há ali apenas a Marilda gostosona caricata, mas sim a pessoa que afirma seu erotismo e abunda sua presença na voz, no passo, na escolha do que expõe e que lidera incansáveis lutas pelos direitos dos detentos. Não há apenas a Lúcia tia coruja de um sobrinho pisado, mas também a líder cautelosa sobre a medida de seus afetos, que delicia suas umidades tesudas e enfrenta carniceiros e burocratas. Há o arrepio safo no sexo, malicioso sem baba malina e que nos eriça num ninho de encanto preparado em pleno inferno. Essa sanha é um aroma que exala gozoso, erótico como o ímpeto da revolta acendendo labaredas na detenção. E há o outro tesão lamentável, o da libido da branquitude massageada e vigorosa há séculos, baseada em perceber, afirmar e regular sua humanidade desqualificando o preto como quase-gente e como objeto de sua punheta mental contínua, às vezes até imperceptível de tão assimilada, mas quase sempre bem consciente. O livro dichava como o modo de produção psíquico da escravidão continua intocado. Ali e aqui a branquitude tritura, tutela, abre e mantém frestas, comanda a extração vital de um povo e seus velórios, refestela-se diariamente no tesão de decepar, desfruta do seu pódio cintilante erguido sobre palafitas e qualifica como violento e imoral o que se levanta e não pode ser chupinhado. Além das garantias seculares no bolso e no espelho, o livro dedilha com unhas pontiagudas as tramas e sabores do saque que suga sangue, imagens e linguagens de pretos, entranhado a um perreio econômico mas ainda muito mais amplo que isso.

É nessa teia que penso a necessidade de mitos límpidos e impecáveis, sabe? Se são orientes ou molduras pedregosas, se ilusão ou pedagogia, se régua de doutrina ou, contraditoriamente, tanto vitamina quanto fuga inalcançável. Ariel é assim? O rapaz resiste a provas e privações, transborda resignação sapiente mesmo que doída e aguarda a hora propícia dos revides que virão com fundamento. Esperto, não faz do desespero e da urgência um imã no peito pras granadas e pro aço. Seu gesto é contundente quando preciso e sua conduta é reconhecida por todas as bancas, favoráveis ou contrárias. Ariel é guia acesa na hora da revolta e todos seus movimentos são pautados na dignidade heroica e no sonho de livros e bibliotecas pretas, o que pra maioria de seus inimigos e aliados é irreal, viagem furada, mas que pra ele é a própria carne do viver, a nutrição de qualquer transformação. Ariel cresce, se rasga e decifra mistérios e verminoses da vida diante de desafios, abismos e reviradas. Suas decisões por vezes são possíveis de serem praticadas por ti, por mim e por qualquer leitor, básicas na disposição de fazer o mínimo pela comunidade ou pelo próximo, seja na prisão ou na favela, guardando silêncio, generoso agindo na humildade e mantendo prumo e discernimento. E é essa mesma dignidade que em muitas passagens traz exigências duríssimas pra que não se arreie nas toneladas de cada teste. Ariel mantém o pensamento abnegado e se conduz na fé aguentando as rajadas. O desenho é de ética e princípio de caráter, de percepção atinada, vivida na habilidade de se relacionar com retidão no vespeiro e no horror.

Ariel nos comove demais, inspira e instiga. Hamilton Borges teceu um mito, que é uma vastidão das possibilidades de ser nos diversos tempos que nos atravessam. Tempos dos rituais, memórias, festas e traumas; do cinema na cabeça quando dormimos, dos calendários subterrâneos, dos cronogramas oficiais, das masmorras e dos futuros que traçamos também pras ideias valerem o presente. Ariel se firma em todos eles e como mito é uma constelação de vários símbolos, cristalizada numa pessoa ou numa entidade. Seu proceder absolutamente exemplar é trançado em cada sílaba à ideologia escancarada do narrador, sem melindres nem curva. Ela vincula o protagonista do livro, que nos sensibiliza e cobra nossa melhor atitude, ao nervo de um minucioso exame dos poderes anguinários e hipócritas. Ou seja, estão inseparáveis na história o caráter de Ariel, as próprias nojeiras do sistema que visa destruir o povo preto e um receituário moral balizado no comportamento do rapaz santificado. Somos mergulhados no martírio pungente dele e na afiada compreensão de como funciona a arquitetura escravista em facções, mídias, partidos que se dizem de esquerda e igrejas que não querem libertar, mas sim ter o rebanho em seus currais. O livro é categórico nesse pé e nitidamente acende e determina uma linha de conduta reativa. É direta a relação entre as estruturas que o autor esmiúça, as decisões que concebe às personagens (que nos cutucam para as verificarmos em nós) e a nobreza maloqueira de Ariel por suas virtudes de calma, honra, proceder e uma crença inabalável numa ideia que é chave de libertação e papo reto: sem essa fé e atitude ele teria estourado. Os livros e o montar uma biblioteca são um símbolo pulsante e um pleno argumento aos princípios da autonomia pan-africana.

Porém, tu verás a ansiedade de Ariel antes da audiência no Fórum, momento dos que mais reconhecemos sua dimensão. Quando ele recebe solidariedade diante de seu fiapo de indecisão, hora de rara fragilidade exposta em seu mar de qualidade moral, sua profundidade macula a idolatria. É uma passagem grandiosa e muito significativa que nos dá gana de segurar sua mão e firmar o brio com quem sabemos que é forte e raro, sólido mas humano. Até que logo despertamos e matutamos: que raio de fragilidade pode se expor no meio da rinha e se assumir entre serpentes, alvejado desde o berço? Se essa fragilidade a assumir é um dos slogans da época, que pipoca cobrado como remédio, vale pensar o seu termômetro antes de soltar a bula sem peias pra geral. Criado no chão fervente entre ferrões e esporros, como, por que e quem vai desguarnecer a defesa e amolecer o cimento dos próprios pés e do peito? A fresta é pouca mas abre que engole.

ENQUANTO ANALISA, ANINHA O VENDAVAL E ACENDE O PAVIO
O enredo flui magnético, próprio dos grandes romances: dezenas de páginas se vão na aurora com as estrelas. Nosso afã se aguça em saber o próximo passo, armadilha ou batalha e se as chances de voo serão contempladas. Uma atenção crítica maloqueira, nossa, ligada no perreio e na manha, que não olhe condescendente para sua gente mas que deseje lhe compreender, ligeira com os rebuliços e serenos de vielas e baldios, recebe um leque cabuloso de personagens e dichava o peito com as mil diferenças de cada cabeça que é beco e é mata. A sinuosidade, a cabreragem, a fertilidade, os baques e deslizamentos estão em figuras inesquecíveis como Marcus Piolho, gari cantor boa gente que dilacera um crânio por uma amizade; como Tenente Ribeiro, que logo azucrina a ingenuidade de quem lê, nos passando o rodo quando o novelo se abre pra mordermos a lógica e nos perguntarmos por que alguma surpresa ainda nos brota; como Nicanor apodrecendo e fazendo a diferença. Ou como os irmãos que de leve gingam entre o respeito aos códigos básicos de convívio, o carinho com um caçula e as sutis e letais cobranças de favores.

Ariel pra uma porção será “aquele que você odeia amar nesse instante”, mais “um louco que não pode errar”. Ele compreende o sistema como as formas bakongo ensinam, vivendo e pensando o Fu (o sistema engenhado e compreendido por dentro), manjando o Kimpa (sistema captado de fora, sentida sua dimensão, sua forma e as trocas de posição no tabuleiro), erguendo pilares como um Nganga. A caneta de Hamilton Borges é craque, dibra (dibo em kikongo é discurso) vãos e rombos do mapa sórdido que delineia. Vibra, machuca, regenera e nos arde. A esperança mostra várias faces, da chocha e trincada à agigantada. Ogum azula o livro, bafora e tilinta a abertura de picadilhas, comanda a gama de construir torres e armas e recriar a realidade. É de devastar e de estudar, de conceber e de vingar. Fechar esse livro é banhar a garganta e a boca do estômago com calda de brasa. Como oriente de uma geração, é ficção à altura do que foi a autobiografia de Malcolm X.

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