Amizade, pandemia, força de cura: este texto de Silviano Santiago foi lido no evento "Arquivo Ana Chiara", ciclo de conversas online em homenagem à professora da UERJ Ana Cristina Chiara (foto). O ciclo, realizado na última sexta (16), está disponível em vídeo no canal Bioescritas, no Youtube.
***
“Sopra onde dói que o sopro tudo cura”.
Ana Chiara, “Brigando com as feras”, Enxerto para uma vida feliz
Antigamente, Ana e eu éramos amigos de conversas em café do bairro ou da esquina.
Depois e até os dias pandêmicos de hoje, passamos a trocar mensagens pela internet. Sempre aos sábados. O hábito começou como uma brincadeira. Eu escrevia coluna no suplemento Sabático. De quinze em quinze dias, Ana me lia e a conversa, tendo como fundo o papel jornal e a letra de imprensa, era despertada. O suplemento literário do Estadão acabou. Passamos a conversar em tela iluminada e bilhetes digitalizados. Para o anexo à mensagem iam os links para alguma música e as reproduções de fotos. Nosso sabático sobreviveu à luz da tecnologia, alicerçando-se na troca de anotações críticas e de observações de caráter particular, que se alimentavam do dia a dia da semana que se fora.
A intimidade com pessoas próximas, com posses e objetos privilegiados, com jornais, artigos e livros, e com os respectivos eus, virou uma cisterna. Água em nada salobra. Lançávamos o balde lá no fundo do reservatório de acontecimentos miúdos, e de lá o trazíamos até a superfície. Baldes e mais baldes de energia semanal.
Com o correr do tempo, as conversas de café ganharam asas e voaram, sem deixar maior lembrança que o sentimento de irmandade na conjugação dos verbos mais reservados de nossa experiência de vida. Mas as mensagens digitalizadas continuam saltitantes na tela acesa do computador e, quando lhes falei da homenagem que iríamos prestar à autora delas, ficaram felizes e sôfregas, à espera de meu olhar retrospectivo e indiscreto. Que não fosse muito longe no tempo nem abusasse do presente, — fui alertado por elas.
Já imaginam que soube imediatamente o que repetiria e diria nessa manhã. As palavras digitalizadas estão à espreita de todos nós que nos reunimos — no dia de hoje — para demonstrar nossa amizade, admiração e carinho pela colega e amiga Ana Chiara.
Recomeço. Chegou a oportunidade de dizer a todas e a todos vocês o que ela me escreveu quando eu lhe tinha dito que estava a escrever minhas memórias. Foi direta e sincera, como sempre: “Escrever memórias… nossa é muito difícil. Acho que a operação de aneurisma fez com que algumas fugissem qdo me abriram a cabeça”.
A Ana não é Maria, mas é das Dores e é dos Remédios. Nessa mensagem, linhas antes, já tinha se encostado no Neymar: “sinto tanta pena do Neymar levando pancadas no pé. espero que ele seja poupado! espero que o futebol traga alegria e esquecimento…”. A sensação física de dor logo flui de seu corpo para o alheio e é sentida na empatia pelo craque que muitas vezes sofre pancadas na perna e ainda é humilhado em campo. Não sei se a lesão foi no quinto metatarso do pé direito do jogador, sei que a pancada foi tão forte que impediu que, no vídeo, a alegria do goleador transbordasse e se espalhasse em esquecimento da dor. A carreira do Neymar continua e seguirá a maratona na busca — me escreveu Ana — de um “dom divino”, que compense a dor e termine por apagá-la do horizonte de suas e nossas expectativas.
Para a professora de literatura faz sentido a empatia pelo pé lesionado do Neymar. Ela é obrigada a se deslocar até a UERJ, calçando aquela incômoda e horrorosa bota ortopédica. A mesma mensagem acaba por se esgueirar por entre as quatro paredes do cotidiano e autobiografa a correspondente com confissão temerosa e sincera, confissão graciosamente excessiva para uma tela de computador. “tive herpes e gripe (estou vulnerabilíssima e acho que isso é meu luto por meu irmão, não chorei o suficiente e ele me traz a mãe, o pai [já falecidos]) mas meu pé melhora. até esqueço dele. a vida sobre os pés felizes isso é tudo. um dom divino”.
Na mensagem seguinte, a correspondente é sucinta — ou se penitencia da inconfidência cometida: “Ouço música budista para conter a língua dentro da boca”.
Quando Ana se quer sucinta ou prudente, chegam as férias e ela, sob a copa da árvore genealógica, olha pra cima e vê o brotar de um novo galho, de nome Emiliano. Ana esquece a música budista e volta a se alongar em frases. As férias lhe oferecem a oportunidade de receber a visita do irmão e de curta viagem a Brasília para visitar o casal de filhos. “Ontem entrei de férias. Ó que emoção. O semestre foi duro porque dei aulas com uma bota de dor. Agora voltei à academia [de ginástica]. Já faço alongamento e ainda fisioterapia.” A viagem traz a mais gratificante de todas as novas: “Melhor notícia: serei avó. Meus filhos de Brasília esperam um Emiliano. A vida terá sempre razão.”
Poucos meses depois me escreve: “Entre o dia 26 e 30 estarei em Brasília. Serei avó então. Meu neto se chamará Emiliano. Não sei nada sobre ele”. Logo saberá. Emiliano nasce forte e cresce vivaz. E Ana me escreverá: “O neto está virando de bruços e sorridente. Vida que segue. Amor aos potes”. Chegará o dia do batismo: “Meu neto vem ao Rio para se batizar. Ele está aprendendo a nadar com nove meses. Vê-lo nos filminhos é uma alegria. Ele é muito destemido e vigoroso. A vida é assim no seu melhor. Vigor e Coragem. Vamos ver”. Passado um ano, eu lhe pedirei uma foto do Emiliano. Veio no anexo à mensagem. Não pude conter o comentário: “O pimpolho é muito bonito. Com testa larga e ampla de intelectual. Puxou à avó”.
A memória de Ana e seu cotidiano são aguçados pelas memórias que este seu amigo escreve e por outra “viagem na família” que ela faz, à semelhança do poeta Carlos Drummond: “Fui à Fazenda. Fiz fotos. Meu irmão quer vender o sítio dele. Fiquei triste, mas entendo. Ele estava rouco. Está se desgastando muito com o inventário. Faz viagens a Aiuruoca, chega lá, a juíza não está porque fez Botox. Seria engraçado, mas é cruel. Me revelou que papai se divorciou da 1ª dama. Nunca soube. Tb ele não sabia deste rolo de papai até os 18 anos. Esqueceram de contar para ele.”
Em anexo à mensagem chega uma única foto da Fazenda. No fundo, não é uma foto, é uma metáfora. Sinto o prazer literário de Ana ao tirar a foto e comento: “Bela foto, a escada e os dois bichanos se escondendo por detrás das grades”. Iludidos e quietos, a irmã e o irmão permaneceram em escadinha geracional. Ana entende meu comentário sobre os dois gatos por detrás da grade e talvez o julgue irônico. Eu saíra em busca de uma bela vista da Fazenda da família e tinha recebido a foto de dois irmãos no xilindró da vida familiar. Responde-me imediatamente: “Depois te mando fotos do verde da Fazenda”.
Não resisto e lhe faço confidência sobre outra fazenda: “Ando espaventando a falência do pai da minha madrasta e sendo espaventado por ela em capítulo insubordinado das memórias. Tenho necessidade de clareiras festivas”. A pandemia ainda não tinha batido à nossa porta e a amiga quer concorrer para a realização de meu desejo de clareiras festivas: “Creio que poderíamos marcar um pré-carnavalesco quarta ou sexta que vem”. Eu aceito o convite e vejo que Ana entra silenciosamente na batida do ganzá. “Depois das cinco é uma boa ideia. Assim o calor amainou e ainda não teremos a agitação do carnaval.”
Ela vem fazer companhia ao amigo trazendo-lhe lembranças, também doloridas, que combinam com nosso carnaval íntimo: “As madrastas! A mãe de meu pai morreu de parto aos 33, já tinha 8 filhos. Vovô casou com uma cabocla Conceição. De Zelinda a Conceição. Da Itália dos Marafellis ao Brasil meio indígena. Depois com ela [meu avô] teve mais oito filhos… assim vou me lembrando”.
Na troca de mensagens e no retorno passageiro da conversa pré-carnavalesca em café do bairro, a palavra final dela não é redentora. É taxativa: “Derreto no carnaval. Acho muito pouco civilizado este calor. Convida ao crime…”.
Em mensagem seguinte, não posso deixar de saudá-la no dia que é dela: “Querida, a manhã se abre clara e linda no dia das mães. Parabéns!”.
De repente a das Dores volta a digitalizar uma mensagem: “Desisti de ir encontrá-los na [Livraria da] Travessa. Estou de cama com dores no corpo. Espero que seja gripe. Meu porteiro teve Chikungunya”. Mas logo ela se desperta de si e enxerga a dor nacional que nos aflige: “O Brasil está dando nos nervos. Muita gente com doença do pânico. Outro dia perguntei a um aluno negro o que ele ia fazer se continuássemos a ‘andar para trás’. Ele respondeu sereno: ‘Se durar pouco, vou resistindo, se demorar, eu morro’. Nossa! Terminei a aula. Sei que ele não teria intenções suicidas porque tem um jeitinho meio malandro e vai se desviar dos golpes. Mas a frase dele me impactou”.
O amor ao próximo é desportivo e acadêmico e, naquele momento, decepcionante. Muito decepcionante. Ana me narra em detalhes a missa a que assistiu: “Fui à missa num lugar lindo, um bosque de Barueri, uma gruta dedicada à Nossa senhora dos Remédios (a que amamenta), qual não foi meu espanto! o Padre tinha a mesma retórica violenta e grosseira dos Bolsonaros, dizia que quem não era católico que fosse ‘procurar sua turma’, usava expressões de luta ‘tesoura voadora’, etc, nada de amor de Cristo e/ou Teologia da Libertação, nada de Papa Francisco, só ódio aos diferentes e defesa de Moro!!!! Fiquei muito desanimada.”
Chega o dia em que Ana Chiara publica novo livro de poesia. Sua descrição da coleção de versos é tão corajosa e certeira que lhe passo a palavra com prazer: “São escritos (na verdade) que precederam uma viagem que faria (fiz) com minha filha. Ela saía de NY para Europa e nos encontraríamos em Paris. Mas ela estava ansiosa (broken heart) e eu aflitíssima ia escrevendo a cada dia uma notação. Guardei. E agora sai como lembrança-herança de nossos dias aflitos. Nenhum charme em estar em Paris depois. Consultas médicas e alguma histeria. Agora tudo saiu no papel. Não tenho nenhuma segurança sobre o que escrevi. Mas é um canto de glória, estamos bem”.
Chega outro dia, o dia em que o mais desgraçado dos vírus nos ameaça. Ana ainda observa de esguelha o que vem acontecendo. Olha a futura pandemia com a atenção de leitora dos grandes livros de nossos autores e de autores estrangeiros. As mensagens digitalizadas passam a não ser mais suficientes. De há muito se fora o papo no café da esquina ou do bairro. Agora, ela me telefona: “Foi bom ouvi-lo ao telefone. Em breve farei de novo. Tudo em busca da corporalidade dos amigos. Estamos serenos (por enquanto e mais ou menos) sempre ameaçados por broncas de ‘fique em casa!’. Sim, estamos [em casa], mas há compras inevitáveis que faço às seis da manhã. De resto nada produzo. Apenas leio com cuidado o livro de Oswald O homem sem profissão que tantas vezes comecei. Ele era um sacripanta mimado. Mas tb genialmente nos legou a antropofagia. Deglutiremos o COVID e sairemos mais fortes? No livro ele fala da gripe espanhola de modo distanciado. As narrativas do Nava são exemplares” — conclui.
No início do mês de maio de 2020 quero ter notícias rápidas de Ana. Ela me responde e de maneira notável ata as pontas dessa pouca prosa sobre a longa prosa epistolar de Ana Chiara. Concluo passageiramente, citando a mensagem do dia 2 de maio de 2020. “Vamos bem na medida do possível. aqui entre paredes e com medo de abrir a porta e simplesmente sair… Quando tive o aneurisma, fiquei com paralisia na pálpebra direita, o que me provocava visão convergente. O médico me dizia que voltaria normalmente. Um dia de manhazinha, deitada ainda, abri os dois olhos! Foi uma sensação maravilhosa. Vivi um pequeno milagrezinho. Tenho esperado este dia para o mundo… Tudo ficará claro e a visão será a bela visão que anuncia um hino religioso. Por enquanto, só o brutalismo.”