Artigo Escritoras Divulgacao

 Em sentido horário: Claudia Lage, Sheyla Smanioto e Anita Deak

 


Em uma lista atualizada que reúne narrativas literárias sobre a ditadura civil-militar brasileira (1964–1985), postada em rede social pela professora Regina Dalcastagnè (UnB), somam-se 43 títulos publicados entre 2010 e 2019. Número expressivo quando comparado aos de outras décadas: dez (2000–2009); sete (1990–1999); doze (1980–1989); dezesseis (1970–1979); dois (1967). No intervalo entre 1967 e 2009, apenas nove dos 47 livros são de autoria de mulheres, enquanto nos anos 2010, mais de vinte carregam a assinatura delas.

Na fronteira entre a década que se encerrou e a iniciada, os romances O corpo interminável (Record, 2019), de Claudia Lage, Meu corpo ainda quente (Editora Nós), de Sheyla Smanioto, e No fundo do oceano, os animais invisíveis (Editora Reformatório), de Anita Deak, os dois últimos publicados no final de 2020, voltam-se para o corpo como matéria viva e central na elaboração artística de velhas sempre novas feridas de nosso país, sem que haja entre elas uma estética similar, mas justamente caminhos muito particulares ao abordar tudo aquilo que nos é contemporâneo e comum ao ter como ponto de partida eventos acontecidos no mínimo há mais de 35 anos.

Azul corvo (Quetzal Editores), de Adriana Lisboa, e Nem tudo é silêncio (Edição do autor), de Sônia Regina Bischain, foram lançados em 2010, quando Lage teve a ideia inicial de seu romance, que começaria a ser escrito no ano seguinte. As primeiras páginas do que viria a ser O corpo interminável coincidem, portanto, com o ano da criação da Comissão Nacional da Verdade. Mais que um slogan que se lê no painel atrás do púlpito onde a presidenta Dilma Rousseff instala a comissão, em maio de 2012, a “consolidação da democracia” parecia ser o horizonte de uma escritora às voltas com o incômodo de reconhecer o predomínio até então da palavra masculina em matéria de relatos sobre a ditadura.

Acontece que a feitura de O corpo interminável, além de conter a busca de ângulos e modos para dar forma a um protagonismo feminino no contexto dos anos de chumbo, testemunha uma virada que converte sua base histórica e memorialística em uma resposta nada óbvia ao presente mais imediato de sua escrita e publicação. Se em 2014 o relatório final da Comissão da Verdade torna pública as histórias de 434 pessoas, ao documentar os crimes contra a humanidade cometidos como parte de uma política estatal, em 2018 o eleitor brasileiro elege como presidente da República o deputado que exaltara o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-Codi, órgão de repressão da ditadura, e primeiro torturador condenado no Brasil, durante a votação do impeachment orquestrado contra Dilma, em 2016. Imersas nesse agora sem trégua é que Smanioto e Deak também compuseram suas tramas.

Polifônico e fragmentário, ainda que O corpo interminável se afaste de qualquer tentativa de nomear o inominável, converte os buracos (próprios das histórias interrompidas e situações inacabadas) em seu alicerce. O despencar em sonho na toca do coelho de Alice, que se revela uma cova — portanto um despencar em pesadelo perpetuado por um livro que nunca acaba —, é imagem persecutória da qual tenta se livrar, isto é, transformar em um livro que traz à vigília de nossos dias a presença do que no corpo segue vivo, no transgeracional, mas não apenas.

A prosa de Lage ergue-se a partir de histórias de guerrilheiras desaparecidas na década de 1970 que, quando ganham voz na narrativa, não são nomeadas, o que produz um efeito oposto ao do apagamento operado pelos crimes cometidos pelo Estado autoritário. Isso porque essa escolha amplia possibilidades no interior de um enredo que prende não pelas soluções encontradas, mas por escavar fundo o território do qual se tem um “mapa incompleto”, onde a Casa da Morte, em Petrópolis, se faz parte pelo todo. Em todo canto do país.

Mesmo que as histórias cruzadas de Daniel, filho de uma das guerrilheiras desaparecidas, e de Melina, que teria crescido no seio de uma família alheia aos porões da ditadura, possam alçá-los, a depender da leitura, ao papel de protagonistas, há muitos indícios de que as vozes das guerrilheiras é que ocupam esse papel central. Gira em torno delas e do que podem revelar todas as inquietações que impulsionam a narrativa. Mulheres que passamos a conhecer por meio da relação limite com seus corpos presos, torturados, grávidos. Sendo a própria gravidez um “desalojar constante”, mais falta que preenchimento, disparador de partes que reclamam “a devolução de cada pedaço” e o parto simultaneamente encontro e despedida do filho.

A fotografia de uma guerrilheira morta amplia a indagação sobre os culpados: afinal, quem foi o responsável pelo clique? Quem toma nota de confissões em meio aos choques e gritos? Se uma cicatriz que enxergamos na pele pode um dia parar de doer, suas causas seguem agredindo quem foi torturado. Aqueles em quem não enxergamos nenhuma marca de ferimento, caso de familiares e amigos de desaparecidos, também são atravessados pelo que ainda dói e lateja. Assim como tudo o que é falseado (como no caso Vladimir Herzog, cujo assassinato foi transformado em suicídio) e convertido em imagem de um arquivo de provas contrárias à verdade, dilacera qualquer possibilidade de luto e reparação histórica.

O romance de Claudia Lage, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura (2020) também toca o que no corpo dessas mulheres é desejante, por hábito ou modo de salvação, ainda que para se salvar se morra um pouco, sem jamais sublimar o que violenta, mata e extingue em vida. A reinvindicação do corpo primordial e último como comprovação de que se existiu viva e dona dos próprios gestos e de si até a morte, como “prova da nossa capacidade de sobreviver a nós mesmos”, da qual não se abre mão em O corpo interminável, também atravessa de modo visceral as linhas de Meu corpo ainda quente.

A protagonista do romance de Sheyla Smanioto ouve desde menina a mãe repetir: “mulher nenhuma tem o próprio Corpo”. Máxima que constata no aprendizado de ser mulher e topar com o corpo de outras na fictícia Vermelha, inspirada na Diadema dos anos 1980, cidade conhecida como local de desova da ditadura militar.

Em suas linhas, o encontro amoroso entre um filho à procura do pai, desaparecido político, e a filha de uma vítima de violência doméstica, aproxima também orfandades geradas por uma violência que não cinde questões públicas e privadas e se desdobram a partir de um mesmo legado patriarcal, calcado no sequestro, na objetificação e no descarte de corpos que não cumprem ou atrapalham os fins para os quais são destinados em uma lógica de propriedade. Por isso, não há dicotomia entre crimes praticados por militares ou civis, estupros cometidos em porões ou dentro da própria casa em Meu corpo ainda quente. “Há tantos jeitos de se estar morto em um país como o nosso, Fran.”

O acesso ao próprio Corpo, assim com inicial maiúscula, e no que nele se desconhece, é fundamental no processo criativo de Sheyla Smanioto, e “não ter o próprio corpo” uma questão presente também em seu Desesterro (2015). Na mais recente narrativa, a poética é esculpida na carne e na sonoridade de um canto que nunca se converte em lamento (apesar dos lutos que guarda), e também se depara com uma queda interminável como sina da qual se procura escapar. Contudo, não é o corpo que cai em buraco a dar no contrário do País das Maravilhas. Busca-se desde a primeira página pressentir a repetição da queda do corpo em si mesmo a que foram submetidas as mulheres nas diferentes épocas, não só a da ditadura, e encontrar uma maneira de interrompê-la: “Eu sinto o frio na barriga, será que é isso? Eu estou caindo? Do meu próprio Corpo?”.

Os “Era uma vez”, a pontuar as partes de Meu corpo ainda quente, dizem de uma temporalidade de fábula avessa e do que se repete outra e outra vez, a martelar um “infelizes para sempre” que precisa ter um fim. Por sua vez, a rememoração não cronológica empreendida por Pedro Naves em No fundo do oceano, os animais invisíveis, de Anita Deak, nos coloca no encalço das diferentes durações de uma vida, com suas clareiras e frestas das sumaúmas, como passagens que vão dar no coração de suas sombras, não limitadas aos tempos sombrios da história do país. As ambiguidades do protagonista de Deak, exploradas em uma retrospectiva que se aproxima de cada momento como se fosse um agora, não permite que vislumbremos nele um herói apenas pelo fato de ter lutado contra a ditadura.

Filho do dono de tudo e de todos que o cercam na fazenda onde cresce, na também fictícia Ordem e Progresso, pode-se entender que Naves desvia-se do caminho tradicional do herdeiro de gerações de proprietários no contato com leituras e aproximações políticas na juventude. Entretanto, essa alteração de rota, ao menos conforme a ilusão biográfica que todo aquele que rememora realiza, já se inscrevia em seu corpo na relação ora conflituosa ora fusional com as gentes, as plantas e os bichos desde seu nascimento biológico, mas nunca apartado do que nasce como palavra — parideira de outras epidermes, penachos e crinas a dizer esse mesmo corpo que se reconhece nos outros.

O tempo do menino bem-nascido e o do adulto sob a mira das armas no meio da mata convergem para o que Maria Valéria Rezende, outra voz fundamental dos escritos sobre a ditadura, nomeou, no texto da orelha do livro, de “reintegração do humano à natureza” e que em alguns pontos também diz de um reconhecimento no homem de seu feminino submerso, para usar aqui o léxico das águas, tão fundamental nesse romance. No líquido o corpo ora aumenta ora diminui, o que mais uma vez nos faz lembrar a Alice de Carroll. Ocorre que No fundo do oceano, os animais invisíveis bebe numa dicção soprada pelos encantados, como encarnação dos saberes imemoriais dessas entidades, conciliando grande dose de maravilhoso ao realismo.

Já a queda em buraco se dá, por exemplo, nos sucessivos afogamentos da cabeça de Pedro Naves na tina dos torturadores, mas também no gole da bebida do pai onde submerge vivo um caranguejo; na cadeira do dragão e no terreiro onde sangra uma galinha. De todos esses lugares se escapa para dentro, mas também para fora de si. Em toda localização no tal “mapa incompleto”, mencionado no livro de Lage, “a terra cobra a morte do animal mais arisco”, pressagia Naves a partir do além-tempo, enquanto uma cadela prenhe fareja o inimigo no instante mesmo de um disparo na floresta.

Os romances de Lage, Smanioto e Deak, por caminhos diversos, nos levam ao corpo e ao corpo nos devolve, em gestos criativos que reivindicam a vida enquanto tentam nos matar.

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