Por que não driblar páginas e páginas e ir direto ao final de uma obra?
O ato de esgueirar-se e ler a última página de um livro não deveria ser tão mal visto – é perfeitamente compreensível. E, embora possa-se argumentar que seja comodismo ou covardia, também penso ser justificável escolher um livro apenas pelo seu final. Assim como a miríade de começos, que al-guém certamente terá catalogado e quem sabe até hierarquizado, os fins de livro também são tão va-riados quanto os títulos que já se escreveu e que se poderá escrever. Vou arriscar aqui comentar alguns desses tipos que me ocorreram quando escrevi sobre os Grandes Começos de livros, na edição passada do Pernambuco.
Como não poderia deixar de ser, há aqueles finais que são conclusivos, que põe um ponto final à his-tória. É assim com O leopardo, de Lampedusa, cuja melancolia se deve ao fato de ser o retrato de uma época que degringolava, com certo atraso, na Itália. O fim do cão empalhado do Conde de Salina - o Leopardo do título - expressa bem essa melancolia.
No momento em que arrastavam a carcaça para fora, os olhos de vidro fixaram-na com a humilde repreensão das coisas que se rejeitam, que se querem anular. Poucos minutos depois, o que restava de Bendicò foi arrojado para o canto do pátio que o carro do lixo visitava todos os dias. Durante o voo, janela abaixo, a sua forma recompôs-se um instante: dir-se-ia dançar no ar um quadrúpede de longos bigodes, e a destra anterior erguida parecia amaldiçoar. Depois a paz tornou a cair sobre um montículo de poeira lívida.
Também é conclusivo o fim com que Euclides da Cunha fecha Os sertões, embora mais recapitulador. Não é bem a imagem dos últimos seis da Canudos “que não se rendeu”, mas o destino do corpo do beato que o jornalista do Estado de São Paulo escolhe para suas últimas linhas:
Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua identidade: importava que o país se conven-cesse bem de que estava afinal extinto, aquele terribilíssimo antagonista.
Restituíram-no à cova. Pensaram, porém, depois, em guardar sua cabeça tantas vezes maldita – e como fora malbaratar o tempo exumando-o de novo, uma faca jeitosamente bran-dida, naquela mesma atitude, cortou-lha; e a face horrenda, empastada de escaras e de sânie, apareceu ainda uma vez ante aqueles triunfadores.
Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio. Que a ciência dissesse a última palavra. Ali estavam, no relevo de circunvoluções expressivas, as linhas essenciais do crime e da loucura...
Também finalizador como uma faca no coração é O processo, de Kafka:
Mas na garganta de K. colocavam-se as mãos de um dos senhores, enquanto o outro cravava a faca profundamente no seu coração e a virava duas vezes. Com os olhos que se apaga-vam, K.ainda viu os senhores perto de seu rosto, apoiados um no outro, as faces coladas, observando o momento da decisão.
Como um cão – disse K.
Era como se a vergonha devesse sobreviver a ele.
Com isso escapo da tentação de citar um dos mais (ou o mais?) conclusivo e recapitulador dos finais de que me lembro, o de Cem anos de solidão, tantas vezes já lembrado.
Contrário a esse aspecto, digamos, mais cartesia-no, dois outros livros se destacam por suas formas únicas de terminar. Um deles é Finnegans Wake, de James, James Joyce. O elemento especial não está exatamente no fato de que a última frase é tam-bém a primeira do livro. Esse aspecto circular está em franca sintonia com a influência que o filósofo Giambattista Vico exerceu sobre Joyce. O fim de Finnegans Wake é especial porque o livro assim o exigia: um fluxo de uma consciência feminina do humano que deságua no mar, este, um pai caudaloso, que flui novamente no início da obra. Aqui, com tradução de Donaldo Schüler.
Estou de partida. Que amargo fim! Sorrateiramente partirei antes que acordem. Não vão me ver. Nem saber. Nem recordar-me. E é velha e velha é triste e velha é triste e exausta volto a ti, velhegélido pai, velhegélido indômito pai, meu velhegélido indômito, patético pai, até a mara vista da mera forma dele, as miolhas e miolhas dele, monotonando, me ressalgam, me ressacam e me arremesso, meu início, em teus braços. Eis que se elevam! Salvem-me desses terríveis dentes! Dos más uno dos homomentos mais. Só. Avelaval. Minhas folhas derivam de mim. Todas. Só esta me resta. Paro e porto comigo. Pra re-membrança de. Lff! Suave esta manhã, tanto, a nossa. Sim. Leva-me contigo, papito, como quando quedos percorremos a feira dos brinquedos! Se eu o visse baixar sobre mim sob suas alvestendidas asas como que vindo de Arkângelos, penso que pensa findaria a seus pés, húmil, dúbil, débil, laudante. Sim, tá em tempo. Cá estamos. Início. Passamos pastagens, basculhem o bosque a. Vvôo! Gaivvota. Gaivvootas. Apelos do pai. Já vou, pai. Eis o fim. Nós então. Finn, revém! Toma. Serenamente, remememora-me! Té que thausentes. Lps. As chaves a. Cá tens! A via a lenta a leve a leta a longa.
Também na mesma linha, O jogo de amarelinha, de Julio Cortázar, posto que à sua maneira este livro é muitos livros, mas é, sobretudo, dois livros – para usar as palavras do autor. O leitor fica convidado a escolher. Eu escolho esta:
Era assim, a harmonia durava incrivelmente, não havia palavras para responder à bondade daqueles dois ali embaixo, olhando para ele e lhe falando, de dentro do jogo de amarelinha, porque, sem perceber, Talita estava parada na casa três e Traveler tinha um pé na seis, de maneira que a única coisa que ele podia fazer era mover um pouco a mão direita, numa saudação tímida, e ficar olhando para Maga, para Manú, dizendo a si mesmo que, no fim das contas, algum encontro havia, embora não pudesse durar mais do que aquele instante terrivelmente doce, no qual a melhor coisa a fazer, sem sombra de dúvida, teria sido inclinar-se um pouco para fora e deixar-se cair, paf, acabou-se.
Há os fins que não terminam, ou melhor, que ape-nas indicam o fim do livro, não da história. Aliás, penso ser interessante as histórias que continuam para além do livro, noutro canto, talvez no leitor. Assim é que termina Thomas Mann seu A montanha mágica: Adeus – para a vida ou para a morte! Tens poucas probabili-dades a teu favor. O macabro baile ao qual te arrastaram durará ainda vários anos malignos. Não queremos apostar muita coisa na tua possibilidade de escapar. Para falar com franqueza, não sentimos grandes escrúpulos ao deixar indecisa essa questão. Certas aventuras da carne e do espírito, sublimando a tua singe-leza, fizeram teu espírito sobreviver ao que tua carne dificilmente poderá resistir. Momentos houve que, cheio de pressentimentos e absorto na tua obra de “rei”, viste brotar da morte e da luxúria carnal um sonho de amor. Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?
Finis operis.
E também Dostoiévski, em Crime e castigo:
Durante esse dia, Sônia esteve também muito inquieta, mas estava tão alegre, e aquela felicidade era uma surpresa tão grande, que quase tinha medo. Sete anos, somente, sete anos! Na embriaguez das primeiras horas, pouco faltou para que ambos sentissem esses anos como se fossem dias. Raskólnikof ignorava que a nova vida não lhe seria dada de graça e que tinha de a adquirir à força de longos e dolorosos sacrifícios.
Mas aqui começa uma segunda história, da lenta transfor-mação de um homem, da sua regeneração, da sua passagem gradual de um mundo para outro, travando relações com uma nova e até agora completamente desconhecida realidade. Podia ser o motivo de uma nova narração. – A que quisemos oferecer ao leitor termina aqui.
Bukowski, que tanto leu Dostoiévski, termina assim seu Misto quente:
Coloquei outra moeda e o calção azul ficou de pé. O garoto começou a apertar seu gatilho e o braço do calção vermelho não parava de socar. Deixei o calção azul afastado por um momento, apenas contemplando. Então fiz um aceno com a cabeça para o garoto. Entrei em ação com o calção azul, os dois braços socando com tudo. Senti que eu precisava ganhar. Senti que aquilo era muito importante. Não sabia por que era importante e fiquei pensando, por que acho que isso é tão importante?
Enquanto outra parte de mim respondia, é por que é.Então o calção azul voltou a cair, estatelado, emitindo o mesmo ruído metálico. Olhei para ele lá, caído de costas sobre o pequeno tablado de veludo verde.
Depois disso, dei meia-volta e saí caminhando.
Por mais que os personagens de Bukowski sejam criações literárias e o aspecto autobiográfico seja mais um meio que um fim, Misto quente tem esse fim que continua noutro canto – no caso, tanto no leitor quanto no próprio escritor.
Entre os enigmáticos finais, Kafka se sobressai, n’O castelo – em grande parte porque o livro, inter-minado, expressa elementos caros a seu autor: o absurdo, a inescrutabilidade de certas dimensões da experiência, o mistério de decisões distantes:
A sala na cabana de Gerstacker estava iluminada fracamente só pela chama do fogão e por um toco de vela, sob cuja luz alguém, inclinado num nicho debaixo das traves do teto, que ali se projetavam oblíquas, lia um livro. Era a mãe de Gerstacker. Ela estendeu a K. a mão trêmula e o mandou sentar-se ao seu lado; falava com esforço, era preciso se esforçar para entendê-la, mas o que ela disse.Se me permite o leitor, o final de O estrangeiro, de Camus, é o meu preferido não por outra coisa, mas pelo coração com o que seu autor escreve todo o ca-pítulo, em especial seu diálogo com o padre que vi-sita o personagem na cela, antes de sua aniquilação:
Pela primeira vez, em muito tempo, pensei em mamãe. Pareceu-me compreender por que, ao fim de uma vida, ar-ranjaram um “noivo”, porque recomeçara. Lá, também lá, ao redor daquele asilo onde as vidas se apagavam, a noite era como uma trégua melancólica. Tão perto da morte, mamãe deve ter-se sentido liberada e pronta a reviver tudo. Ninguém, ninguém tinha o direito de chorar por ela. Também eu me senti pronto a reviver tudo. Como se esta grande cólera me tivesse purificado do mal, esvaziado de esperança, diante desta noite carregada de sinais de estrelas, eu me abria pela primeira vez à terna indiferença do mundo. Por senti-lo tão parecido comigo, tão fraternal, enfim, senti que tinha sido feliz e que ainda o era. Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio.