Uma das imagens recorrentes quando se tensiona a institucionalização da loucura é a de barcos e navios representados como estruturas navegantes que não necessariamente habitam o mar ou o rio: um espaço simbólico que significa tanto segregação quanto movimento e descoberta. Desde Nau dos insensatos ou Nave dos loucos, de Hieronymus Bosch (1450–1516), até os barcos feitos de sucata por Arthur Bispo do Rosário (1909 ou 1911–1989), as relações imaginárias da loucura passam pela ideia de que o destino dos loucos é o da errância, longe das cidades e dos vínculos sociais. E, assim, como desenraizados, os desviantes contam suas narrativas distantes, à parte do mundo concreto do Estado.
No clássico História da loucura, publicado em 1961, Michel Foucault refaz a cronologia da “falta da razão” e aproxima os discursos artísticos, em especial a literatura e as artes visuais, do que se entende como loucura. Estar fora de si é uma maneira de transgressão e, ato contínuo, de estabelecer uma linguagem dupla, que expressa o que não existe senão naquela fala, naquele desvio; e, por conseguinte, a fala e o desvio só existem naquela língua. Nesse contexto, Leonora Carrington (1917–2011), escritora e artista visual inglesa, um dos maiores nomes do Movimento Surrealista dos anos 1940 e 1950, apresenta uma produção na qual a loucura brilha, como disse Foucault, em toda a sua superfície.
Na última década, houve um resgate, em países latino-americanos, da obra de Carrington e de outras pintoras surrealistas, como a espanhola Remedios Varo (1908–1963) e a famosa mexicana Frida Kahlo (1907–1954). Exposições e publicações traduzidas deixam disponível um legado importante para a compreensão do surrealismo que, historicamente, foi valorizado e estudado como um processo artístico extremamente masculino. Agora, dois importantes registros da obra literária de Leonora Carrington chegam, enfim, ao mercado brasileiro: Lá embaixo, pela Edições 100/cabeças, com tradução de Alexandre Barbosa de Souza, e Um conto de fadas mexicano e outras histórias, pela Iluminuras, com tradução de Dirce Waltrick do Amarante.
No primeiro, Carrington registra uma espécie de diário da loucura dos tempos em que esteve internada em um hospital psiquiátrico em Santander, na Espanha, enquanto fugia da guerra e seu companheiro, Max Ernst (1891–1976), pintor alemão e um dos fundadores do dadaísmo, foi preso. No segundo, uma compilação de seus contos nos quais as temáticas animalescas, infantis, místicas e delírios formam o conjunto narrativo. Carrington começou a escrever na língua francesa e publicou seu primeiro conto, La maison de la peur, traduzido como A casa do medo, em 1938. Em suas referências literárias, autores ingleses como Beatrix Potter e Lewis Carroll, com suas histórias de conto de fadas e elementos do gótico, interligam o universo do absurdo surrealista e das características de estilo na escrita de Carrington, o que pode ser visto nos contos O tio Sam Carrington e Jemima e o lobo.
Em termos de análise da obra de Carrington, manter uma leitura apenas a partir das características presentes, por exemplo, em definições da técnica proposta pelo surrealismo, configura um caminho simplista. A compreensão de que os elementos oníricos foram operados em suas criações é óbvia, mas o quê, de fato, moveu sua produção, para além de inseri-la no contexto histórico-cultural daquele momento vanguardista do século XX? O desvio da norma, a loucura, a linguagem em dobro funcionam como ponto de partida dessa resposta, porém, duas reflexões desenvolvidas em Lá embaixo (1940) são os moldes dos processos que, acredito, permeiam as pinturas e os escritos da artista inglesa.
A primeira aparece na entrada do dia 24 de agosto de 1943. Carrington escreve: “Eu estava com medo de me deixar levar pela ficção”, e define ficção como: “verdadeira, porém, incompleta”. Nesse aspecto, é importante observar que as suas narrativas só existem devido à falta que as legitima. Assim, em seus contos e em muitas de suas pinturas, Carrington nos lembra das vezes em que deixamos de lado qualquer coisa porque falta um pedaço ou porque aquilo nos coloca em lugar de engano, ausência e incompletude. A sua ficção é também uma maneira de desistir das certezas do mundo e, dessa forma, mostrar ao leitor que outros saberes são possíveis.
No conto A debutante, datado entre 1937 e 1938, a personagem comenta que aprendeu a falar a língua de uma hiena, animal associado à loucura e ao delírio. “Quando eu era uma debutante, eu ia sempre ao jardim zoológico. Ia com tanta frequência que conhecia melhor os animais do que as moças da minha idade. Era mesmo para escapar do mundo que eu ia todo dia ao zoológico. O bicho que eu mais conhecia era uma hienazinha. Ela me conhecia também; ela era forte e inteligente, eu lhe ensinei francês e em contrapartida ela me ensinou a sua língua. Assim, passávamos muitas horas agradáveis.” Na ligação entre humano e animal, algo se afasta do campo inteligível, da comunicação majoritária, e aproxima-se de uma cisão de linguagem que nunca será totalmente apreendida, mesmo que agradável. Aqui, estar com a hiena é mais verdadeiro do que qualquer outra companhia conhecida.
A segunda reflexão está contida em um trecho sobre o ovo, destacado no prefácio de Um conto de fadas mexicano e outras histórias, escrito pela tradutora. O ovo era um dos ingredientes que a pintora utilizava para misturar suas tintas — Carrington sempre foi muito ligada à representação dos alimentos e trocou várias impressões sobre o assunto com a italiana Leonor Fini (1907–1996), registro que se encontra na correspondência entre as duas artistas.[nota 1] Então, ela se pergunta: “Esta manhã, a ideia do ovo voltou à minha mente e eu pensei que podia usá-lo como um cristal para olhar Madrid naqueles dias de julho e agosto de 1940 — por que ele não poderia encerrar minhas próprias experiências tanto quanto a história passada e futura do universo? O ovo é o macrocosmo e o microcosmo, a linha que divide o grande e o pequeno, tornando impossível ver o todo”. Dessa maneira, o ovo torna-se um tipo de dispositivo (na pintura, e na escrita) para que se reconheça o impedimento do homogêneo, do puro ou do que se apresenta em apenas uma possibilidade. A tinta se mistura, o olho se rebela. Com o ovo, burla-se os limites entre macro e micro, entre o que se vê e o que a vista não reconhece. Quando associa a visão ao alimento, Carrington brinca com o que se pode esperar de uma imagem e, por que não, de uma narrativa: fuga da racionalidade e da pureza; contentamento com a chance de ajustar quantas vezes for preciso a lente de nossos aparelhos visuais.
A NAU AVANÇA PARA TODOS OS LADOS
A partir dessas duas propostas — ficção incompleta; aparato lúdico-visual como meio de ajustes do espaço e da linguagem — a obra de Carrington ganha contornos ainda mais longínquos do que é tido como normativo dentro da vivência não só social, mas também artística. Por mais que o surrealismo tenha emergido, em última instância, como uma quebra de paradigma do racional, vários são os pré-requisitos que uma obra deve cumprir para encaixar-se naquele determinado grupo. O que propôs Leonora Carrington ultrapassa essa classificação quando se observa que na loucura está, possivelmente, o seu principal motor criativo. Como a “última felicidade” e o “castigo supremo”, definições foucaultianas do saber do louco, Carrington assume uma postura de quem acredita no pensamento e em formas de vida que não compactuam com os regimes automatizados de criatividade e integração. E, por meio dessa faísca, sua obra expande-se em diversas chances interpretativas, o que faz com que a teoria para a comentar esteja, como em um palimpsesto, dentro dela mesma. É como se Carrington alargasse as características do surrealismo a partir dessa chave do desviar-se da lira, o delírio dentro do delírio coletivo.
Desse modo, a experiência de viver a insanidade, relatada em Lá embaixo, alimenta não só inquietações em torno da violência psicossocial dos manicômios, tema importante para a Reforma Psiquiátrica que viria a acontecer duas décadas depois em países do continente europeu, mas também a condição da mulher em ambientes de instituições como a que Carrington frequentou. No texto A medicina social e a questão feminina (1991),[nota 2] Silvia Alexim Nunes afirma que se criou, no saber psiquiátrico, uma correlação entre selvageria e corpo feminino, o que colocou a mulher em predisposição a abalos físicos e mentais.Carrington vivenciou no corpo essa pulsão misógina e descreve com detalhes o que seu corpo passou no período em que esteve internada.
Também nos seus contos há o tema. Em Et in bellicus lunarum medicalis, um relato satírico que envolve os costumes dos ratos, medicina e psicanálise, o personagem afirma: “Nós também temos nossa dignidade e nossa organização. Apesar de tudo, a psicologia vive no corpo. E, sem o corpo, nós não teríamos nenhum paciente”. O conto serve de lembrete de que a falácia da doença mental como distúrbio abstrato, do campo do devaneio, sempre recairá sobre o corpo de quem a carrega e para o Estado alguns corpos são mais propícios à loucura do que outros.
Como visto, a imagem do navio ou de uma espécie de gôndola faz parte da biblioteca do imaginário da loucura. Algumas dessas formas aparecem também em várias obras da artista inglesa, entre elas, estão a pintura Nunscape at Manzanillo (1956) e a escultura The ship of cranes (2009). Na primeira, várias freiras navegam por um mar agitado e vermelho, guiadas pela criatura no centro do quadro; na segunda, um pássaro maior é utilizado por outros pássaros como transporte. A atualização da Nau dos loucos, na perspectiva surrealista de Carrington, não abarca capturas de vícios, homens perturbados e libertinagem, mas sim de mulheres, seres híbridos, animais, monstros: corpos dissidentes que são os passageiros por excelência de uma embarcação sempre prestes a partir sem destino, livre em sua alucinação.
NOTAS
[nota 1] Encontra-se detalhes sobre a relação das duas artistas no capítulo The two Leonors do livro The militant muse: Love, war and the women of Surrealism, de Whitney Chadwick (Editora Thames & Hudson, 2017).
[nota 2] Disponível em scielosp.org/pdf/physis/1991.v1n1/49-76/pt