Ensaio Arte Indigena 1 Isabella Matheus Pinacoteca de Sao Paulo marco.21

O artista Denilson Baniwa desenvolvendo obra para a mostra Véxoa: Nós sabemos, na Pinacoteca de São Paulo

 

 

Em 2017, encarregada do desafio de verter o ensaio Reclaiming animism (Reativar o animismo), da filósofa Isabelle Stengers, para a língua portuguesa, justifiquei em nota de rodapé a opção um tanto livre de traduzir “to reclaim” como “reativar” [nota 1]. Conforme explicitei, o verbo seria também traduzível como “‘reivindicar’, ‘recuperar’, ‘reformar’, ‘regenerar’ e ‘reafirmar’”. Porém, seria preciso frisar que “reclaiming”, na teorização da pensadora belga, é necessariamente vinculado a “‘curar’, a ‘reapropriar’, a ‘aprender/ensinar de novo’, a ‘lutar’, a ‘tornar-se capaz de restaurar a vida onde ela se encontra envenenada’”. A decisão por traduzir “to reclaim” como “reativar”, assim, pretendeu apontar para a convergência entre transformação social e política e processos terapêuticos: aprender o que é necessário para habitar novamente o que foi destruído passaria necessariamente por um processo curativo.

Relembro Stengers hoje, movida pela interlocução com alguns dos artistas e pensadores indígenas com os quais tenho tido oportunidade de colaborar como uma das pesquisadoras do projeto Culturas do Antirracismo na América Latina, da Universidade de Manchester (Inglaterra). Ainda há muito trabalho a ser feito, mas comemoro os caminhos pelos quais o protagonismo indígena na produção artística e cultural contemporânea tem presentificado a conjugação entre cura e construção política no Brasil. A partir do diálogo com a pesquisadora Naine Terena, responsável pela curadoria de Véxoa: Nós sabemos, primeira exposição de arte indígena da história da Pinacoteca de São Paulo, composta por obras de 23 artistas, coletivos e redes, entendo que há política nas telas multicoloridas do MAHKU (Movimento dos Artistas Huni Kuin), pela própria afirmação da singularidade da tradição visionária do “nixi pae”, expressão com a qual os Huni Kuin denominam a ayahuasca; assim como há cura nas imagens feitas pelo fotógrafo Edgar Kanaykõ [nota 2] no Acampamento Terra Livre, em Brasília, mais explicitamente ligadas à militância para que os direitos indígenas consagrados na Constituição sejam devidamente respeitados [nota 3].

O percurso do artista multidisciplinar Denilson Baniwa tem sido dos mais marcantes no que diz respeito à reativação de formas de vida humanas e não humanas em cenários de deterioração. Como exemplos, podemos pensar em sua denúncia do envenenamento de alimentos pelos pesticidas do agronegócio (vide a mostra Terra Brasilis: O agro não é pop!, realizada em 2018 na Galeria de Arte da Universidade Federal Fluminense, em Niterói) e de contaminação de rios pelo mercúrio do garimpo (em Azougue 80, 2018). Mais recentemente, para Véxoa, Denilson propôs um trabalho em três partes, de título Nada que é dourado permanece, sendo uma delas “2: Amáka (Coivara)”, na qual acondiciona cinzas remanescentes do incêndio do Museu Nacional, ocorrido em 2 de setembro de 2018, em um conjunto de potes de vidro. “Amáka” é o termo em Baniwa para designar um lugar queimado para formar espaço para o plantio, seguindo a técnica da coivara, cujo propósito consiste no preparo da roça. Com “1: Hilo”, Denilson deu início a uma ação de plantio e semeadura de plantas medicinais e ornamentais, flores e temperos no estacionamento da Pinacoteca, exatamente dois anos após o incidente que devastou a instituição no Rio de Janeiro. Já “3: Terra preta de índio” consiste no registro em vídeo da ação realizada na área externa, transmitida ao vivo e exibida também na sala da exposição.

Nos dias em que pude estar com Denilson ao longo do desenvolvimento da obra, vinham se aliar à composição borboletas, atraídas pelas flores, e sabiás, frequentadores assíduos das poças que se formavam com a rega do jardim. Lembro de ter sido atravessada pela figura da dupla captura entre a vespa e a orquídea trazida por Gilles Deleuze nos Diálogos com Claire Parnet, na qual a relação entre a polinizadora e sua parceira de cópula não se dá por assimilação, mas por núpcias assimétricas entre as duas. A imagem me fez pensar que, ao convidar plantas e flores para habitar as juntas dos paralelepípedos do estacionamento da Pinacoteca, o artista catalisou um modo de criatividade que passou então a ser gestado simbioticamente com outras espécies, produzindo pontes e agenciamentos que, no argumento de Stengers, estão no coração do gesto de “reativar”.

O espaço antes destinado aos automóveis é assim submetido a um processo curativo pelas mãos de Denilson e seus aliados vegetais e animais. Juntos, eles contracolonizam a paisagem urbana e germinam vida no que supostamente era pura aridez entre os blocos de pedra. A cena remete ao que nos disse Stengers sobre as hortas e suas “formas de inteligência coletiva” na ocasião de uma passagem pelo Rio de Janeiro em 2016 [nota 4]: “o ato de cultivar, na verdade, é humano-não-humano. É algo que implica grandes decisões políticas. As plantas crescem e temos que cuidar delas, ou seja, temos que desdobrar nossa temporalidade humana para a temporalidade das plantas”.

Em uma pausa para beber água, Denilson me olha entoando os versos de Chico Buarque e Milton Nascimento: “na minha cabeça, o que toca é ‘afagar a terra/ conhecer os desejos da terra/ cio da terra, a propícia estação/ e fecundar o chão’”. Feita a coivara e fecundado o chão no mais antigo museu da cidade, restitui-se o território: São Paulo é terra indígena.

A restituição do território é também chave do documentário Nũhũ yãg mũ yõg hãm: Essa terra é nossa! (2020), dos diretores Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero — mais uma obra incontornável da produção indígena contemporânea, cuja montagem foi finalizada durante a pandemia de covid-19. Aqui é o audiovisual que refunda o território tradicional dos Tikmũ’ũn, povo que reside no nordeste de Minas Gerais. A obra evidencia que a demarcação da terra atribuída aos Tikmũ’ũn não faz jus à dimensão integral das áreas em que originalmente viviam. Os cantos registrados no filme traçam a cartografia do território, convocando formas de vida não humanas e expressando saudades das “árvores compridas” com as quais antes co-existiam no local. O cinema Tikmũ’ũn, dessa forma, cumpre o papel não apenas de reativar os cantos enraizados na terra, mas a terra enraizada nos cantos.

Também em Minas, entre setembro e outubro de 2020, o Festival Circuito Urbano de Arte (Cura) recebeu alguns artistas indígenas para uma série de ações em Belo Horizonte. Daiara Tukano fez história ao pintar o mural Selva mãe do Rio Menino na fachada cega de 1.006m² no Edifício Levy, no centro de Belo Horizonte. Além disso, a convite da Curadoria de Artes Visuais do Centro Cultural São Paulo, Daiara desenvolveu uma exposição individual na qual podemos conhecer alguns aspectos da profunda pesquisa desenvolvida por ela sobre os hori, que integram a expressão e percepção visual do Caapi (termo pelo qual a ayahuasca é conhecida no âmbito dos saberes dos Tukano), que está também em Véxoa. Já Jaider Esbell, artista macuxi de Roraima, instalou nos arcos do Viaduto Santa Tereza, bastante conhecido em Belo Horizonte, uma gigante escultura inflável de serpentes, de aproximadamente 40 metros. Tamanha foi a repercussão da obra na cidade que pipocaram inclusive fake news de tom racista e xenofóbico. Presente também em Véxoa, Jaider realiza no momento a exposição individual Apresentação: Ruku na Galeria Millan, em São Paulo, com assistência curatorial de Paula Berbert.

Confirma-se, nos trabalhos mencionados acima, uma constatação feita por Ailton Krenak em uma recente conversa: há uma relação dialógica entre luta indígena e expressão artística indígena. A propósito, sobre próximos trabalhos de Ailton, cabe observar que os seus já clássicos Ideias para adiar o fim do mundo (2019) e A vida não é útil (2020) abriram caminho para um próximo livro, diferente dos anteriores. Será um projeto de fôlego, com pesquisa coordenada por Andreia Duarte. A publicação está prevista para 2022, pela Companhia das Letras. É menos conhecido o fato de que Ailton é também artista visual. Para quem tiver interesse em conhecer esse aspecto de sua trajetória, há obras dele em exposição em Véxoa, que fica em cartaz até 22 de março.

Outro acontecimento editorial precioso, que deve se dar ainda em 2021, será o livro de memórias do cacique Raoni Metuktire. O histórico líder da luta pelos direitos indígenas já deu mais de 20 horas de entrevistas para a publicação, sempre em Kayapó. O material está sendo transcrito na língua indígena e só depois será traduzido para o português. Quem coordena o processo é Fernando Niemeyer, ao lado de um grupo de intelectuais kayapó que inclui mais de um neto de Raoni, e em parceria com o Instituto Raoni. O processo de transcrição e tradução está sendo apoiado pelo Instituto Socioambiental e pelo Instituto Sociedade, População e Natureza. É grande também a expectativa pelo livro de Jera Guarani, liderança da aldeia Kalipety, sobre sua vivência na Terra Indígena Tenondé Porã. Os capítulos propõem abordar o cuidado com a aldeia, a terra, o corpo e o outro. Com previsão de publicação também neste ano, a edição tem colaboração de Bruna Keese. O livro de Raoni sai pela Companhia das Letras; o de Jera, pela Editora Zahar.

Apesar de toda essa efervescência intelectual e criativa, o senso comum ainda insiste em estereótipos de indígenas genéricos, que suposta e necessariamente viveriam em áreas remotas, florestais ou rurais, desprovidos de computadores, celulares e outros dispositivos tecnológicos. Fazer frente a essas caricaturas anacronizantes replicadas pela cultura de massa, pela história da arte, pela cinematografia, e assim por diante, é um compromisso que não pode ser negligenciado. Alguns dos motivos históricos dessas distorções ficam patentes, por exemplo, quando analisamos obras do século XIX como Moema e A primeira missa do Brasil, de Victor Meirelles, que violentaram os povos indígenas com a produção de distorções: na primeira, sob a lente do indianismo romântico, a mulher indígena tem que morrer para que a nação possa nascer; na segunda, os indígenas assistem de forma supostamente pacífica, acanhados nos cantos, à cerimônia litúrgica que instaura o “descobrimento”.

Obras como essas constituíram e corroboraram um imaginário racista e uma ideologia extrativista que situam indígenas no passado, não apenas os excluindo da historiografia da arte, mas legitimando o roubo de seus territórios. Fiz referência aqui a Meirelles, mas poderia falar também, no âmbito da literatura, do Caramuru de Santa Rita Durão e de Iracema, de José de Alencar, dentre outros exemplos possíveis. É urgente que esse debate sobre o legado nocivo do indianismo no romantismo, mas também no modernismo, com múltiplos ecos na contemporaneidade, ganhe cada vez mais impulso em museus, salas de aula e mídias de amplo alcance, com o protagonismo de artistas e intelectuais indígenas — e com a responsabilidade social de todos.

Se tem havido um aumento na visibilidade da produção artística e cultural indígena no Brasil, é sobretudo como fruto de uma luta histórica levada adiante pelos povos originários. Celebremos que existam atualmente mais museus, editoras, festivais de cinema e outros agentes da cultura no Brasil se perguntando não apenas quais histórias querem transmitir, mas quem narra essas histórias e quais problemas de representação devem ser enfrentados. Minha aposta vai no sentido de que a reativação que está em curso nas artes, na cultura e na produção intelectual no país graças ao protagonismo indígena não irá se dissipar como efêmera e pontual, mas sim consolidar um impacto perene e estrutural. Há muitas pessoas, alianças e formas de inteligência coletiva empenhadas nesse sentido. Que levemos adiante o compromisso de restaurar a vida também no que há de envenenado no nosso repertório sensível.

NOTAS

[nota 1] Disponível gratuitamente para download no site das Edições Chão da Feira. https://chaodafeira.com/catalogo/caderno62/

[nota 2] Sobre o trabalho de Edgar Kanaykõ, ver o ensaio Uma câmera na mão e um maracá na outra, de Paulo Maya. Disponível em: https://www.revistatransas.com/2018/10/25/uma_camera_um_maraca/

[nota 3] Sobre isso, ver o depoimento de Naine Terena no curta documentário Terra fértil: Véxoa e a arte indígena na Pinacoteca de São Paulo (dir. Débora McDowell e Jamille Pinheiro Dias, 2021), disponível no canal do projeto Culturas do Antirracismo na América Latina no YouTube: youtube.com/watch?v=7VnYH4VgaAE&t=507s

[nota 4] Ver Uma ciência triste é aquela em que não se dança: Conversações com Isabelle Stengers, entrevista que realizamos coletivamente com a filósofa, disponível em revistas.usp.br/ra/article/view/121937/120086