Ensaio Tati Guilherme de Lima setembro.21

 

“O nosso amor é tão bonito/ Ela finge que me ama e eu finjo que acredito”, cantava com amarga ironia o baluarte do samba Nelson Sargento (1924–2021) em Falso amor sincero (1979). Vinte e cinco anos depois, o segundo verso reaparecia (diferente apenas por um “você” no lugar do “ela”) em Tapinha atrás, tapa na frente, faixa do álbum Boladona (2004), da funkeira carioca Tati Quebra Barraco. Mas enquanto o canto sereno do sambista parecia expressar uma certa frustração contida e discreta diante do referido falso amor, a cantora da Cidade de Deus, então com 25 anos, apresentava uma inversão da perspectiva masculina para enfatizar a sua autonomia e desejos no relacionamento. O falso amor sincero é, na voz de Tati, uma condição “para você ficar comigo”, servindo-a para debochar da encenação cínica de romantismo masculino: “O homem é assim, pensa que é o rei da malandragem/ Meu negócio é papo reto: você quer é sacanagem”, canta ela, deslizando entre as batidas de atabaques sintetizados.

A convergência entre Tati Quebra Barraco e Nelson Sargento não foi anotada na ficha técnica do CD lançado pela Link Records, do DJ Marlboro. Mas foi observada na época pelo crítico Tárik de Souza, que, ao citá-la, parece insinuar uma transformação no discurso do funk puxada pela voz da artista. Ao mesmo tempo, neste texto publicado no Jornal do Brasil, o jornalista sublinha uma das principais verves de discriminação e deslegitimação do movimento funk (ou pelo menos da vertente putaria). “[O disco] tem pujança estética, mesmo ancorada no pornô explícito ou no duplo sentido que lhe valeu o carimbo ‘desaconselhável para menores de 18 anos’”, escreveu (grifos meus).

Pela ótica do crítico, a temática tratada pela MC é quase um obstáculo no caminho de um suposto alto nível estético — “Apesar de falar sobre sexo de forma aberta…” (grifo meu). Desde então, o ímpeto moralista e cerceador frente a uma poética sexualmente despudorada de uma mulher negra e periferizada foi sendo ampliado conforme Tati Quebra Barraco e as músicas de Boladona conquistavam o país, sendo taxada reiteradamente como “música pornográfica”. Poucos meses depois da crítica de Tárik de Souza, Tati recebia no palco do programa SuperPop (RedeTV!), uma lição de moral (uma palestrinha, na verdade) de uma cantora branca autointitulada Madame do Funk, que denunciava uma corrupção dos “verdadeiros valores” do funk. Ela ainda teve a ousadia de recitar para Tati os versos de Rap da felicidade, música de Cidinho e Doca, seus vizinhos na Cidade de Deus: “O funk nasceu com uma coisa muito bacana, que era a necessidade que a pessoa tinha de se manifestar — ‘Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci’. A minha postura é contra a erotização de um estilo”.

Naquele início dos anos 2000, o funk vivia um momento de expansão midiática e comercial. Em novembro de 2000, o DJ Marlboro se tornava o DJ do Planeta Xuxa, na Globo. No ano seguinte, o movimento musical também era destaque em programas como o Caldeirão do Huck (Globo), Mulheres (Gazeta), É show (Record), Funk total (RedeTV!) e SuperPop, este com edição especial sobre funk exibida às segundas-feiras.[nota 1] Ainda em 2001 a coletânea Tornado muito nervoso 2, lançada pela equipe de som Furacão 2000, tomou o país com hits como Cerol na mão (Bonde do Tigrão), Tapinha (Naldinho e Bela), Dança da motinha (MC Beth) e Jonathan da nova geração (Jonathan Costa). Funk carioca desce o morro e invade SP, noticiou a Folha de S.Paulo, em matéria que destacava como as “letras eróticas” do funk “desbancam o axé e o pagode, viram hinos do verão e febre na TV, nos estádios (torcidas) e nas ruas (camelôs)”. Essa expansão envolvia também um cruzamento de fronteiras sociais e raciais — no entanto, sem eliminá-las efetivamente. “Morro de medo de subir favelas à noite. Mas agora posso assistir ao DJ Marlboro em boates da Zona Sul. O único problema é conseguir ingresso, porque os shows vivem lotados”, disse, ao Jornal do Brasil, uma publicitária de 23 anos, moradora de Copacabana, que “sofria” por não frequentar os bailes.

O crescimento do funk na indústria musical se nutriu (foi consequência?) de uma transformação na temática de suas letras e na forma de fruir a festa. “Antigamente havia baile funk, mas só havia o baile funk de lado a versus lado b, onde havia baile de briga”, contextualiza Deize Tigrona no documentário Sou feia mas tô na moda (2005), em referência aos bailes de corredor, onde grupos de bairros rivais se enfrentavam em uma luta recreativa. No início dos anos 2000, porém, ocorreu uma mudança nas temáticas das músicas e nas dinâmicas dos bailes, firmando-se então “o funk do prazer, onde todo mundo rebola”, nas palavras de Deize, que naquela época fazia sucesso com Injeção e De quatro, de lado. Nesta última, ela cantava: “Mas tu sabe como é/ Se eles pagam o motel/ Elas faz o que ele quer/ Então de quatro, de lado/ Na tcheca e na boquinha/ Depois vem pra favela toda aberta e assadinha”.

Enquanto movimento cultural, o funk empreendia coletivamente uma exploração poética das potências do erótico, do corpo, da dança e da festa, afirmando-as como forma de apropriações do mundo — como pode-se ouvir nas letras de Deize Tigrona, Valesca e a Gaiola das Popozudas, As Danadinhas, Mr. Catra, Os Hawaianos e outros. Uma das principais articuladoras dessa nova linguagem do gênero, Tati Quebra Barraco, por sua vez, desenvolveu uma poética da putaria na qual o sexo atravessa questões de gênero, classe e raça de forma interseccional. Nas músicas de Boladona, o sexo é constantemente retratado como afirmação da autonomia feminina e, ainda, um desafio, deboche e afronta ao domínio masculino — sobretudo ao branco playboy. Se em De quatro, de lado, assumir as despesas do motel dá ao homem o direito de fazer o que quiser para satisfazer seus desejos, Tati inverte o jogo em Sou feia mas tô na moda ao exaltar-se: “Tô podendo pagar hotel pros homens, isso que é mais importante”. Em Kabo kaki, outra faixa do disco, ela incentiva as mulheres a não terem pena ou dó e alerta que, com ela, é preciso ter coragem: “Nós mostramos para ele nosso jeito sedutor/ Sem ter pena, sem ter dó, demorou, mas abalou/ Se você quiser um jeitinho diferente/ Sem ter medo do perigo/ Pode vir que a chapa é quente/ Se você tiver coragem de conhecer a horta/ Vai vender caqui, kabo kaqui tu vai embora”.

Ainda que existissem mulheres cantando funk na década de 1990 (como a MC Cacau, na linha mais romântica e pueril do funk melody), foi a partir do funk putaria que as MCs passaram a conquistar uma visibilidade maior e mais consistente na mídia e no próprio circuito do funk, contexto esse que levantou uma discussão, entre a imprensa e intelectuais, se tais músicas seriam ou não símbolo de nova onda feminista. O debate foi encorpado quando Tati fez um show no Ladyfest, festival feminista de Stuttgart (Alemanha), em outubro de 2004, numa viagem patrocinada pelo Ministério da Cultura, então chefiado por Gilberto Gil. Não obstante, a música de Quebra Barraco não cessou de ser desqualificada sob o rótulo de “pornográfica”, que enxergava a funkeira apenas como uma reprodutora de um discurso machista, ignorante diante das complexidades da vida e das opressões — em vez de um sujeito com autonomia, agência e pensamento crítico.

Criticando as “letras primárias” da cantora, uma matéria da revista IstoÉ recorreu ao dicionário como uma evidência cabal para descreditar o potencial político do funk de Quebra Barraco — como se a língua fosse um campo neutro, sem disputas de poder, e o dicionário a expressão final do certo e errado. “Difícil entender o que versos como ‘69, frango assado, de ladinho a gente gosta’, têm a ver com a luta pelos ‘direitos civis e políticos da mulher’, como o Novo Dicionário Aurélio define o feminismo”, diz a matéria. No mesmo texto, a escritora e secretária especial de Políticas para as Mulheres do governo federal, Rose Marie Muraro (1930–2014), afirma que “Tati é um objeto sexual e não sujeito das mudanças”. Dizendo-se perplexa com o patrocínio do Ministério da Cultura à viagem da funkeira para representar as feministas brasileiras na Alemanha, ela completa: “O comportamento sexual foi pauta na década de 1970, isso é ultrapassado”.

No seminal ensaio Racismo e sexismo na cultura brasileira,[nota 2] Lélia Gonzalez (1935–1994) nos conta uma história bastante representativa da posição de outridade em que mulheres negras foram postas pela sexualização promovida pelo racismo. Quando se casavam com a “pura, frágil e inocente virgem branca” e passavam pelo vexame de brochar em plena noite de núpcias, os homens brancos cheiravam uma “roupa de crioula” para fazer o pau subir. “E a gente ficou pensando nessa prática, tão comum nos intramuros da casa grande, da utilização desse santo remédio chamado catinga de crioula (depois deslocado para o cheiro de corpo ou simplesmente cc). E fica fácil entender quando xingam a gente de negra suja, né?”, questiona.

Por essas e outras, Gonzalez afirma que “o objeto parcial por excelência da cultura brasileira é a bunda”. No mundo conceitual branco, o negro é objeto de projeção da sexualidade e da violência — valores que a sociedade branca reprimiu e transformou em tabu. Assim, o negro se torna a cristalização da ameaça, do violento, do perigoso, mas também o fetiche excitante e desejável. “Ela gosta do preto porque o preto faz direito”, canta O Poeta, representante do pagodão baiano. “Os playboy fica maluco que nós mete pra caralho”, provoca o MC e dançarino pernambucano VT Kebradeira na faixa Se a polícia não pegar, pode deixar que eu pego — que diz muito só pelo título. Nesse ponto, Lélia indica que a bunda (termo que provém do quimbundo) “de repente é língua, é linguagem, é sentido, é coisa”. A sexualidade é, assim, um campo expressivo que constitui o corpo negro, bem como sua arena de batalha, através da qual são negociados, disputados e/ou subvertidos os estereótipos sexuais do racismo, como o “negão da piroca”, a “preta fácil, gostosa e fogosa”, a “mulata bonita como a branca e fácil como a negra”.

Quando Tatiana Lourenço — esta mulher negra, nascida e criada em favela, mãe solo aos 13 anos — inventa-se como Tati Quebra Barraco, tomando uma gíria de conotação sexual como seu sobrenome, ela se apropria estrategicamente da objetificação e violências sexuais às quais os corpos negros foram submetidos e que serviram de ferro em brasa para a colonialidade demarcar a negritude. Pensando a bunda como elemento formador de linguagem, as poéticas da putaria são um meio de subverter a relação de dominação. De repente, a música que, num primeiro momento, soa como um convite ao prazer, torna-se um desafio insuspeito. Aquilo que serviu para estigmatizar é o mesmo canal de uma revolta inesperada. Verdadeiro cavalo de Troia sexual, como em Vou botar você na pista, onde o próprio falocentrismo torna-se o instrumento para impugnar e ridicularizar o domínio e soberania do homem hétero, como a viúva-negra que mata e come o macho após o acasalamento: “Saí com um cara bonitinho, cheio de marra de safado/ Ele malha todo dia e tem o corpo sarado/ Foi cair na madrugada dizendo que tá cansado/ Então deu uma da manhã e o cara deitou pro lado/ Estou com raiva desse cara, nem usei meus artifícios/ Vou botar você na pista e nunca mais saio contigo”.

Para além da cama e do sexo, Audre Lorde [nota 3] entendia o erótico como uma energia criativa que foi demonizada e desvalorizada na cultura ocidental, servindo para submeter as mulheres ao sofrimento pela culpa da existência desse erotismo. Porém, destaca a escritora, ao ser liberado, o erótico corre como uma corrente elétrica que “flui e colore a vida com uma energia que eleva, sensibiliza e fortalece minhas experiências”.

Na poética de putaria de Tati Quebra Barraco reside um impulso semelhante, no qual o sexo é tanto arma tática quanto o destravar de um fluxo de energia vital — que fora retesada e domesticada —, criando assim uma autoconexão íntima e profunda com o próprio corpo e com a sua capacidade de sentir prazer em diferentes níveis e experiências da vida. Ainda segundo Lorde, essa é a própria razão pela qual o erótico é temido e tão frequentemente restrito ao quarto. “Pois uma vez que começamos a sentir com intensidade todos os aspectos das nossas vidas, começamos a exigir de nós, e do que buscamos em nossas vidas, que estejamos de acordo com aquele gozo do qual nos sabemos capazes.”

 

NOTAS

[nota 1] Ver Batidão: Uma história do funk, de Silvio Essinger (Rio de Janeiro: Record, 2005).
[nota 2] Lélia Gonzalez, Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, 1984, p. 223-244.
[nota 3] Audre Lorde, Usos do erótico: O erótico como poder. In: Irmã outsider. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. P. 67-74. Tradução de Stephanie Borges.