Artigo Cida Pedrosa Ana Siqueira Divulgacao

 

 

Na nota editorial do livro Solo para vialejo (Cepe Editora, 2019), de Cida Pedrosa, afirmei tratar-se de um longo poema épico-lírico. Se o lírico é uma manifestação poética que prima pelas representações das experiências do eu, e o épico uma forma que, tradicionalmente, se associa às grandes narrativas de um povo e de seus feitos, que se dirá de um poema que tenta fundir esses dois rios?

A epopeia clássica supostamente entra em decadência a partir do século XVIII, quando o romance, seu sucessor (?) infiel, caiu no gosto da ascendente burguesia europeia e passou a ser o gênero narrativo mais nobre. O herói moderno, imperfeito, incompleto, mais próximo do humano comum, vence o herói que tinha o tamanho de seu mundo, o inteiriço herói clássico. Se o último é tomado como modelo exemplar de um povo, o primeiro é valorizado, dentro de um zeitgeist romântico, justo por suas características individuais.

Um caminho é pensar no declínio da epopeia como um afastamento do ethos original que a justificava, hipótese que remete a um essencialismo parmenidiano. Outro caminho seria concordar com Heráclito que “o ser advém”, e que os gêneros literários foram evoluindo junto com as formações sociais: o leitor moderno voltaria aos gêneros antigos com outra sensibilidade, que, ao mesmo tempo, ver-se-ia modificada por esse contato.

Se é verdade a primeira hipótese, e se o conceito de Nação é uma invenção do Romantismo, é óbvio que a epopeia estava em maus lençóis para assumir o papel de DJ da modernidade. Lukács e Poe, entre outros, vaticinaram, de alguma forma, que a modernidade tornou a epopeia inviável para a pista de dança. Não sei se é tão simples.

Fernand Braudel acreditava que a percepção do tempo é múltipla, não mais a seccionada em acontecimentos — o tempo breve —, cronológica e sequencialmente organizados, mas desdobrada em movimentos cíclicos que, por sua vez fazem emergir mentalidades há muito submersas para dar luz a novas estéticas, estruturas e arranjos sociais. É o que ele chama de fenômeno da longa duração. Octavio Paz diz que “o velho de milênios também pode atingir a modernidade: basta que se apresente como uma negação da tradição e que nos proponha outra”. Dito de outra forma: os barrocos não sumiram da balada quando surgiram os neoclássicos, e a epopeia não fechou a conta e foi para a casa quando a diva romance começou seu reinado na pista da modernidade ao lado da poesia lírica, que também se transformou em algo distinto do que era, a ponto de confundir-se com o próprio conceito de poesia.

“A dinâmica de atribuir novos sentidos para elementos formais da épica já está presente na Eneida e nos Lusíadas, que fazem poesia à maneira de modelos anteriores (homérico e virgiliano)”, afirma o professor da Universidade Clermont Auvergne Saulo Neiva, um dos grandes estudiosos da continuidade do épico no final do século XX no Brasil. Não há, para ele, como dissociar os fenômenos da transmissão e da transformação de um gênero. “Se o poema acentua a ruptura, contribui para transmitir o gênero e, inversamente, se se inscreve explicitamente na transmissão, ele o transforma”, esclarece.

A última rave da epopeia por aqui foi Caramuru (1781), de Frei José de Santa Rita Durão, e os imitadores de Camões dependeriam da chegada de um Fernando Pessoa para ensinar outros passos de dança. Já Pablo Neruda esqueceu de chamar os pretos para a festa de construção de sua América Latina particular no Canto geral (1950), e atravessou o samba. “Hang the DJ”? Em tempos de cancelamento, Morrissey nem deveria me servir de exemplo.

Transmissão e transformação são ameaçadas pela crítica da modernidade, que defende a substituição da épica pelo romance, “hegelianismo requentado ao longo do século XX”, defende Neiva, que analisou as obras de poetas renovaram o épico naquele fim de século, como Gerardo Mello Mourão, Marcus Accioly, Haroldo de Campos e Carlos Nejar. O tom grandiloquente, em contraste com sequências de intimidade, a utilização do decassílabo ou de outros metros, bem como a presença da autobiografia e da leitura da História são marcas deste épico contemporâneo. Solo para vialejo (vencedor nas categorias “poesia” e “livro do ano” do Jabuti 2020) se insere neste movimento de transmissão/transformação, mas abre sua própria trilha. Veio para trazer de volta o som e por fogo na festa. Se a balada andava meio caidaça, este livro zera a playlist.

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Pode-se dizer que Solo para vialejo reinventa dois temas caros ao épico, mas que o romance latino-americano a partir do século XX visitou com alguma frequência. Falo dos temas do nóstos (do grego νόστος, “regresso”, “viagem de volta ao lar, à pátria”) e da telemaquia, ou a busca do pai, termo que deriva de Telêmaco, filho de Ulisses que parte em busca no pai nos primeiros quatro cantos da Odisseia, nesse ancestral do Bildungsroman que culmina com o rito de passagem do filho para a “vida adulta”.

Por que Solo para vialejo reinventa esses temas? Por um lado, não se trata do heroísmo de voltar à casa depois da guerra, mas a guerra mesma de descobrir se ainda existe casa a que voltar. Não seria essa uma alegoria para a diáspora, que se trata em suas diferentes dimensões ao longo do poema? O retorno é, pois, menos destino, meta, mais travessia, como demonstra a abertura — sobre a qual discorro a seguir. Por outro, se Telêmaco se integra ao discurso patriarcal na cumplicidade do massacre promovido por seu pai, as personagens do épico-lírico de Cida lutam para não ter suas vozes silenciadas, para resistir ao genocídio — físico ou da memória. Telêmaco não empunha a espada para matar, Telêmaco toca gaita para viver.

Tradicionalmente, a conjunção desses temas nos apresenta imagens do patriarcado, compreendido menos como uma formação social e mais como uma mentalidade de preservação do paradigma da dominação. A telemaquia aparece sutilmente neste épico-lírico, de uma forma quase antitética. O pai, em Solo para vialejo, não será espada, mas o próprio instrumento musical: “em busca de ti me encontro// a gaita do meu pai/ paraíso perdido prometido/ um horizonte que não é mar”, “te encontro/me encontro/ te encontro // no vialejo azul que ganhei do meu pai quando menina e nunca aprendi a tocar”. O som, que perpassa a construção memorialística do livro, é uma arquitetura de afeto, envolve uma genealogia identitária.

Nos grandes livros, a capacidade de condensar em suas primeiras palavras a potência poética de toda a obra é como um microcosmo explodindo ao longo das páginas, faísca do Big Bang ecoando até o fim do mundo. Se a forma clássica da invocação (“Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida”) já não serve, o desafio de sintetizar o tema na abertura do livro torna-se maior. Solo para vialejo tem essa virtude.

O verbo “partir”, primeira palavra do poema, sugere o tema da viagem. Mas a partida deve entender-se como duplo movimento: os versos antitéticos “parto em busca de ti” e “parto em busca de mim” preparam um dos eixos centrais que caracterizam este épico-lírico: a travessia (utópica?) em busca da(s) identidade(s). “A tensão entre memórias pessoais e coletivas funciona como um pêndulo entre o ‘dentro’ e o ‘fora’, entre o que pertence ao domínio da memória afetiva do indivíduo e o que está fincado numa memória cultural compartilhada”, afirmei. Essa tensão é reforçada, ainda na primeira página, pela antítese leveza/peso, na imagem do algodão como metáfora ambivalente que transita entre a reminiscência infantil e o doloroso trabalho nos campos de algodão (“tirar da flor a seda branca / : pesa/pesa/pesa// flor árida/ flor árida/ flor árida// o fardo da minha infância”).

A imagem poderosa dos campos de algodão, retomada ao longo do poema, aliás, ressoa numa negritude para além das fronteiras do Brasil, na cultura da plantation de um sangrento Sul do Norte, que insiste em sufocar seus Georges Floyds, que reavivam uma memória de sofrimento que não quer ser esquecida. Por aqui, seguimos esquecendo nossos Miguéis, Joões Albertos, Dandaras, Marcus Vinícius, fantasmas de corpos negros violentados e silenciados de diferentes formas diante do terror.

“Eles não viram que eu estava com a roupa da escola, mãe?”, perguntou Marcus antes de morrer com uma bala disparada por uma arma da Polícia do Rio de Janeiro. Na sinuosa escala cromática de Solo para vialejo, esses fantasmas parecem cantar para que não os esqueçamos. “Cida mobiliza ‘vozes’ de um passado coletivo que vai para além do próprio passado pessoal (‘antes de os homens brancos chegarem’) e tenta inscrevê-las na memória do seu canto, que é escrito porém ritmado. Um esforço de ‘rememorar’ (busca deliberada) e não apenas ‘evocar’ (deixar surgir as lembranças) é, por si, um esforço que acompanhou a épica ao longo dos séculos”, defende Neiva. Com efeito, a memória fugidia de nossas dores sublimadas pulsa nos versos de Solo para vialejo, no “negro ser”, onde o “ser” é substantivo e verbo.

Uma arqueologia de referências pop compõe o imaginário musical afetivo de formação no poema, que atualiza, assim, a lira. E o faz subvertendo qualquer sentimento de subalternidade, mas sem ufanismo nacionalista: o xote dialoga com o foxtrote, Luiz Gonzaga papeia com Bob Dylan, Robert Johnson-Riobaldo-Lampião na encruzilhada trocanduma ideia com o Diabo, no meio do redemoinho. A maturidade de Cida faz com que esse intertexto/ interdiscurso fuja dos cacoetes de certa poesia contemporânea, mais preocupada em mimetizar maneirismos pop em busca de um “espírito da época” do que em buscar o nervo da poesia.

Por isso o projeto do livro, acredito, não rejeita apenas a subalternidade com respeito à cultura norte-americana: deve considerar-se Solo para vialejo numa perspectiva crítica frente ao modelo capitalista que rege, em certa medida, as relações de poder que marcam o sistema literário brasileiro. “Há uma tendência de achar que tudo que se escreve no eixo Sul-Sudeste é um projeto de Nação, e que tudo que é escrito a partir do Nordeste é regional. Ou seja, você tem uma situação de subalternidade política na literatura”, afirma a poeta comunista. “Por que o Brasil não pode ser visto a partir da Amazônia ou a partir do Bodocó? Por que precisa ser visto a partir das ruas de São Paulo?”, questiona. Com efeito, o crítico que ainda usa o termo “regional” num sentido pejorativo diz mais sobre suas próprias lentes embaçadas do que sobre a literatura. A autora de Solo para vialejo parece piscar um olho para Tolstói enquanto ri desse crítico.