Mat. Capa Virginia 3 Luisa Vasconcelos abril.21

 

 

Já havia traduzido coisas difíceis antes, como Rabiscado no teatro, de Mallarmé, ou Ética, de Spinoza. No caso do livro de Spinoza, renovei o latim que havia aprendido num seminário católico antes de ser expulso, ali pelos meus 13, 14 anos, e munido de várias traduções anteriores, tanto para o português como para as outras línguas que leio, lancei-me na aventura. Quanto ao opúsculo de Mallarmé sobre suas noites de teatro, além de ler um monte de material sobre o poeta francês, me vali da tradução comentada de Robert Greer Cohn. Nos dois casos, tem uma coisa curiosa que me ajudou muito: transformar-me na pessoa que estava traduzindo. Por dois anos, fui o polidor de lentes de Haia; por outros dois, o poeta parisiense que dava aulas de inglês. No caso de Virginia, que traduzo desde 2011, começando com Mrs. Dalloway, não tive essa identificação pessoal, embora me identifique profundamente com sua escrita. Questão de gênero, talvez.

Comecei a traduzir Virginia, incentivado por Rejane Dias, da Autêntica Editora, quando sua obra entrou em domínio público, em 2012. Até então, não havia traduzido nenhuma obra de ficção. Era uma estreia. Depois disso, tirando um desvio ou outro (Bartleby, de Herman Melville; Retrato do artista quando jovem, de James Joyce), tenho me dedicado a traduzir Virginia: alguns dos romances, uma coletânea de contos e outra de ensaios. E cheguei, finalmente, ou fatalmente, no início de 2019, ao celebradíssimo As ondas.

Sabia que era um livro complexo, um livro em que Virginia rompia não apenas com a estética da ficção da época, mas também com a estética de seus romances anteriores. Havia folheado o livro anteriormente, mas nunca o lera por inteiro. Quando comecei a traduzi-lo, a surpresa foi grande.

Muitas, muitíssimas passagens eu simplesmente não entendia. Não era questão de saber o significado das palavras, mas de entender o significado das frases. O que ela está querendo dizer com isso? E eu não boto nada no papel que eu mesmo não tenha entendido, embora, evidentemente, possa achar que tenha entendido quando realmente não entendi. Foram muitas as vezes em que tomei a decisão de desistir da tradução por não ter entendido alguma frase ou outra. Mas, tendo chegado ao final, posso dizer que não deixei nenhum enigma para trás, embora, obviamente, possa ter me enganado no entendimento e na (suposta) solução.

Mas essas soluções só são possíveis por causa dos recursos a que hoje temos acesso. No caso de As ondas, foi crucial ter acesso à reprodução de dois dos rascunhos do livro (alguns se perderam). Há duas edições desses rascunhos; eu dispunha da edição organizada por J. W. Graham (The Waves: The two holograph drafts). Em muitos casos, é possível encontrar nesses rascunhos uma versão da passagem respectiva do livro. E, em geral, o que ela fez, entre uma versão e outra, foi cortar aquilo que tornava o texto compreensível. Ela não estava fazendo nada mais do que seguir sua própria máxima: “saturar cada átomo”, “eliminar todo o refugo, todo o torpor, toda a superfluidade: dar o momento por inteiro” (Diário, 28/11/1928). Obviamente, na tradução, o mistério permanece. Mas, pelo menos, a leitura da cópia holográfica me permitiu saber o que eu estava traduzindo. (Esses mistérios poderiam ser revelados aos leitores se eu fizesse as notas que fiz nos outros livros de Virginia que traduzi, mas por problemas de lesão por esforço repetitivo em minha mão direita, não pude fazer isso na tradução de As ondas).

E isso me faz falar de outra estratégia de minha prática de tradução que só é possível por causa dos recursos proporcionados pela internet. Se não entendo alguma passagem, busco na internet por artigos ou livros que tenham feito algum comentário a respeito. Obviamente, esses artigos ou livros não me fornecem a solução, mas, ao comentar uma determinada passagem, podem me dar uma pista sobre o significado do que estou procurando. Para cada uma dessas “descobertas”, abro um arquivo nomeado com a passagem (em inglês) e registro todos os comentários feitos, no artigo ou livro, sobre a passagem em questão. No caso de As ondas, são mais de 600 arquivos.

Embora me preocupe, obviamente, com o significado, me preocupo ainda mais com o som, com o ritmo, com a dança do significante. Principalmente com produções da Virginia, que além de ter escrito textos que escorrem ondulantes pela página, também escreveu belas passagens sobre a questão do ritmo. E para isso não é preciso sair caçando aliterações, assonâncias, repetições, para reproduzi-las fielmente no ponto exato em que elas ocorrem ou compensá-las, criando-as num outro ponto. Para mim, o mais importante é captar o ritmo da prosa do original e fazer a prosa da tradução dançar no mesmo compasso.

Fazer como Bernard, o personagem de As ondas que às vezes funciona como um alter ego da autora: “Agora estou pegando o jeito da coisa. Agora estou conseguindo fazer a batida dele entrar na minha cabeça (o ritmo é a coisa principal da escrita). Agora, sem pausa, vou começar, no embalo mesmo do correr da pena (…)”.

Sim, a leitura de As ondas não é nada fácil. É preciso pegar o jeito da coisa. Mas, depois que se entra no embalo, a aventura vira uma valsa.