Claudia Rankine Abremmer CC BY SA 3.0 REPRODUCAO jan.21

 

Em tempos de Black Lives Matter, como é possível evitar que a repetição do óbvio — vidas negras importam — seja esvaziado de sentido, reduzido a hashtag, transformado em produto? A poesia de Claudia Rankine não responde à pergunta que atormenta sua tradutora, mas desperta uma série de questionamentos sobre como falar de experiências negras sem esquecer que usamos uma linguagem que nos é hostil. Nós disputamos os significados das palavras, nos apropriamos de termos outrora pejorativos, nós criamos literatura, música, teoria, ciência, ocupamos espaços no debate público, mas sempre há lembretes de que não somos bem-vindas. Na violência policial e na impunidade dos agentes, no desmonte de políticas públicas de saúde e educação, nas microagressões em conversas no dia a dia, na cobertura jornalística, repete-se a mensagem mentirosa de que somos descartáveis. Como usar a linguagem que desvaloriza nossas existências para observá-las em suas sutilezas e contradições?

Em Cidadã, Rankine mistura fragmentos de prosa, ensaios, poemas, roteiros de videoinstalações e estabelece um diálogo com diversos artistas visuais que transitam pela pintura, colagem, fotografia e artes visuais. Dialoga com James Baldwin, Franz Fanon, Zora Neale Hurston e com um youtuber que ironiza a forma como o mundo da arte contemporânea trata artistas negros. No entanto, não se trata de reunir discursos e análises tão diferentes em busca de uma síntese da experiência negra coletiva, mas de uma observação cuidadosa de como, entre nossas diferenças, somos indivíduos atravessados pela linguagem.

A autora cria um jogo curioso com o leitor neste livro. Nos capítulos dedicados aos fragmentos, breves relatos do que Grada Kilomba chama de episódios de racismo cotidiano, Rankine usa a terceira pessoa do singular em vez da primeira, criando um estranhamento. Conhecemos aspectos íntimos da narradora, suas reações, seu cansaço, questionamentos sobre a seriedade de seus incômodos, a memória, suas amizades, mas narradora se refere o tempo todo a você. A substituição do eu não apenas chama atenção para uma subjetividade que muitas vezes é rejeitada pela sociedade, pois muitas vezes pessoas negras são consideradas sensíveis demais diante uma agressão racista, mas também cria várias possibilidades de leitura diante do relato:

Você gosta de pensar que a memória vai longe no passado embora recordar nunca seja recomendado. Esqueça tudo isso, diz o mundo. O mundo tem muita prática nisso. Ninguém deveria se apoiar nos fatos que sustentam a narrativa, os fatos que criam vidas. A seu ver, sentimentos são o que criam uma pessoa, algo relutante, uma coisa selvagem vandalizando o que o crânio protege, seja lá o que for. Aquelas sensações formam um alguém. Então as dores de cabeça começam. Não use óculos de sol dentro de casa, diz o mundo, embora eles acalmem, aliviem a visão, aliviem você.

O que o leitor pode ter em comum com essa narradora, uma mulher negra da classe média, professora universitária? Qual a medida da distância entre você e eu quando pensamos na credibilidade atribuídas a um corpo branco e um corpo negro? Ao colocar você, leitor, nessa experiência com a linguagem, é notável como há pessoas que vivem num atrito constante com as palavras. Para alguns há um reconhecimento entre seu corpo e a experiência narrada, para outros há uma descoberta da diferença.

Entre técnicas de escrita, narrativa ou audiovisual, há uma fórmula “não conte, mostre”. Em vários momentos da tradução me ocorreu que o projeto de Rankine em Cidadã é mostrar. Como é para uma pessoa negra quando uma amiga de repente usa uma injúria racista como “brincadeira”, quando intelectuais brancos presumem que é apenas responsabilidade dos negros se manifestarem contra a violência policial, como é ser recebida aos berros por uma terapeuta incapaz de imaginar que a mulher negra diante dela é uma cliente. No entanto, Rankine faz isso com descrições sucintas, destacando acontecimentos e diálogos.

Um dos aspectos mais interessantes de Cidadã é como ela usa ambiguidades de forma proposital, fazendo alusão aos vários questionamentos que uma pessoa negra recebe ao mencionar um episódio racista. “Você tem certeza?” “Não é coisa da sua cabeça?” A repetição dessas perguntas ao longo da vida faz com que a narradora duvide de suas percepções, de sua memória. A imprecisão e a possibilidade de vários significados evocam uma sensação de instabilidade em relação aos próprios sentidos. Eu ouvi o que ele disse? Posso confiar nas palavras? Outro ponto interessante é como a escritora aborda o acúmulo — de experiências, violências, lutos e relatos — que provoca dores de cabeça, tensão, enjoos, cansaço e se reflete em repetições e intertextualidade. As referências a fragmentos num ensaio, uma frase de prosa que ressurge num poema, essa continuidade em momentos e registros diferentes também é típica da vida negra numa sociedade racista; mudam os lugares, os momentos, mas as microagressões acontecem quando menos se espera.

Um dos desafios da tradução é trazer para o leitor brasileiro um pouco de contexto sobre acontecimentos como a morte de Rodney King, que provocou uma série de protestos em Los Angeles, ou o assassinato de Trayvon Martin, que despertou várias reações, entre elas a fundação do movimento Black Lives Matter em 2013. Uma particularidade da edição brasileira foi a atualização de um poema, uma ladainha em memória de pessoas negras assassinadas pela polícia, incluindo Breonna Taylor e George Floyd. Se fosse um processo de transcriação, nossa versão incluiria nomes como Maria Eduarda, Marcos Vinicius Silva, Ágatha Félix, João Pedro Mattos, Emily Victoria e Rebeca Beatriz Rodrigues dos Santos junto dos versos: “porque homens brancos não conseguem/ policiar sua imaginação/ pessoas negras estão morrendo.”

Nos últimos anos, me perguntam mais de uma vez se é emocionalmente desgastante traduzir textos que analisem a desumanização de corpos negros, teorias sobre machismo, racismo, branquitude e seus impactos nas vidas de mulheres negras. É desafiador, mas o mais difícil é a atualidade destes textos, o quanto a realidade ainda os torna tão necessários. O fato de ainda não se tornaram apenas o registro de um passado que não desejamos repetir.